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Mercado bilionário de "bets" tira recursos do consumo e gera crises de dívida e saúde mental no Brasil

As apostas esportivas foram liberadas no Brasil em dezembro de 2018, com a previsão de que a regulamentação fosse feita em no máximo quatro anos, o que não aconteceu. No ano passado, o Congresso aprovou uma primeira parte da regulação enviada pelo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e uma segunda etapa com regras de operação definidas pelo Ministério da Fazenda entrará em vigor a partir de outubro.

Empresas de apostas proliferaram pelo país desde a liberação em 2018, mas foi depois da Copa do Mundo de futebol de 2022 que o investimento do setor realmente começou a crescer no Brasil.

No último ano, com a perspectiva de regulação, grandes sites internacionais, em parceria com empresas brasileiras, chegaram ao país com gastos massivos em propaganda, inclusive com patrocínio em praticamente todos os clubes de futebol de elite do país, além dos principais campeonatos.

A regulamentação prevê que as empresas de apostas, para operar no Brasil, precisam ter presença no país e um sócio nacional, entre outros requisitos, como o pagamento de uma outorga. O governo abriu um prazo para que as interessadas se inscrevessem, e recebeu 113 registros até o prazo final, em 20 de agosto.

Empresas como a MGM Resorts International, Betfair, de propriedade da Flutter Entertainment, a sueca Betsson AB e a maior empresa de cassino e entretenimento dos EUA, Caesars Sportsbook, estão entre aquelas que fizeram pedidos de registro, disse Regis Dudena, secretário de Prêmios e Apostas do Ministério da Fazenda.

A conta que o governo faz é de que, apenas nas outorgas para autorização de funcionamento, a arrecadação pode ser de até 3,4 bilhões de reais, sem contar os impostos que as bets regularizadas passarão a recolher aos cofres públicos.

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Mas, ao mesmo tempo que promete trazer investimentos e mais recursos para os cofres públicos, há indícios de que as bets estão tirando dinheiro da economia real.

Um relatório do Santander mostrou que, desde 2018, o percentual da renda familiar gasto com apostas passou de 0,8% para 1,9%, podendo chegar a 2,4%, de acordo com estimativas feitas com base em dados do Banco Central.

Ao mesmo tempo, o dinheiro reservado para compras de varejo, que incluem alimentos, roupas, móveis, eletrônicos, produtos de beleza e medicamentos, entre outros, perderam espaço. De um pico de 63% em 2021, chegou a 57% em 2023.

Outras pesquisas feitas com consumidores apontam que os brasileiros parecem estar tirando recursos de gastos regulares e do mercado de consumo para colocar em apostas. Uma delas, realizada em maio pela Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo, mostrou que 63% dos entrevistados afirmam ter tido parte de sua renda principal comprometida pelas apostas, sendo que 23% deixaram de comprar roupas, 19% de fazer compras em supermercados e 11% deixaram de pagar contas.

As empresas de apostas online contestam o impacto das bets no consumo e defendem que a queda veio com a pandemia da Covid-19, que manteve as pessoas em casa durante dois anos.

“O setor de varejo está usando as apostas como bode expiatório”, afirmou o advogado Luiz Felipe Maia, que representa uma dezena de empresas de apostas no Brasil. Ele destacou que uma das salvaguardas da lei de regulamentação aprovada em 2023 é a proibição da utilização de cartões de crédito nas apostas.

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RENDA COMPROMETIDA

Uma pesquisa feita na cidade de São Paulo pela Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (Fecomércio-SP) mostrou que 41% dos entrevistados passaram para as bets dinheiro antes usado para outros tipos de entretenimento. Mas 20% usaram recursos que iriam para pagamento de contas, e outros ainda deixaram de economizar dinheiro, comprar comida ou roupas para apostar.

"O que é muito preocupante é que 25% jogam porque esperam ter um ganho mais rápido, e 9%, para investir. Hoje o endividamento das famílias está sob controle, mas isso pode ter um impacto a médio e longo prazo no comprometimento da rendas dessas famílias", disse à Reuters a economista Kelly Carvalho, assessora técnica da Fecomércio-SP.

Uma pesquisa feita pelo Instituto Locomotiva no início de agosto mostrou que 79% dos apostadores entrevistados são das classes C, D e E, sendo 86% com dívidas e 64% com o nome sujo na praça. São pessoas, diz Renato Meirelles, presidente do instituto, que veem as bets como uma forma de pagar suas dívidas e ter retorno financeiro, em um negócio em que o lucro vem justamente de o apostador perder.

