- Author, Carolina Drake
- Role, BBC Travel
21 minutos
Famosa pela vida noturna, pelas praias, pelo design Art Déco e pela eclética cultura latina, Miami é uma das cidades mais jovens dos EUA.
No entanto, é construída sobre uma das civilizações indígenas mais antigas do país norte-americano, algo que muita gente desconhece e que que foi revelado por uma série de descobertas arqueológicas recentes.
Aproximadamente do ano 500 a. C. até meados do século 18, a área onde hoje está a "cidade do sol" era habitada pela civilização Tequesta, um dos primeiros povos a ocupar o sudeste da Flórida.
Os Tequesta se estabeleceram perto da foz do rio Miami e da Baía de Biscayne e construíram uma sociedade costeira próspera junto a uma ampla rede comercial.
Hoje, o Estado da Flórida está localizado em terras ancestrais dos povos nativos Tequesta, Seminole e Mikasuki.
Os Mikasuki (originalmente parte da nação Creek) migraram do Alabama e da Geórgia para a atual Flórida antes da região ser conhecida como Estados Unidos.
Após a Lei de Remoção de Indígenas de 1830, nativos americanos residentes no sudeste dos Estados Unidos foram removidos à força de suas terras e direcionados ao oeste, mas estima-se que por volta de 100 pessoas tenham se escondido no conjunto de zonas úmidas que hoje são conhecidas como Everglades.
Os atuais Mikasuki, Seminole e membros de outros grupos da Flórida são descendentes diretos daqueles que nunca desistiram e permaneceram na região.
Um povo que resiste
A 56 quilômetros a oeste do centro de Miami, Osceola, ativista ambiental e membro dos Mikasuki, mergulha os visitantes no passado indígena da região, guiando-os pelos Everglades. Ela é dona de uma empresa de turismo chamada Buffalo Tiger Airboat Tours, que opera no parque nacional.
Nos últimos 12 anos, Osceola e uma equipe de guias liderados por povos indígenas conduziram visitantes por vastas áreas cobertas por ciprestes, locais conhecidos como "ilhas de árvores" e manguezais, enquanto as educavam sobre o povo Mikasuki.
Os passeios de aerobarco começaram no final da década de 1980 com William "Buffalo" Tiger, o último chefe tradicional dos Mikasuki, cujo sonho era educar as pessoas sobre o meio ambiente na tribo nos Everglades.
Como parte do passeio, os visitantes podem ir à Ilha Tear, onde morava a família de Tiger. Os guias explicam como era a vida dos mikasuki nas cabanas de palha da ilha.
Osceola diz que os visitantes muitas vezes ficam surpresos com o fato de os nativos americanos “ainda existirem” na área de Miami. “Eles acreditam que os povos indígenas estão apenas nos livros de história e que não vivem e respiram aqui hoje”.
“Nós nos esforçamos para mostrar às pessoas a beleza e a importância dos Everglades, da nossa cultura e fazer com que saibam que ainda estamos aqui.”
Além dos passeios de barco, ela também educa outras pessoas sobre o passado indígena e as terras tradicionais da Flórida por meio de caminhadas públicas de oração (marchas para orar por água e defender a terra).
Ela é membro do Clã Pantera Mikasuki. A criatura que dá nome ao grupo está associada à proteção dos Everglades.
A família de Samuel Tommie, artista indígena que vive em Everglades, foi uma das últimas a habitar as "tree islands" (ilhas de árvores, em tradução direta).
"Era um paraíso muito lindo, e esse era o meu mundo enquanto eu crescia. Os pássaros cantando, as panteras e os ursos negros correndo. Hoje, a área tem desafios físicos, mas ainda é espiritualmente densa."
“Há muita história sobre nosso povo e o que nossa tribo fez para defender o meio ambiente. Se você visitar a comunidade Mikasuki, terá uma ideia de nosso modo de vida”, diz ele.
Sem conversa
Fora da comunidade Mikasuki, no entanto, esses vestígios do passado da região de Miami são difíceis de encontrar.
“Quando você visita Miami, não há indicação de que algum povo indígena tenha vivido lá ou esteja atualmente na área, a menos que você visite o Miami Circle”, disse Osceola, referindo-se a um local arqueológico que se tornou um marco histórico nacional.
“Ainda não tenho certeza se as pessoas realmente prestam atenção na estátua [da Tequesta] que fica perto do local”, ela diz.
Descoberto em 1998 durante a construção do movimentado e luxuoso bairro de Brickell, no centro de Miami, o Miami Circle tem 2.700 anos.
É um círculo com 24 buracos escavados em um leito de calcário.
Também chamado de "Stonehenge da América", era um local comercial e cerimonial para a civilização Tequestan. Pressão pública nacional e internacional fez com que o Estado da Flórida comprasse o terreno de uma incorporadora por US$ 27 milhões (atualmente equivalente a R$ 132 mi) para preservá-lo como local histórico.
Embora tenha sido salvo de ser destruído para construir um arranha-céu, hoje o círculo ainda não é exibido como um monumento aos nativos americanos e muitos moradores locais o confundem com um parque para cães.
