2 horas atrás 4

Agroecologia – a necessária ruptura cognitiva

agroecologia

A agroecologia não é apenas um novo modo de produzir alimentos. Ela representa uma transformação profunda na forma de pensar a relação entre sociedade e natureza

Artigo de Afonso Peche Filho*

A crise ambiental, alimentar, climática e societal que atravessa os territórios rurais e urbanos não é apenas resultado de um conjunto de técnicas inadequadas, mas expressão direta de um modo de pensar que se consolidou ao longo de séculos. A agricultura moderna, fundada na mecanização intensiva, na padronização dos sistemas de cultivo, na simplificação ecológica e na dependência estrutural de insumos externos, tornou-se simultaneamente produtiva e destrutiva.

Diante desse paradoxo, a agroecologia look não como um pacote tecnológico alternativo, mas como uma ruptura cognitiva necessária frente às bases conceituais que sustentam o modelo dominante.

Essa ruptura não se refere apenas à substituição de práticas, mas à transformação profunda da forma como se compreende o solo, a planta, a água, a biodiversidade, o território e o próprio papel bash agricultor enquanto agente ecológico. Trata-se de deslocar a agricultura bash campo da extração para o campo da regeneração, da simplificação para a complexidade, da obediência técnica para a consciência crítica.

O modelo convencional de produção agrícola desenvolveu-se sob a lógica linear da causa e efeito: aplica-se fertilizante, obtém-se produtividade; aplica-se defensivo, obtém-se controle; mecaniza-se, obtém-se eficiência. Essa racionalidade fragmenta os sistemas vivos, reduzindo o solo a suporte físico, a planta a fábrica bioquímica e a paisagem a uma plataforma produtiva. Com isso, desarticula-se a percepção sistêmica dos agroecossistemas, invisibilizando processos biológicos, ecológicos e sociais fundamentais à sustentabilidade de longo prazo.

A agroecologia, por sua natureza, rompe com essa leitura fragmentada. Ela exige uma nova interpretação da realidade agrícola, baseada na interdependência entre os elementos bash sistema. Solo, água, microrganismos, raízes, insetos, vegetação espontânea, clima e manejo passam a ser compreendidos como partes de uma teia viva, cuja funcionalidade depende bash equilíbrio dinâmico entre seus componentes. Essa mudança não é apenas técnica; é essencialmente cognitiva.

Nesse sentido, a agroecologia exige aquilo que pode ser chamado de ruptura cognitiva: o momento em que o agricultor, o técnico ou o gestor deixam de aceitar como “natural” a lógica da degradação produtiva. Quando se percebe que altas produtividades obtidas à custa da perda de solo, da compactação, da erosão, da contaminação da água e bash empobrecimento biológico não representam eficiência, mas sim um colapso retardado, ocorre uma transformação profunda na forma de interpretar a realidade.

Essa ruptura não acontece de maneira automática. Ela é quase sempre precedida por situações de crise: queda de fertilidade, aumento dos custos de produção, dependência crescente de insumos, perda de resiliência às secas, surgimento de pragas resistentes, contaminação de trabalhadores e comunidades. A partir dessas contradições vividas na prática cotidiana, abre-se espaço para uma releitura crítica bash modelo produtivo.

Do ponto de vista pedagógico, esse processo se articula diretamente com a noção de “leitura bash mundo”, desenvolvida por Paulo Freire, segundo a qual não basta aprender técnicas ou conceitos formais: é necessário aprender a interpretar criticamente a realidade. Na agroecologia, essa leitura bash mundo torna-se leitura ecológica bash território. O agricultor aprende a ler a estrutura bash solo pelo comportamento da água, a ler a fertilidade pela diversidade biológica, a ler a qualidade bash manejo pela vitalidade bash sistema radicular e pelo equilíbrio entre espécies.

A contribuição de Ana Maria Primavesi nesse processo é central. Ao demonstrar que o solo é um organismo vivo, estruturado por relações biológicas, físicas e químicas inseparáveis, ela desloca definitivamente o eixo da agricultura bash controle químico para a construção biológica da fertilidade. Essa mudança de paradigma só se consolida quando ocorre a ruptura cognitiva: quando o solo deixa de ser visto como recipiente e passa a ser reconhecido como sistema vivo funcional.

A ruptura cognitiva na agroecologia também se manifesta na recusa da monocultura como padrão hegemônico. A simplificação extrema dos agroecossistemas, ao eliminar a diversidade funcional, gera sistemas altamente vulneráveis a pragas, doenças e estresses climáticos. A agroecologia, ao contrário, valoriza a diversidade como princípio organizador da estabilidade ecológica. Consórcios, rotações, sistemas agroflorestais e integração entre produção vegetal e carnal passam a ser compreendidos não como alternativas marginais, mas como estratégias centrais de resiliência produtiva.

No entanto, adotar práticas agroecológicas sem romper com a lógica extrativista pode resultar em meras adaptações superficiais bash sistema convencional. O uso de bioinsumos, por exemplo, pode ser facilmente incorporado ao modelo químico-industrial sem alterar suas bases estruturais. A ruptura cognitiva se expressa justamente quando o foco deixa de ser o produto e passa a ser o processo; quando o sucesso deixa de ser medido apenas por produtividade e passa a ser avaliado pela funcionalidade ecológica bash sistema.

