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Após 40 anos de redemocratização, Antonio Britto rememora eleições indiretas de 1985

40 anos, em 15 de março de 1985, ocorria a posse de José Sarney como o primeiro presidente civil no Brasil, após 21 anos de um regime militar marcado por violações de direitos humanos e restrições de direitos civis. A posse, em cerimônia rápida de sem discursos, foi do vice-presidente eleito, após o titular, Tancredo Neves, ser internado às pressas um dia antes.

Apesar do esgotamento do ciclo da ditadura, sem poder popular e enorme insatisfação, as eleições ocorreram mediante colégio eleitoral, após a Emenda Dante de Oliveira, que previa eleições diretas, ser rejeitada por 22 votos. Registros mostram que, apesar da derrota do aparato legislativo, a oposição liberal costurava uma aliança alternativa no cenário político, liderada por Tancredo Neves.

Ao Jornal do Comércio, o então porta-voz do presidente eleito e ex-governador do Rio Grande do Sul, Antonio Britto, conta como foi esse processo, à medida que uma parte menor e radical das Forças Armadas resistia à entrega do poder. Presente na Assembleia Constituinte, Britto também rememora a negociação de direitos civis para a Constituição Federal de 1988.

Jornal do Comércio - Como era o ambiente político no centro de poder brasileiro naquele momento, de transição dos 21 anos de ditadura para a reabertura da democracia?

Antonio Britto - Em 1985, o ciclo da ditadura claramente tinha se esgotado. Não contava mais com praticamente nada de apoio popular. Havia no país uma enorme insatisfação, seja por conta das dificuldades econômicas, seja por conta do cansaço com a supressão de liberdades que foram praticadas pelo regime militar. Então, a grande questão não era se a ditadura acabaria e sim como e quando ela acabaria. Após isso houve a tentativa da aprovação da Emenda Dante de Oliveira, que restabelecia o voto direto do Brasil para a Presidência da República. Essa proposta, apesar da quase unanimidade no meio da população, não foi aprovada pelo congresso, e se intensificaram as buscas por outra alternativa. E a alternativa de fazer uma transição da ditadura para a democracia através de um mandato que fosse eleito pelo Congresso, mas comprometido com as Diretas Já e com a democracia, acabou se fortalecendo muito. Porém um ponto importante, é que mesmo se o Dr. Tancredo não fosse eleito, haveria a volta à democracia. Mas a presença dele e a e a articulação em torno do nome dele, encurtou e facilitou esse caminho. Foi um período extremamente intenso, porque foi preciso construir toda aquela solução em torno dele, mas foi também um período tenso, porque uma parte menor das Forças Armadas resistia à entrega do poder, o que à época chamava-se bolsões radicais. Ele teve um papel fundamental para estabelecer uma espécie de pacto que de um lado permitisse a retomada da democracia no Brasil mas que, de outro lado acalmasse esses segmentos minoritários dentro das Forças Armadas. E acabou, ironicamente, dando certo e dando errado pro Dr. Tancredo, pelas razões que se sabe, da doença e da morte dele.

JC - E havia pressões internas por parte do do regime militar, ao Tancredo Neves? Como essas pressões eram impostas a ele?

Britto - Essas pressões ficaram muito centralizadas nos órgãos de informação e repressão do regime militar, em particular o Serviço Nacional de Informações (SNI), na época comandado pelo General Medeiros. O que se sabia, é que os bolsões radicais passaram a tentar divulgar dentro dos quarteis a ideia de que a aprovação das Diretas no primeiro momento ou a eleição do Dr. Tancredo significaria criar uma desordem de esquerda no Brasil. Aquele velho discurso. Nós todos sabíamos que esse era um sentimento absolutamente minoritário dentro do exército. Tancredo, com muita habilidade, foi construindo apoio também na área militar à ideia do fim da ditadura. Ele contava com o apoio da maioria dos altos oficiais das três armas, mas era sempre muito cauteloso. Acompanhava com lupa a movimentação desses setores e procurava preservar o avanço em direção ao fim da ditadura. E Isso tem muito a ver com a doença do Dr. Tancredo. Isso porque o Dr. Tancredo tinha absoluta convicção de que se durante esse período de "costura", do final de 1984 até 15 de janeiro de 1985, por qualquer razão de doença, ele fosse, mesmo que temporariamente afastado do processo, acabaria fortalecendo os bolsões radicais. A presença dele no processo era como se fosse um fiador, um garantidor, da forma como as coisas se desenvolveriam na etapa pós-eleição. Se ele se afastasse, seguramente isso geraria uma inquietação e um eventual aumento da força dos bolsões radicais. O Dr. Tancredo, como eu digo, fez política com a própria saúde. Ele considerou que adiar o máximo providências que qualquer ser humano, em circunstâncias normais, tomaria, de ir para dentro de um hospital, de ser examinado e ser operado. Ele foi adiando isso na tentativa de consumar a eleição e definir que haveria um civil no lugar do General Figueiredo e infelizmente, como se sabe, ele ganhou a corrida para acabar com a ditadura, mas perdeu a corrida para a doença.

