“Tive contato com minha família por meia hora. Ouvi a voz da minha mãe, do meu pai, do meu irmão Zuhdi, do meu irmão Ahmed, da minha irmã [Lozan], e pude falar com eles”, disse ela em entrevista ao g1, explicando que, nos 27 dias anteriores, só conseguiu receber algumas mensagens curtas de texto, devido ao fraco sinal de internet.
Segundo Ronza, no sábado passado eles estavam com um dos celulares carregados e notaram que o sinal de comunicação estava mais forte. Arriscaram uma chamada de telefônica que saiu de Rafah, na fronteira de Gaza com o Egito, e tocou no telefone da engenheira, na Zona Sul de São Paulo, por volta das 9h30 no horário local.
Ela também tem um terceiro irmão e uma segunda irmã, que atualmente estudam medicina no Egito e estão a salvo.
Foto antiga da família AbuJayyab tirada por Ronza mostra os pais, à frente, e seus três irmãos e duas irmãs; todos, com exceção de um irmão, uma irmã e Ronza, estão presos no sul da Faixa de Gaza, esperando a chance de entrarem no Egito — Foto: Arquivo pessoal
O alívio ainda não é completo, porque a família de Ronza está abrigada em um espaço superlotado e em condições precárias, já que tiveram que abandonar o vilarejo litorâneo de Al Zahra, ao sul da Cidade de Gaza, depois que Israel anunciou um bombardeio que destruiu mais de 20 construções no entorno da casa da família, incluindo o Hospital Árabe Al Ahli, onde a mãe de Ronza deu à luz ela e os dois irmãos homens.
“São cerca de 7 mil moradores nessa área. Deram 15 minutos para saírem de casa e depois soltaram muitas bombas. Foram 25 prédios destruídos. Minha família dormiu na rua e depois fugiu para o sul de Gaza”, disse ela, que tem uma preocupação especial pela avó, Refa, de 88 anos.
Agora, eles têm dificuldade para acessar água e comida, dormem em condições precárias e contam com uma pequena placa solar para carregar todos os celulares da família.
Tentando evitar que outro de seus parentes tenha o mesmo destino que o marido de Refa e avô paterno de Ronza, que morreu quando o pai dela tinha apenas três anos, a palestina refugiada no Brasil tenta junto ao Itamaraty iniciar um processo de união familiar para que a família AbuJayyab possa ser incluída na lista de cidadãos autorizados a entrar no Egito. Segundo o Ministério de Relações Exteriores do Brasil, 34 pessoas integram a lista atual.
Ronza mostra foto do pai, Sameer, e da mãe, Nawal, guardada no telefone — Foto: Ana Carolina Moreno/TV Globo
Entre 11 e 22 de outubro, o governo federal transportou 1.413 pessoas de Israel até o Brasil na operação Voltando em Paz. Em 2 de novembro, foram outras 32 pessoas que estavam na Cisjordânia e cruzaram a fronteira com a Jordânia para depois voar para a América do Sul. A grande maioria das pessoas resgatadas são brasileiras, mas, segundo o Itamaraty, foram transportados três bolivianas, um palestino e um jordaniano nos nove voos realizados até agora.
Um aeronave pequena já voou até a Europa e aguarda a permissão para que os brasileiros em Gaza possam entrar no Egito, onde serão transportados até a capital, Cairo, e poderão embarcar em direção ao Brasil.
Segundo Edgard Raoul, o advogado brasileiro que tenta junto ao governo brasileiro o resgate da família AbuJayyab, a ajuda que eles pedem é para que os sete parentes sejam incluídos na lista de 34 pessoas que solicitaram a repatriação ao governo brasileiro. “A gente não quer onerar o Estado brasileiro, a gente só quer que o Estado brasileiro inclua esses palestinos no grupo da evacuação”, explica o advogado, que já patrocinou a vinda de Ronza e Akram ao Brasil e os hospeda até hoje em sua casa.
O processo que eles tentam colocar em marcha é o de união familiar, previsto na legislação para autorizar a ida a um país de cidadãos de outros países, quando eles já têm algum parente próximo com residência oficial lá.
De acordo com ele, o governo brasileiro tem dialogado com a família para analisar a situação. “Mas urgência deles não é a nossa urgência. Eles têm o tempo deles. Está difícil para eles. Já foi muito difícil tirar os americanos de lá”, afirma o advogado sobre as negociações para que a lista do Brasil seja adicionada às planilhas diárias de cidadãos autorizados a deixar Gaza.
Ronza e Akram atravessaram essa fronteira em 2017, logo após eles se casarem e decidirem tentar uma vida com mais segurança fora da Faixa de Gaza.
Foto de Ronza durante a cerimônia de formatura na faculdade de engenharia mecatrônica da Universidade Al Azhar, em Gaza — Foto: Arquivo pessoal
Pesou na decisão as lembranças das três guerras que ambos enfrentaram desde que nasceram em Gaza, já na condição de refugiados, porque a família havia sido forçada a sair de Yasur, uma cidade ao sul da fronteira atual entre a Síria e o território de Israel, a pouco mais de 150 quilômetros da Faixa de Gaza.