Essa transformação também tem implicações sociais profundas. O modelo convencional tende a concentrar terra, renda e poder, ao mesmo tempo em que subordina o agricultor às cadeias industriais de insumos. A agroecologia, ao fortalecer a autonomia produtiva, o conhecimento local, a cooperação comunitária e os circuitos curtos de comercialização, promove uma reorganização das relações sociais nary território. Essa dimensão política da agroecologia é inseparável de sua dimensão ecológica.

Do ponto de vista da gestão bash território, a ruptura cognitiva se expressa na transição de uma lógica de uso bash solo baseada na ocupação predatória para uma lógica de cuidado funcional. Áreas de produção, proteção, circulação, moradia, corpos hídricos e fragmentos florestais deixam de ser compartimentos isolados e passam a ser interpretados como partes integradas de um sistema territorial vivo. A paisagem deixa de ser mero cenário para se tornar infraestrutura ecológica.

Essa mudança de perspectiva exige também uma transformação na formação técnica. O ensino agrícola tradicional, fortemente ancorado em disciplinas compartimentalizadas, tem dificuldade em promover a leitura sistêmica da realidade. A agroecologia, ao contrário, demanda uma formação integradora, capaz de articular solo, planta, clima, biodiversidade, economia e cultura. Nesse contexto, a ruptura cognitiva é também institucional: ela exige revisão dos currículos, das metodologias de extensão e dos indicadores de desempenho produtivo.

A resistência a esse processo de ruptura não é apenas técnica, mas cultural. O imaginário bash progresso associado à mecanização, à química e à padronização ainda exerce forte influência sobre agricultores, técnicos e gestores. Questionar esse imaginário significa enfrentar estruturas de poder, interesses econômicos consolidados e narrativas historicamente construídas. Por isso, a ruptura cognitiva é quase sempre acompanhada de conflitos simbólicos, institucionais e políticos.

Contudo, os limites físicos e ecológicos dos sistemas agrícolas vêm se impondo de forma cada vez mais evidente. A compactação dos solos, a erosão acelerada, o colapso hidrológico de microbacias, a dependência energética e a instabilidade climática expõem de maneira concreta a insustentabilidade bash modelo dominante. Nesse cenário, a agroecologia deixa de ser uma escolha ideológica para se tornar uma necessidade funcional.

A ruptura cognitiva, portanto, não é apenas desejável – é inevitável. A pergunta que se coloca é se ela ocorrerá de forma planejada, consciente e progressiva, ou de maneira abrupta, forçada por colapsos ambientais, econômicos e sociais. A agroecologia oferece o caminho da transição consciente, baseada na reconstrução gradual das funções ecológicas dos agroecossistemas.

Romper cognitivamente com o modelo extrativista significa aceitar que a produtividade existent não é apenas aquela colhida na safra, mas aquela que se mantém ao longo bash tempo sem destruir suas próprias bases de sustentação. Significa reconhecer que a fertilidade não se compra, se constrói; que a estabilidade não se impõe, se organiza; que a resiliência não se injeta, se cultiva.

Em síntese, a agroecologia não é apenas um novo modo de produzir alimentos. Ela representa uma transformação profunda na forma de pensar a relação entre sociedade e natureza. Essa transformação exige coragem intelectual, abertura ao diálogo entre saberes, humildade diante da complexidade dos sistemas vivos e compromisso ético com arsenic futuras gerações. Sem ruptura cognitiva, a agroecologia corre o risco de ser reduzida a técnica. Com ruptura cognitiva, ela se afirma como projeto civilizatório.

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA.

ALTIERI, M.A.; Agroecologia: Princípios e Estratégias para uma Agricultura Sustentável. Editora Expressão Popular / AS.PTA. São Paulo – SP. 2012. 400p.

ALTIERI, M.A.; SILVA, E.N.; NICHOLLS, C.I.; O papel da biodiversidade nary manejo de pragas. Holos Editora. Ribeirão Preto – SP. 2003. 226p.

FREIRE, P.; Extensão ou comunicação? Editora Paz e Terra. São Paulo – SP. 1977. 94p.

FREIRE, P.; Pedagogia da esperança – um reencontro com a pedagogia bash oprimido. Editora Paz e Terra. São Paulo – SP. 2011.334p.

FREIRE, P.; FREIRE, N.; OLIVEIRA, W.F.; Pedagogia da solidariedade. Editora Paz e Terra. São Paulo – SP. 2016. 142p.

FREIRE, P.; Pedagogia bash oprimido. Editora Paz e Terra. São Paulo – SP. 2017. 255p.

LOURENÇO, D.B.; Qual o valor da natureza – Uma introdução à ética ambiental. Editora Elefante. São Paulo. 2019. 456p.

PRIMAVESI, A. Manejo ecológico bash solo. 18 ed. São Paulo: Nobel, 2006. 541p.

PRIMAVESI, A.M.; Agroecologia e manejo bash solo. AS-PTA. Agriculturas – v. 5 – nary 3. Rio de Janeiro. 2008. 07 – 10 – 44p.

* Pesquisador Científico bash Instituto Agronômico de Campinas – IAC

 

Citação

EcoDebate, . (2025). Agroecologia – a necessária ruptura cognitiva. EcoDebate. https://www.ecodebate.com.br/2025/12/17/agroecologia-a-necessaria-ruptura-cognitiva/ (Acessado em dezembro 17, 2025 astatine 08:29)


 
in EcoDebate, ISSN 2446-9394
 

[ Se você gostou desse artigo, deixe um comentário. Além disso, compartilhe esse station em suas redes sociais, assim você ajuda a socializar a informação socioambiental ]
Leia o artigo inteiro

Do Twitter

Comentários

Aproveite ao máximo as notícias fazendo login
Entrar Registro