Na semana passada, a realeza espanhola, o primeiro-ministro do país e o presidente regional de Valência — um equivalente ao governador no Brasil — foram recebidos por uma multidão enfurecida que arremessou lama e outros detritos durante uma visita a Paiporta, em Valência.
No total, o dilúvio, o maior do século na Espanha, matou 203 pessoas em Valência — 60 delas em Paiporta — e destruiu comunidades inteiras.
Era a primeira visita das autoridades à área devastada, e uma multidão enfurecida protestava por não ter sido avisada com antecipação da chuva.
O rei Felipe VI com gota de lama no rosto arremessada por manifestantes durante visita a Paiporta, um dos bairros mais atingidos pelas enchentes históricas que mataram mais de 200 pessoas em Valência, na Espanha, em 3 de novembro de 2024. — Foto: David Melero/ AP
Gotas de lama atingiram o rosto e o casaco preto do rei Felipe VI, e as mãos da rainha Letizia ficaram marcadas pela lama que, quase duas semanas depois das enchentes, ainda cobre várias ruas da periferia ao sul da cidade de Valência.
Muitos na multidão empunhavam as pás que vêm usando para limpar suas casas.
A raiva não parecia direcionada especificamente contra o rei, mas contra todo o Estado pela gestão do pior desastre natural na história recente da Espanha. O governo também alega que havia agitadores de extrema direita entre os moradores locais, insinuando que eles estariam atrás do primeiro-ministro, socialista.
De qualquer forma, para a professora de direito constitucional na Universidade Internacional da Catalunha, Montserrat Nebrera, a cena chocante de um monarca enlameado pode abrir um precedente para protestos mais intensos, já que “nunca se mostrou tanta fúria contra o rei”.
Monarquistas como Nebrera, e até republicanos, concordam que Felipe, que ocupa uma posição essencialmente simbólica, fez o papel de um chefe de Estado.
Um monarca considerado insensível se esforça
Rei da Espanha ouve gritos de 'assassino' em visita a local atingido por enchente
“Esse pode ser lembrado como o melhor dia do reinado de Felipe”, disse o professor de ciências políticas da Universidade Autônoma de Barcelona Oriol Bartomeus, em entrevista à Associated Press.
“Se ele tivesse buscado a proteção de seus guarda-costas e fugido, teria sido o dia mais sombrio de seu reinado. Em vez disso, ele mostrou por que é rei, demonstrando compostura e serenidade, e chegando o mais perto possível do povo.”
Felipe, de 56 anos, assumiu uma Casal Real cuja reputação estava em frangalhos após os escândalos financeiros e de conduta de seu pai, o rei Juan Carlos, que abdicou em 2014.
No início de seu reinado, Juan Carlos era amado, ou pelo menos relutantemente respeitado, após ajudar na restauração da democracia após a morte do ditador Francisco Franco. Ele era visto como uma pessoa realista e divertida, em comparação com outros membros da realeza europeia.
Seu filho, por outro lado, é considerado insensível, e vem contando com Letizia, que já foi jornalista, para ajudá-lo a administrar o palácio de forma sóbria em um país onde o sentimento republicano é forte.
A rainha Letizia da Espanha discute com manifestante em Valência, na Espanha, durante visita a locais atingidos por enchentes históricas em novembro. — Foto: Hugo Torres/ AP
Felipe ouviu algumas vaias quando participou de uma homenagem aos mortos no ataque terrorista de 2017 em Barcelona, mas isso não foi nada em comparação à recepção de domingo.
Primeiro-ministro também atingido
No domingo, o primeiro-ministro da Espanha, Pedro Sánchez, foi levado rapidamente por sua equipe de segurança, depois de ser também atingido por pedras. Fernando Grande-Marlaska, ministro do Interior, relatou que “havia um perigo claro e (Sánchez) havia recebido uma pancada”.
O vidro traseiro do carro do primeiro-ministro foi quebrado. O ministro não especificou o que havia atingido o primeiro-ministro. Um dos guarda-costas de Letizia ficou com a testa ensanguentada.
Um juiz de instrução abriu um inquérito preliminar sobre a possível agressão.
Já o rei Felipe VI se manteve firme por mais de meia hora. Era impossível ouvir o que estava sendo dito, mas ele conversou com várias pessoas que gritavam, em um tom familiar e aparentemente sério.
Bartomeus, que não se considera um defensor fervoroso da monarquia, observou o que o rei não fez: ele não parece tratar o povo com condescendência.
O envolvimento de Felipe prometeu mais do que ele pode cumprir?
A rainha Letizia da Espanha consola uma moradora de Paiporta, em Valência, na Espanha, região fortemente atingida por enchente que matou mais de 200 pessoas, em 3 de novembro de 2024. — Foto: Carlos Luján/Europa Press via AP
No final do domingo, Felipe VI participou de uma reunião dos chefes de resposta a emergências em Valência, com Sánchez e outros políticos. Ele pediu a eles que dessem “esperança aos atingidos pela enchente e atendam às suas necessidades, garantindo que o Estado esteja presente para eles”.
Na segunda-feira, ele presidiu o comitê de crise do governo em uma base militar nos arredores de Madri.
Mas, segundo Nebrera, isso pode agravar seus problemas.
Em outras palavras, parece que ele está no controle.
“Se já existia uma certa confusão entre algumas pessoas sobre quais poderes o rei possui, ele agora corre o risco de que as pessoas pensem que ele é responsável por algo que não é”, diz.
″É muito provável que, independente de quantas reuniões ele coordene, só cheguem más notícias de Valência. Eles só vão encontrar mais e mais mortos.”
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