A guerra mais terrível que viram de perto foi a de 2014, que durou 51 dias e deixou 2.251 palestinos mortos (incluindo 551 crianças e 299 mulheres), e fez 72 vítimas fatais do lado israelense, sendo 66 soldados, cinco civis e uma criança.
Na época, ambos já tinham concluído a graduação e estavam fazendo mestrado. Eles conseguiram bolsas de estudo para terminar a pós-graduação no Chipre, mas não conseguiram se mudar para lá, e acabaram indo morar no Egito e abandonando o mestrado.
Ronza em um laboratório onde trabalhou como engenheira mecatrônica antes de conseguir se mudar para o Brasil — Foto: Arquivo pessoal
Mas a passagem pela fronteira de Rafah, que separa o sul de Gaza e o Egito, foi o primeiro obstáculo. Ao contrário de outras fronteiras entre países, a passagem não abre todos os dias. Em 2017, segundo um monitoramento feito pelo Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários, ela ficou fechada em 90% do ano, e só permitiu o fluxo de pessoas em 36 dos 365 dias.
A solução para eles foi acampar na fronteira por quase duas semanas, em protesto com outros palestinos, até ela ser aberta por pouco mais de três dias e eles conseguirem passar com cerca de outras dez mil pessoas.
“Foi uma situação muito difícil. Fazia muito frio à noite e dormimos na rua. Você não precisa de mais de 100 dólares para viajar de Rafah até Cairo, mas tinha gente cobrando mais de 1.500 dólares para cruzar a fronteira e ter uma chance de viajar. É muito caro e difícil para as pessoas.”
Quando se estabeleceram no Egito, tentaram pela primeira vez obter um visto para viajar até o Brasil. Mas o pedido foi negado porque eles não tinham residência fixa, já que o país vizinho ao deles não reconhece os palestinos como refugiados.
Os recém-casados ficaram por um ano e meio no Egito, mas decidiram se mudar para a Turquia em busca de condições melhores. Viveram lá por três anos e meio, mas também em condições pouco favoráveis. “Existem mais de três milhões de sírios refugiados na Turquia, eles não têm como receber mais refugiados”.
Foi por meio da embaixada do Brasil em Istambul que finalmente conseguiram um visto para entrar como turistas no Brasil.
Ronza AbuJayyab e o marido, Akram, no apartamento em que vivem na Zona Sul de São Paulo desde agosto de 2022 — Foto: Ana Carolina Moreno/TV Globo
Aterrissaram no aeroporto internacional de Guarulhos em 9 de agosto de 2022. “Pesquisamos sobre o Brasil e vimos que eles se importam muito com os refugiados”, explicou Ronza, que diz que essa impressão foi confirmada em sua primeira incursão fora de casa.
"Na primeira semana eu fui ao supermercado e estava procurando um produto. Eu não falava uma palavra de português e estava tentando usar o tradutor. Algumas mulheres se aproximaram e começaram a conversar comigo. Perguntaram o que eu queria cozinhar, de quais ingredientes eu precisava, e foram me ajudando. Foram muito, muito gentis, essa foi a minha primeira impressão.”
A engenheira tem feito aulas de português desde que chegou e, apesar de ainda não ter conseguido emprego na área, atualmente faz um trabalho voluntário no laboratório de robótica de um colégio particular na Zona Sul da capital, onde tem a chance de praticar a língua e conviver com brasileiros.
O processo de reconhecimento da condição de refugiado, que durou pouco mais de um ano, também foi elogiado pelo casal pela agilidade. “Se tivéssemos morado dez anos na Turquia, mesmo assim não teríamos direito à residência permanente”, compara Akram.
Há 15 meses, o casal palestino tenta recomeçar a vida estudando português para conseguirem trabalhar em São Paulo — Foto: Ana Carolina Moreno/TV Globo
Agora, os dois tentam garantir a mesma segurança para a família que permanece presa em Gaza. Akram só tem a irmã lá porque seus pais e irmãos vivem nos Estados Unidos e nos Emirados Árabes Unidos (EAU). A irmã, inclusive, estava na última etapa de um processo de reunificação familiar para se mudar para os Estados Unidos, mas ele foi pausado por causa da guerra.
Edgard Raoul explica que, pela legislação brasileira, daqui a três anos Ronza e Akram poderão pleitear a cidadania brasileira. Uma alternativa que estão avaliando é saber se esse período pode ser acelerado, para que o status da família deles mude para “parentes de cidadãos brasileiros”.
O processo para essa e outras famílias também seria facilitado caso o governo brasileiro decida aplicar à situação dos palestinos o mesmo programa de visto humanitário já feito em outros momentos para cidadãos do Haiti, da Venezuela, de Burkina Faso e do Afeganistão.
A urgência, de acordo com o advogado, é pelo risco de o casal que ele acolheu assistir de longe à morte de parentes. Desde o início da guerra, um dos ataques matou uma amiga próxima da família, que chegou a participar da cerimônia de casamento dos dois.
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