JC - Essa abertura democrática do Tancredo também representava uma maior abertura para a imprensa. O senhor era jornalista naquele tempo, já passou por diversos veículos aqui no Rio Grande do Sul. E o momento de internação dele foi de muito boato, de muita teoria da conspiração e muita coisa que hoje em dia a gente chamaria de fake news, e de desinformação. E como que aquela experiência marcou o senhor como jornalista?

Britto - Eu fui convidado pelo Dr. Tancredo para uma tarefa que seguramente me encheu de de de orgulho. Era a tarefa de fazer o papel de um porta-voz num regime democrático, em que a imprensa não apenas recuperaria a sua liberdade, como também o poder público se submeteria ao escrutínio, à análise, à investigação, à crítica pela mesma imprensa. Não era simplesmente assumir o papel de assessor e porta-voz do Presidente, era de contribuir para a construção de algo que era novo depois de 21 anos. A imprensa livre convivendo com um poder que tinha obrigação de ser democrático e transparente. Eu acabei não participando da segunda parte do processo, em função da morte do presidente Tancredo. Eu fui convidado para permanecer quando ele faleceu, mas entendi que o presidente Sarney deveria ter como porta-voz alguém que tivesse extrema ligação com ele. O que eu acabei cumprindo foi um papel inesperado, não previsto, de dar ao país as informações naqueles 38 dias de de sofrimento, de agonia e ao final da de morte do Presidente Tancredo.

JC - Em torno da Emenda Dante de Oliveira, que não atingiu os 320 votos necessários para ser enviada ao Senado. O jornalista Bernardo Kucinski documentou nessa época que o Tancredo, enquanto isso, também costurava por trás uma aliança alternativa, no caso das eleições indiretas. Como foi a movimentação política desse processo?

Britto - A emenda das Diretas rapidamente se tornou quase uma unanimidade na população brasileira. Mobilizou milhões de pessoas para irem às ruas. Todos, no entanto, sabiam que haveria resistência no Congresso, porque não havia sido eleito em período democrático. Sabiam que a unanimidade existente nas ruas, não se transferia para lá. Então, qualquer articulador político lutava pelas Diretas, mas sabia que não era absolutamente certo que a proposta da de Oliveira fosse aprovada. E evidentemente fazia parte do cálculo político, de "bem, e se não passar?". Era preciso encontrar uma outra fórmula. E embora todos trabalhassem pelas Diretas, foi se articulando e se pensando que se as diretas não passassem, haveria a necessidade de encontrar uma fórmula que passasse a eleição seguinte pelo congresso, para suceder o presidente Figueiredo.

JC - Na Bahia, principalmente, tivemos uma onda de protestos antes mesmo do Diretas Já. E nessa época o senhor fazia parte da imprensa. No Rio Grande do Sul, como foi essa movimentação?

Britto - Eu acho que o Rio Grande do Sul, foi dos estados onde de forma mais forte, mais praticamente unânime, a população e as lideranças políticas lutaram pelas diretas. Depois, na impossibilidade delas, compreendeu que havia a obrigação de partir para o "Plano B", que seria a eleição civil do Tancredo no Congresso, portanto, na última eleição indireta. A movimentação da sociedade no Rio Grande do Sul foi um um traço que distinguiu o Rio Grande do Sul, porque não houve simplesmente a adesão dos políticos de oposição, ou a adesão de parte dos políticos que até então tinham apoiado o regime militar. A adesão se espalhou pela sociedade, e em especial entidades da sociedade civil. O Rio Grande do Sul foi absolutamente exemplar na forma como ofereceu suporte e ofereceu apoio, seja na luta pelas diretas, seja depois na construção da alternativa via Congresso.

JC - Acerca da assembleia constituinte, o senhor esteve presente como deputado. Aquele momento certamente definiu o modelo de democracia que temos hoje, qual que era o espírito do parlamento naqueles dias?