“[Os povos indígenas] usavam esta área [na beira do rio Miami] para caçar, pescar, viajar e se reunir em comunidade e celebração. Esses locais têm grande história e importância e devem ser respeitados e honrados”, afirmou Osceola em uma oração pública realizada em Brickell.
Desde 1981, arqueólogos determinaram que as áreas que margeiam o rio Miami, em Brickell, contêm um grande número de vestígios indígenas antigos. Mas nos últimos anos, a área se tornou um dos bairros que crescem mais rápido na cidade.
A verdade é que à medida que surgem cada vez mais arranha-céus e hotéis de luxo, empreiteiras continuam desenterrando antigos sítios indígenas, como um descoberto em 2021 na 444 Brickell Avenue.
Os arqueólogos estão atualmente removendo os objetos encontrados para que a construção possa continuar.
Mas Osceola e outros membros da tribo estão defendendo o fim das escavações na área. Suas vozes, segundo ela e outros disseram, estão sendo deixadas de fora da conversa.
“O sul da Flórida tem uma rica mistura de culturas e etnias, mas as tradições estão perdidas. Ainda é importante preservarmos quem somos, nossa cultura e tradições”, disse Talbert Cypress, presidente oficial do Conselho Empresarial Mikasuki.
“Corremos o risco de perder o que Miami realmente é e nos tornarmos só mais uma grande cidade.”
Até o momento, arqueólogos encontraram um milhão de artefatos, restos humanos, ferramentas e ornamentos feitos de ossos e conchas de animais que datam dos séculos 500 e 600 a.C. no local da avenida Brickell.
Enquanto Osceola e outros continuam educando visitantes sobre a sua importância, o futuro do local continua em disputa entre construtores e aqueles que defendem a sua proteção como local histórico.
Enterrar o passado
Perto dali, o artista indígena e autoproclamado “arqueólogo amador” Ishmael Bermúdez defende a preservação do local. Ele vem fazendo esse trabalho há anos.
Ele cresceu em um bangalô da década de 1920 no bairro de Brickell e diz que era o morador mais velho de lá. Ele se recusou repetidamente a vender sua residência a empresários que queriam construir na área. Mas no início deste mês, sentiu que não tinha escolha senão sair de casa.
Depois que a cidade aumentou os impostos sobre suas propriedades, seus irmãos decidiram colocá-las à venda. Embora tenha resistido, ele acabou sendo despejado pelo xerife do condado de Miami-Dade.
Bermudez passou mais de meio século escavando seu porão e quintal, desenterrando artefatos usados em antigos rituais dos nativos americanos, fósseis, objetos pré-históricos e até mesmo um poço de água mineral.
Com o passar dos anos, ele transformou seu humilde bangalô no que chama de Poço dos Antigos Mistérios, que às vezes era aberto ao público. Sua casa era parada obrigatória para ativistas e representantes indígenas que vieram à cidade para ajudar a salvar o Miami Circle após sua descoberta em 1998.
Para Bermúdez, o valor da sua casa não pôde ser calculado. “Não se trata de dinheiro. Trata-se de preservar a história ”, disse ele antes de se mudar. Com o passar dos anos, o número crescente de arranha-céus bloqueou a visão do nascer do sol. “Só vejo estrelas quando vou para Everglades, não aqui”, explicou ele.
Depois de conhecer Bermúdez em 2018, a artista local Jaqueline Gómez começou a fotografar os sítios indígenas americanos que descobriu. “No começo eu não acreditei nele”, ela admitiu.
Ela então passou um tempo pesquisando a história do povo Tequesta e percebeu que Bermúdez estava falando sério.
“Eles não ensinam isso na [escola]”, acrescentou. Na verdade, Bermudez não ficou surpreso quando o Miami Circle foi descoberto a apenas seis quarteirões ao norte de sua casa.
Em 2020, Gómez publicou o livro The Tequesta of Biscayne Bay, que documenta como os sítios indígenas de Miami continuam fazendo parte da paisagem da cidade.
As fotografias incluem a casa de Bermudez, o Miami Circle, a Met Square (cidade pré-histórica descoberta em 2014), entre outras. “Eles encontraram muitos outros às margens do rio Miami”, diz Gómez. “Ainda não entendo como a cidade decidiu quais seriam protegidos e quais não.”
No entanto, tendo crescido aqui, Gómez está ciente da tendência de Miami de enterrar o seu passado, deixando as tribos nativas americanas numa batalha constante por sua soberania e direitos à terra.
“É uma batalha perdida porque esses desenvolvedores sempre tendem a vencer”, acrescentou.
À medida que os últimos vestígios do passado indígena de Miami continuam a ser concretados, o risco é que o mesmo aconteça com a sua história.
“Se as pessoas não conhecerem ou não se importarem com os locais indígenas de Miami, ninguém os salvará”, diz Bermúdez.
Mas à medida que mais ativistas continuam a se juntando aos apelos de Osceola para preservar o passado indígena da cidade, talvez os visitantes tenham uma noção melhor da história escondida sob os seus pés.
Para ler a versão em inglês desta reportagem, clique aqui.
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