A partir de pesquisas qualitativas, Meirelles aponta que parte do dinheiro que vai para as bets vem do que seria usado para consumo. Não necessariamente do consumo de bens de primeira necessidade, mas daquilo que seria um extra -- um iogurte, uma pizza no final de semana.

"Esse dinheiro que alavanca a economia de baixo para cima, e é um dinheiro novo, na medida que ele não estava no consumo, também está sendo comido pelas bets e poderia estar indo direto para a economia", disse Meirelles.

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A Consultoria PriceWaterhouse fez um estudo em cima de dados da Pesquisa de Orçamento Familiar (POF), do IBGE, e aponta que os gastos com apostas subiram de 0,2% em 2018 para 0,7% no ano passado, e já representam 38% dos gastos com lazer e cultura.

"Apostas não são gastos planejados. Começa como entretenimento, com uma expectativa de ganho, e aí vem uma perda. E essa perda acaba vindo de recursos que iriam para outras coisas. Perdem compras que são excepcionais, como cultura e lazer, cuidados pessoais, até vestimentas. Na alimentação, as pessoas não vão deixar de comer, mas vai para o downgrade de marcas", explica Mauro Toledo, diretor da Strategy&, consultoria da PriceWaterhouse Brasil.

Toledo questiona também os recursos que supostamente a regulamentação vai trazer para a economia. Apesar do pagamento de impostos e taxas pelas bets, ele lembra que a maior parte das empresas estão localizadas fora do país e o único investimento que se vê de fato é o feito em marketing e publicidade.

"Não enxergamos outros investimentos que ficariam na economia", diz. Mesmo com a regulamentação e a obrigatoriedade de ter um sócio brasileiro, mas como a maior parte das empresas são online, o crescimento de empregos, por exemplo, tende a ser pequeno no Brasil.

"PAREI DE VIVER"

Diego, que falou à reportagem sob condição de não ter seu sobrenome revelado, reconhece que o seu consumo de fato caiu e suas dívidas aumentaram com as bets. A conta é que perdeu cerca de 50 mil reais em apostas, e ainda paga um empréstimo de 30 mil reais para tentar pôr suas contas em ordem.

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Aos 38 anos, o operador de máquinas começou a apostar considerando ser uma forma de investimento ao ser apresentado às apostas esportivas, em 2021, por um amigo. Por não acompanhar os esportes passou para os cassinos online, os chamados slots.

"Ganhava muito dinheiro, um dinheiro que nunca tinha visto, mas aí comecei a não ganhar mais. Perdi todo o dinheiro que ganhei na roleta. Aí comecei a usar meu salário, sempre na expectativa de repetir meus ganhos anteriores. Entrava dinheiro, eu perdia na roleta. Quando ganhava, não conseguia parar e continuava a apostar até zerar. Nisso foi atrasando aluguel, contas básicas, cartão de crédito", lembra.

Diego fez um empréstimo consignado para pagar as dívidas, mas continuou apostando. Usou o FGTS, perdeu todo o dinheiro das férias em um único dia. Parou quando sua esposa descobriu, mas chegou a ter uma recaída. Faz psicoterapia, participa de reuniões dos Jogadores Anônimos e toma remédios.

"Hoje eu sei que se eu entrar apenas uma vez, não vou conseguir mais parar de jogar até ficar zerado novamente", diz. "Praticamente parei de viver. Não passeava, não comprava roupas, não viajava. O que mais me afetou foi a falta de dinheiro e o desvio de caráter. Você mente, esconde. Esse vício é a pior coisa que tem", afirma.

Se nem todos os apostadores se tornam viciados, o impacto na saúde mental e nas contas das famílias é um fato. Já proliferam nas redes sociais grupos de apoio a viciados em jogo e a preocupação chegou ao Ministério da Fazenda. A regulamentação que entraria em vigor apenas em janeiro, foi antecipada, e empresas que não pediram a regulação terão que deixar de operar a partir de outubro, apesar da cobrança de impostos e taxas ter sido mantida para o ano que vem.

Ao anunciar a antecipação, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, disse que as apostas estão virando um problema social grave que o governo vai enfrentar.

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"(A antecipação da regulação) tem a ver com a pandemia que está instalada no país e que nós temos que começar a enfrentar, que é essa questão da dependência psicológica dos jogos", disse.

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