"Literalmente, eu me senti incrível", recorda ela. "As vozes na minha cabeça se calaram por completo. Fiquei imediatamente dependente."
As pequenas pílulas azuis que causaram dependência em Kayla, provavelmente, foram fabricadas no México e contrabandeadas pela fronteira com os Estados Unidos. É a este comércio mortal que o presidente americano, Donald Trump, tenta pôr fim.
Mas os cartéis da droga não são compostos por farmacêuticos. Kayla nunca soube quanto fentanil continham os comprimidos que ela costumava tomar. Teriam eles quantidade suficiente do opioide sintético para matá-la?
"Pensar nisso é assustador", conta Kayla, imaginando como ela poderia ter sofrido uma overdose e morrer a qualquer momento.
Na época, o avanço do fentanil (50 vezes mais potente que a heroína) parecia incontrolável. Até que ocorreu uma mudança surpreendente.
Em 2024, o número de mortes por overdose nos Estados Unidos caiu em cerca de 25%. Este índice representa quase 30 mil mortes a menos, ou dezenas de vidas salvas todos os dias.
E a Carolina do Norte, onde mora Kayla, está na vanguarda desta tendência.

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Por que a queda é tão brusca?
Um dos motivos que explicam a queda é o compromisso assumido para reduzir os danos causados pelas drogas. Para isso, é preciso promover políticas que priorizem a saúde e o bem-estar dos usuários, em vez de criminalizar estas pessoas. É preciso reconhecer que, na era do fentanil, o consumo de drogas, muitas vezes, acaba em morte por overdose.
No Estado de Kayla, a Carolina do Norte, as mortes por overdose caíram em 35%. Ali, a estratégia de redução dos danos está bem desenvolvida.
Kayla deixou de consumir drogas ilícitas. Ela faz parte de um programa inovador de acompanhamento com assistência legal, conhecido como LEAD ("dirigir"), na sigla em inglês, na cidade de Fayetteville, no norte do Estado.
Este programa é uma colaboração entre a polícia da cidade e a Coalizão para a Redução de Danos da Carolina do Norte. Elas trabalham em conjunto para afastar os consumidores de drogas da criminalidade e encaminhá-los para recuperação.
"Se observarmos alguém roubando em um supermercado, verificamos seus antecedentes criminais", explica o tenente Jamaal Littlejohn. "Frequentemente concluímos que os delitos que eles cometem parecem financiar sua dependência."
Isso poderia transformá-los em candidatos para o programa LEAD. Nele, as pessoas conseguem apoio para enfrentar a dependência e iniciar o caminho para conseguir moradia e emprego com segurança.
Os defensores do programa LEAD afirmam que não se trata de indulgência com a criminalidade. Os narcotraficantes continuam indo para a prisão em Fayetteville.
"Mas, se conseguirmos com que as pessoas recebam os serviços necessários, as forças policiais terão mais tempo para lidar com delitos maiores", defende o tenente Littlejohn. Ele testemunhou a luta da sua própria irmã contra o consumo de substâncias.
Kayla progrediu muito. Hoje, ela está muito longe dos dias em que usou a prostituição para sustentar sua dependência do fentanil.
Com o programa LEAD, seu histórico criminal ficou limpo. Ela se formou recentemente como auxiliar de enfermagem e, agora, trabalha em uma residência.
"É o melhor que já me aconteceu", ela conta. "Nunca fiquei limpa por tanto tempo."
O tratamento foi fundamental para a recuperação de Kayla. Ela tomava metadona há cerca de um ano, quando contou sua história para a BBC.
"A metadona está me impedindo de recair", acredita ela.
Metadona e buprenorfina são medicações usadas para o tratamento de distúrbios do uso de opioides. Elas reduzem o desejo de consumir a droga e combatem as dificuldades da abstinência.
Nos Estados Unidos, este tratamento vem sendo usado para reduzir a quantidade de mortes por overdose.
Na Carolina do Norte, ele tem sido revolucionário. Mais de 30 mil pessoas se inscreveram em um programa de tratamento em 2024 e os números cresceram ainda mais em 2025.
'A roleta russa continua, mas as probabilidades melhoram'
Às 9h da manhã, duas ou três pessoas aguardam atendimento na recepção de uma das clínicas Morse na capital do Estado, Raleigh.
"O horário de maior atividade é das 5h30 às sete da manhã, ou seja, antes do horário de trabalho", afirma o psiquiatra especializado em dependência Eric Morse. Ele administra nove clínicas que oferecem tratamento assistido com medicamentos na Carolina do Norte.
"A maioria dos nossos pacientes trabalha", ele conta. "Uma vez sóbrios, eles chegam pontualmente ao trabalho todos os dias."
A clínica conta com um sistema de gestão impecável. Após o registro, os pacientes passam pelo atendimento, onde recebem sua receita. Eles entram e saem em questão de minutos.
Os pacientes passam por testes de drogas aleatórias, para detectar narcóticos ilícitos.
Morse afirma que cerca da metade dos seus pacientes ainda testa positivo para opioides comprados nas ruas, mas não considera que este resultado seja um fracasso.
"Talvez eles consumam uma vez por semana e estivessem acostumados a consumir três vezes por dia... Eles continuam jogando a roleta russa com o fentanil, mas retiraram uma porção de balas da pistola, de forma que a chance de sobrevivência aumenta significativamente."
Este processo é conhecido como redução de danos.
Por isso, em vez de serem expulsos do programa de tratamento, os pacientes com resultados positivos no teste de drogas recebem mais apoio e assessoramento.
Morse afirma que 80% a 90% deles deixarão completamente de consumir drogas ilegais. E, com o passar do tempo, muitos também reduzirão gradualmente a dose da medicação.
