- Author, Edison Veiga
- Role, De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil
Há 14 minutos
*Este texto foi publicado originalmente em 23 dezembro 2021
Nos anos 1930, uma figura chamava a atenção em jornais brasileiros da época no período natalino: o Vovô Índio.
Era uma figura que foi alvo de grandes esforços para se popularizar e destronar o Papai Noel nos corações das crianças ávidas por brinquedos.
"Vovô Índio e as crianças" foi chamada de capa do jornal O Globo em 24 de dezembro de 1932, com o registro de que a figura havia sido a responsável pela entrega de presentes em uma escola municipal carioca.
O mesmo jornal, em 28 de novembro, havia publicado um verdadeiro manifesto em defesa do Vovô Índio — sob o título "Vamos fazer um Natal brasileiro?" — e, em 20 de dezembro, uma declaração de guerra ao bom velhinho — "Pela deposição de Papai Noel" era o nome do texto.
Na capital paulista, os ânimos não eram diferentes. Em 1935, conforme noticiou O Estado de S. Paulo, foi o Vovô Índio quem levou presentes a órfãos paulistanos em ação promovida pela Força Pública — instituição antecessora da atual Polícia Militar.
Nos anos 1930 houve ainda um concurso nacional para escolher a imagem que melhor representasse o personagem. E, em 1939, uma peça infantil em cartaz no Rio promoveu o inusitado encontro do Papai Noel com o Vovó Índio.
Presidente do Brasil de 1930 a 1945 e de 1951 a 1954, Getúlio Vargas (1882-1954) nutria simpatia pela figura, atestam pesquisadores.
Há diversas histórias de que ele pessoalmente tenha se empenhado em transformar o Vovó Índio em símbolo do Natal brasileiro — mas, diante da falta de comprovação documental, se confundem os limites entre o que realmente era engajamento do político populista e o que se tornou causo folclórico.
"Vargas tinha o compromisso de nacionalizar o país, criar um Estado nacional, criar uma estrutura nacional. Nesse esforço, ele reforçou a imagem de Tiradentes, por exemplo. E trouxe a ideia do Vovó Índio, deu apoio para difundi-la", explica o historiador e sociólogo Wesley Espinosa Santana, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
"Mas não pegou na população."
Com contornos de lenda e sem constar de jornais da época, mas apenas de histórias publicadas décadas mais tarde sobre o assunto, o mais famoso desses episódios pode ter ocorrido há exatos 90 anos, no Natal de 1931, quando o presidente teria sido anfitrião de um evento natalino para apresentar o Vovô Índio para a criançada em um estádio do Rio.
Segundo esses relatos, a plateia não aprovou a ideia de receber presentes de um homem vestido de tanga e com cocar na cabeça — a preferência recaía sob o internacional Papai Noel.
"A fábula do Vovô Índio dizia que ele era filho de um escravo africano com uma índia. Foi criado por uma família branca e, por influência de seus irmãos, deixou de ser escravo", explica o jornalista Marcelo Duarte em seus livro O Guia dos Curiosos - Fora de Série.
"O presidente Getúlio Vargas chegou a pensar em transformá-lo em símbolo nacional."
O historiador e sociólogo Santana vê paralelos entre esse mito e a teoria racial brasileira do antropólogo Darcy Ribeiro (1922-1997). Afinal, assim como povo o brasileiro, o Vovô Índio também seria a mistura das "três raças tristes".
"O Vovó Índio era o velhinho sábio, filho de preta com índio, criado por uma branca. A ideia de mesclar, colocar o sincretismo cultural e étnico, as três raças tristes brasileiras: o preto porque foi escravizado, o índio porque foi explorado e invadido, o branco porque era obrigado a vir para cá", reflete o professor.
A origem do mito
Se as tentativas de fazer o Vovô Índio emplacar no imaginário nacional datam dos anos 1930, não se sabe exatamente a origem do mito.
O que se sabe é que sua versão mais bem-acabada terminou divulgada por obra de simpatizantes do integralismo, movimento nacionalista que ficou conhecido como uma espécie de fascismo brasileiro.
"Houve um grande esforço da intelectualidade nacionalista brasileira, principalmente uma intelectualidade de direita dos anos 1930, no sentido de criar essa fábula do Vovó Índio como contraponto ao Papai Noel", diz o historiador Leandro Pereira Gonçalves, professor na Universidade Federal de Juiz de Fora e autor de, entre outros, O Fascismo em Camisas Verdes: do Integralismo ao Neointegralismo.
Ele contextualiza, contudo, que se a simbologia nacional era muito importante ao movimento integralista, ele não foi criado pelos integralistas — foi, sim, utilizado por seus militantes.
"O chamado camisa verde acabou se apropriando daquela imagem, daquela simbologia de aversão ao Papai Noel. E isso aparece em jornais e revistas integralistas do período", explica.