Britto - A constituinte teve como característica básica um clima onde a sociedade brasileira, e boa parte dos políticos, tinha a grande esperança de que a gente escrevesse um texto constitucional que sacramentasse as conquistas democráticas e avançasse na direção de fazer o país mais justo e menos desigual. Acho que essa primeira tarefa, de fazer um texto que de alto a baixo do país notasse-o de instrumentos exemplarmente democráticos cumprimos muito bem. Foram avanços que ainda hoje, 40 anos depois, continuam sendo exemplares em termos globais. A segunda tarefa que era a tarefa de, usando o espaço democrático que se criava tentar tornar o país mais plural, mais justo, menos desigual, eu acho que não foi cumprida. Em parte, porque não é um texto constitucional que pode sozinho e isoladamente promover justiça e igualdade. Segundo, porque nestes capítulos, por exemplo, se colocaram as regras que levariam ao SUS, mas por outro lado, a gente não previu suficientemente a questão da sustentabilidade financeira dele. Acho que a Constituição de 88, ela é absolutamente admirável na questão dos direitos políticos, dos direitos civis. Ela é a base de tudo que a gente avançou em termos democráticos. Visivelmente, a constituinte dotou o país dos instrumentos que permitissem, aos governos posteriores, ter melhores instrumentos para adotar políticas públicas. Porém o resultado é esse sentimento, de mal-estar com a política. Mas infelizmente continuamos tendo uma dívida, que é muito alta em termos de igualdade no país.

JC - Como se deu a negociação de direitos constitucionais, como os direitos dos povos indígenas frente à mineração, ou o direito de um meio ambiente ecologicamente correto, frente a outras pressões políticas e econômicas?

Britto - A constituinte, obviamente, levou para dentro do congresso todos os conflitos de interesses que existem na sociedade brasileira. Então, de um lado há alguém querendo total liberdade para mineração e do outro lado a ideia, à época extremamente avançada, de que a liberdade para a mineração precisaria depender de autorização do governo, e precisaria respeitar determinados quesitos e funções sociais. Isso se deu item por item de atividades econômicas. Toda a votação do capítulo econômico, tinha sempre esse embate, que não era criado dentro do congresso, é um embate permanente que existe em qualquer sociedade e em qualquer época no Brasil e no mundo. Nem sempre a constituinte conseguiu tomar decisões que fossem definidoras de um rumo. Para poder ir adiante, acabou estabelecendo uma série de dispositivos, que eu sempre brinco dizendo que, como se uma pessoa, em toda a frase que formulasse, dissesse "sim, porém...". Deixou muita coisa para legislação complementar, mas ela não fez isso por descuido, por descaso. É porque era tamanho o conflito de interesses que emergiu da sociedade, neste aspecto, que as soluções de compromisso, elas muitas vezes davam, para usar uma linguagem gaúcha, "uma no cravo e outra na ferradura".

JC - O fato de não termos tido uma justiça de transição, como ocorreu, por exemplo, na Argentina com os ditadores sendo julgados, deixou inacabada essa história da política nacional. O senhor compartilha dessa visão?

Britto - Eu acho que o processo da anistia, ele acabou reproduzindo um pouco do que foi o próprio processo de substituição da ditadura, curiosamente, por uma eleição indireta que em função da perda do Dr. Tancredo curiosamente vai cair a presidência nas mãos de alguém que havia participado do regime militar, que é o presidente Sarney. E gente tem que reconhecer isso, que a votação da anistia se encaixou dentro do mesmo formato de grande parte de alguns textos da Constituição e da própria eleição do Dr. Tancredo. Nesse formato se supera a o passado, mas não se rompe com ele. Para o bem e para o mal, essa é a grande característica do processo de democratização do Brasil. 

Antonio Britto Filho, 72 anos, é natural de Santana do Livramento. Formado em Jornalismo e Direito, atuou em veículos do RS até ir para a Rede Globo. Cobriu política em Brasília e foi secretário de imprensa do presidente eleito Tancredo Neves, atuando como porta-voz das informações médicas antes da morte de Tancredo, em 1985. Filiou-se ao PMDB e foi eleito deputado federal constituinte em 1986, sendo reeleito em 1990. Em 1992, assumiu como ministro da Previdência no governo Itamar Franco (PMDB). Dois anos mais tarde, foi eleito governador do RS. Sua gestão, de 1995 a 1998, foi marcada pela atração de investimentos, como a montadora da GM em Gravataí, e pela privatização da CRT e de parte da CEEE. Não se reelegeu. Em 2001, deixou o PMDB, se filiou ao PPS e concorreu de novo ao Piratini em 2002. Derrotado, deixou o partido, a política e passou a trabalhar na iniciativa privada. Foi executivo da Calçados Azaléia, Claro, integrou o Conselho de Administração da Braskem e, desde 2009, é presidente executivo da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma). Hoje é diretor-executivo na Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp).

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