O debate sobre a abstinência
Mas nem todos acreditam que este seja o enfoque correto. O republicano Mark Pless é membro da Câmara de Representantes estadual da Carolina do Norte. Ele trabalhou como paramédico em tempo integral e defende que o consumo de drogas ilícitas começa com uma decisão.
Pless não acredita na redução de danos. Particularmente, ele se opõe ao tratamento do transtorno por consumo de opioides com medicamentos como a metadona ou a buprenorfina.
"Você está substituindo um produto que causa dependência por outro", garante ele.
"Se você precisa tomá-lo para se manter limpo, continua sendo dependente. Precisamos encontrar a forma em que as pessoas possam melhorar. Não podemos mantê-las dependentes de drogas para sempre."
Pless é a favor dos programas de treinamento de abstinência, em que os usuários de drogas abandonam o consumo abruptamente. Mas muitos profissionais de saúde da Carolina do Norte levantam dúvidas sobre este método.
"Acredito que existam diversos caminhos para a recuperação", defende Morse. "Não descarto o tratamento baseado na abstinência, a menos que se analisem as evidências médicas."
Morse indica um estudo realizado em 2023 pela Universidade de Yale, nos Estados Unidos, que analisou o risco de morte dos consumidores de opioides em um programa de tratamento, em comparação com pessoas não participantes.
O estudo indicou que pessoas em tratamento de abstinência apresentaram a mesma probabilidade, ou até maior, de morrer por overdose que uma pessoa que não recebeu o tratamento e continuava consumindo opioides de livre venda, como o fentanil.
Deixando de lado os tratamentos, existe outro medicamento que vem ajudando a reduzir a crise. A naloxona é facilmente disponível. Em forma de aerossol nasal, ela reverte o efeito da overdose de opioides, ajudando as pessoas a respirar novamente.
Na Carolina do Norte, foram administradas mais de 16 mil doses de naloxona em 2024. Isso significa que 16 mil vidas foram potencialmente salvas, somente nas reversões de overdose que foram relatadas.
"Ela é o mais próximo de um produto farmacêutico milagroso que podemos imaginar", afirma o cientista especializado em drogas de rua Nabarun Dasgupta, da Universidade da Carolina do Norte.
Muitos consumidores de narcóticos, como a cocaína, a metanfetamina e a heroína, querem ter certeza de que as substâncias consumidas por eles não irão matá-los.
Algumas pessoas usam fitas reativas para detectar fentanil, pois sabem que esta droga está relacionada a muitas mortes por overdose. Mas essas fitas não identificam todas as substâncias potencialmente nocivas.
Dasgupta dirige um laboratório nacional de análise de drogas. Os usuários enviam uma pequena parte do seu estoque de substâncias, através de organizações locais sem fins lucrativos.
"Analisamos cerca de 14 mil amostras de 43 estados, nos últimos três anos", informa ele.
Analisar as drogas para detectar aditivos potencialmente perigosos é outro instrumento usado para reduzir os danos.
Dasgupta acredita que outro motivo que explica a redução das mortes por overdose nos Estados Unidos é que os jovens estão evitando opioides como o fentanil.
Dasgupta não se surpreende totalmente com o fato de que os jovens na casa dos 20 anos evitem os opioides. Afinal, 4 a cada 10 adultos americanos conhecem alguém que morreu por overdose.
Foi esta epidemia de mortes, iniciada na década de 1990 pelos opioides vendidos com receita médica, que levou o ex-procurador-geral da Carolina do Norte Josh Stein, hoje governador do Estado, a agir contra as poderosas corporações que se beneficiam da sinistra espiral de dependência de tantos cidadãos americanos.
Stein telefonou para seus homólogos de outros estados e assumiu papel fundamental na coordenação de ações legais contra os fabricantes, distribuidores e revendedores de opioides.
Após anos de intensas negociações, chegou-se a um Acordo sobre Opioides, no valor total de cerca de US$ 60 bilhões (cerca de R$ 323 bilhões).
As grandes empresas concordaram em pagar este montante aos Estados americanos, que será destinado à "redução da epidemia de opioides". A parte correspondente à Carolina do Norte soma cerca de US$ 1,5 bilhão (cerca de R$ 8,1 bilhões).
"É preciso investir o montante de quatro formas: prevenção de drogas, tratamento, recuperação e redução de danos", explica Stein. "Acredito que seja transformador."
Já o financiamento do governo federal é incerto. Os cortes do programa Medicaid, incluídos no "Grande e Belo Projeto de Lei" do presidente Trump, podem causar impactos profundos ao setor.
Nas Clínicas Morse de Raleigh, 70% dos pacientes dependem do Medicaid. Se eles perderem o seguro médico, poderão interromper o tratamento e se tornar mais vulneráveis a morrer de overdose?
As estatísticas de mortalidade por drogas na Carolina do Norte parecem otimistas, mas milhares de pessoas continuam morrendo e as populações negras, indígenas e não brancas do Estado não vivenciam os mesmos índices de redução.
Além disso, outros Estados americanos enfrentam um ritmo persistentemente mais lento de redução das overdoses fatais, como Nevada e Arizona.
Ninguém se dá por vencido, muito menos Kayla.Vivendo sob o efeito do fentanil por três longos anos, ela nunca sofreu overdose, mas precisou salvar seus amigos.
Os pais de Kayla não sabiam o que fazer com ela. "De certa forma, eles desistiram de mim. Pensavam que eu iria morrer", ela conta.
Kayla reconhece a contribuição de Charlton Roberson, o mentor que a ajudou na sua recuperação. Agora, seu objetivo é reduzir gradualmente a metadona e se libertar dos medicamentos e das drogas. E também pretende trabalhar em um hospital.
"Eu me sinto mais viva do que quando consumia fentanil", afirma ela.

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