Pesquisador vinculado à Universidade de Estrasburgo, na França, o historiador Philippe Arthur dos Reis lembra que o personagem já aparecia anteriormente no cenário musical e artístico brasileiro.
"O JB de Carvalho, por exemplo, poeta de macumbas, já colocava em perspectiva a ideia do Vovô Índio como defensor da cultura. Ele fazia isso da perspectiva de um músico colocando em evidência a cultura negra e indígena", afirma.
"Acho que isso vai estar em diálogo com o integralismo e, então, pode ter ocorrido, sim, um processo de apropriação de ideias."
Autor do livro Fascismo à Brasileira, sobre o movimento integralista, o jornalista Pedro Doria acredita que o personagem seja resultado do caldo nacionalista que reverberava nas primeiras décadas do século 20.
Isso tem a ver com o movimento modernista, cujos expoentes começaram os anos 1920 reafirmando que não havia necessidade de querer ser europeu.
"E começa uma busca pelo que é ser brasileiro. Enquanto [os escritores] Mario [de Andrade] e Oswald [de Andrade] acabam tomando o caminho que ficaria mais famoso, há também o caminho do verde-amarelismo do Menotti [Del Picchia] e do Cassiano Ricardo, mais nacionalismo. É o caminho onde está Plínio Salgado [o fundador da Ação Integralista Brasileira, a AIB]", contextualiza Doria.
Sociologicamente, o Brasil dos anos 1930 pensava então os conceitos de brasilidade. E aí estão nomes como Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) e Gilberto Freyre (1900-1987).
"Vem a ideia de que o barato do Brasil é que somos a mistura de três raças", pontua Doria.
Na São Paulo prestes a comemorar seu quarto centenário de fundação, tomava forma o conceito do bandeirante como herói.
"Mas esse mito é do bandeirante caboclo, filho do português homem com a mulher indígena, herói que fala tupi, era pobre mas bravo e desbravava o Brasil", descreve o jornalista.
Plínio Salgado (1895-1975) ergueu as bases do integralismo misturando esse contexto a uma inspiração extremista: o fascismo italiano.
"Mas seu fascismo brasileiro é modernista, coloca o caboclo como mito fundador, como homem brasileiro ideal, o cara que se mete no mato sem medo, que é a cara do Brasil", diz Doria.
O Vovô Índio, assim, passou a ser valorizado dentro dessa narrativa.
"Para os integralistas, o Papai Noel era uma influência ianque. O Vovô Índio representava o caboclo, o cara que estava no mato como o brasileiro, essencialmente brasileiro", comenta Doria.
"É o resultado da busca que todo fascismo tem pela visão idealizada do que é o seu povo."
"Ele, assim, se consolidou na AIB e foi adotado por Getúlio [Vargas] porque fazia sentido de acordo com essa visão", acrescenta.
Emissário de Jesus
A fábula do Vovô Índio foi sacramentada pela lavra do jornalista Christovam de Camargo — que era amigo de Mário de Andrade e, ao que se sabe, não tinha nenhuma ligação com os integralistas. Ele publicou o conto em livro em 1932 e, depois, no jornal Correio da Manhã, no Natal de 1934.
Na história de Camargo, Vovó Índio era um senhor amigo da natureza que trajava penas coloridas e saía distribuindo presentes para os brasileiros. Expulso de sua terra pelo homem branco, morreu — de "puro desgosto" — e foi parar lá nas portas de São Pedro.
Não passou pelo crivo do paraíso, no entanto. Como não tinha sido batizado pela Igreja, o porteiro celestial precisou explica que ele não pode ingressar no céu.
Então apareceu Jesus tentando resolver a situação. Afirmou que em seu aniversário ele próprio tinha o hábito de ir ao Brasil levar mimos para as crianças bem-comportadas e que, se Vovô Índio se convertesse, pronto, ele bem que podia se tornar o emissário dos presentes.
E assim, pela narrativa de Camargo, Vovô Índio se tornou o "bom velhinho" brasileiro.
Essa narrativa assumiu importância também pela mensagem religiosa.
Gonçalves lembra que, afinal, "o movimento integralista é cristão, tem sob lema 'Deus, Pátria e Família'".
"O debate da simbologia natalina realmente presente no integralismo brasileiro não é necessariamente o Vovó Índio, mas a valorização do nascimento de Jesus", argumenta o historiador.
Ao mesmo tempo, os integralistas sempre ironizavam a figura do Papai Noel, considerando-a incompatível com o Natal de verão brasileiro.
"Mas apesar de todas as tentativas, a imagem do Vovô Índio não deu certo, não foi enraizada. Naqueles anos 1930 o Papai Noel já estava com a imagem consolidada no imaginário ocidental", acredita Gonçalves.
"O Vovó Índio ficou reservado ao aspecto de uma intelectualidade, da utopia do militante nacionalista em busca de uma alternativa ao capitalismo", comenta o historiador.
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