O presidente Lula (PT) assinou no final de março um decreto prevendo cotas para negros em cargos de chefia na administração federal. No entanto, um detalhe no texto resultou que as metas anunciadas não tenham efeito prático, pois já estavam praticamente cumpridas no momento do anúncio.
O decreto assinado por Lula prevê reserva de 30% das vagas em cargos de comissão para negros na administração pública federal direta, autarquias e fundações. O prazo para o cumprimento da meta, segundo o decreto, é dezembro de 2025.
Mais especificamente, o texto prevê que serão reservados 30% dos cargos CCE (Cargos Comissionados Executivos) e FCE (Funções Comissionadas Executivas) de níveis 1 a 12. O decreto ainda estabelece reserva de outros 30% dos cargos de níveis 13 a 17 —com maior remuneração e maior influência. O critério é a autodeclaração.
O texto utiliza o conceito de negro que abrange pretos e pardos. Por esse critério, as metas estabelecidas pelo governo já estão praticamente cumpridas.
Durante o anúncio, em março, a ministra Anielle Franco (Igualdade Racial) fez uma confusão com os conceitos ao explicar a proposta.
Ela afirmou em entrevista a jornalistas que se tratava de uma meta ambiciosa, considerando que os negros representavam menos de 5% dos cargos comissionados e, com o decreto, iriam passar para 30%.
"Hoje a gente está ainda levantando números exatos que temos, mas a gente sabe de outros históricos que eram números abaixo de 5%", afirmou na época.
A ministra se referia apenas ao porcentual de pretos nos cargos de comissão e confiança. Segundo dados de março do Painel Estatístico de Pessoal do governo federal, os pretos representavam 5,33% dos ocupantes de cargos de nível 1 a 12 e 5,55% de nível 13 a 17.
Seis meses depois, em setembro, esses índices passaram para 5,69% e 6,53%, respectivamente.
Contrariando a ministra Anielle Franco, os ministérios da Igualdade Racial e da Gestão e Inovação em Serviço Público explicaram que os números deveriam levar em conta pretos e pardos, como prevê o decreto.
Em resposta a questionamento feito pela Folha, a pasta comandada por Anielle afirmou que se tratou de um equívoco por parte da ministra.
"Sobre a declaração da ministra, a informação de 5% se referia à quantidade de pessoas autodeclaradas pretas em cargos de confiança no serviço público. Ao citar o dado sobre pessoas negras (pretos e pardos), a ministra acabou dando a informação somente referente a pessoas pretas", informou a pasta, em nota.
Ou seja, com a participação dos pardos, a meta de 30% já estava alcançada no momento da assinatura do decreto.
De acordo com dados do Painel Estatístico de Pessoal, enviados pelo Ministério da Gestão e Inovação em Serviço Público à Folha, o porcentual de pessoas negras (pretas e pardas) em cargos de confiança, no momento do anúncio da política de cota, em patamares inferiores (1 a 12) era de 39,6%, já superando com certa folga a meta.
Em relação aos níveis mais altos (13 a 17), o porcentual era de 29,23%. Ou seja, estava apenas 0,77 ponto percentual abaixo da meta.
O Ministério da Igualdade Racial informou em nota que, quando trabalhou na formulação do decreto, em fevereiro deste ano, havia uma grande quantidade de servidores que não declarava a sua cor e raça. Por isso trabalhou com dados desatualizados.
"Desta forma, embora os dados internos do Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos (MGI) [de fevereiro] indicassem que as pessoas negras ocupavam 36,93% dos CCE e FCE de níveis 1 a 12 e 24,84% dos CCE e FCE de níveis 13 a 17 , havia a necessidade de maior precisão e garantia de participação mínima de pessoas negras em todos os níveis da administração pública."
Por isso, acrescenta a pasta, o Ministério da Gestão realizou um processo de atualização cadastral, que terminou em 31 de julho, no qual se suprimiu o campo "não informado" sobre cor e raça.
"Desta forma, os dados constantes hoje do Painel Estatístico de Pessoal refletem a atualização cadastral concluída em 31 de julho de 2023, o que explica a mudança do percentual de pretos e pardos em cargos de nível 13 a 17 em fevereiro de 2023, em proporção maior do que indicavam os dados à época da formulação do decreto", completa.
O Ministério da Igualdade Racial acrescenta que o decreto representa uma fortalecimento das ações afirmativas, através da valorização da diversidade racial na burocracia estatal, do aperfeiçoamento dos cadastros e da garantia de representação em percentual não inferior a 30% de pessoas negras em espaços decisórios e de liderança.
Conclui ainda que o mínimo de 30% é apenas o início de um processo e reforça o "compromisso do governo federal em ampliar as oportunidades para a população negra dentro das estruturas e burocracias do Estado brasileiro".
As cotas para negros na administração pública federal foram a principal proposta apresentada em um grande evento no salão nobre do Palácio do Planalto, para celebrar o Dia Internacional da Luta pela Eliminação da Discriminação Racial.
O evento teve a presença de 13 ministros e muitos ex-ministros da extinta Secretaria Especial de Políticas da Promoção da Igualdade Racial, das gestões petistas anteriores.
"A verdade é que nenhum país do mundo será uma verdadeira democracia, enquanto a cor da pele das pessoas determinar oportunidades que elas terão ou não, ao longo de sua vida. Sem cidadania plena, não há democracia plena. Sem equidade de raça e gênero, tampouco haverá democracia", afirmou o presidente em seu discurso.
Lula ainda acrescentou que a população não pode se conformar porque "na Suprema Corte tem um negro! Ah, porque na Suprema Corte tem uma negra! Ah, porque no Ministério da Justiça tem um negro, tem uma negra! Não, a gente não tem que se conformar com o mínimo necessário".
Apesar dessa fala, Lula tem sido criticado pela sociedade civil e aliados por não indicar para o STF (Supremo Tribunal Federal) uma mulher negra. Ele já respondeu que gênero e cor não serão critérios para a escolha do próximo indicado ao Supremo, após a abertura de vaga com a aposentadoria de Rosa Weber.
Comentários
Aproveite ao máximo as notícias fazendo login
Entrar Registro