Chamada de ECA Digital, por modernizar o Estatuto da Criança e do Adolescente, a ideia é tão cativante que une de governistas a bolsonaristas. E promete ser uma das frentes a dominar o debate parlamentar sobre regulação de plataformas digitais. Entender as implicações de o YouTube ver como ameaça justamente o projeto de lei que une os gregos e troianos da política brasileira envolve olhar atentamente o modelo de negócio da plataforma e o momento geopolítico em que vivemos.
O que rolou?
Criado pelo senador Alessandro Vieira (MDB-SE), o PL 2628/2022 passou pelo Senado sem despertar tantas emoções como o Marco da Inteligência Artificial ou o julgamento do Marco Civil da Internet no Supremo Tribunal Federal. Ainda assim, o texto traz componentes de regulação das redes, já que:
- Obriga empresas de redes sociais e jogos eletrônicos a proteger a segurança online, a privacidade e as informações pessoais de crianças e adolescentes no ambiente digital. Entre as medidas, estão...
- ... Criar mecanismos para verificar a idade dos usuários...
- ... Impor a supervisão do uso por pais, mães e responsáveis...
- ... Impedir o uso por crianças e adolescentes quando a aplicação não for desenvolvida ou adaptada elas...
- ... Criar sistemas de notificação de abuso sexual...
- ... Oferecer configurações que resguardem a privacidade e os dados pessoais do público infantojuvenil...
- ... Prevenir e mitigar práticas como bullying, exploração sexual e padrões de uso que incentivem vícios e transtornos diversos. Há ainda...
- ... A obrigatoriedade de limitar a comunicação entre adultos e menores de idade, restringir o tempo de uso, proibir as "caixas de recompensa" (as "loot boxes" dos jogos de azar) e o perfilamento para publicidade. Porém...
- ... São, ao menos, três as pedras no sapato do YouTube:
- como redes sociais serão obrigadas a vetar conteúdo que atraia criança, a plataforma teme que sejam barrados não só os vídeos problemáticos, mas também os conteúdos pedagógicos e educacionais;
- por precisarem garantir que crianças não estão se passando por adultos, redes sociais deverão checar documentos de identidade e ter a efetividade de suas ações informada à ANPD (Agência Nacional de Proteção de Dados). Por não se considerar uma rede social, o YouTube julga ser um tratamento excessivo;
- o controle parental obrigatório é outra questão, pois o YouTube considera que esse controle impõe a crianças e adolescentes de idades diferentes o mesmo monitoramento dos responsáveis, o que pode impedir a autonomia deles em alguns casos.
Por que é importante?
Internamente, a avaliação no YouTube não poupa palavras:
Entendemos que, do jeito que está, essa lei bane o conteúdo feito para crianças no YouTube
Interlocutor da plataforma
Acontece que vídeo para criança é coisa de gente grande na plataforma, que acaba de completar 20 anos. Nessas duas décadas, quatro dos cinco vídeos mais assistidos são voltados a crianças.
Os pontos descritos acima ainda não foram levantados publicamente pelo YouTube ainda. Devem aparecer nas negociações na Câmara. Durante audiência pública no Senado em março, a preocupação foi detalhar o funcionamento da plataforma e sua importância para youtubers.
Se não puderem gerar receita com seus conteúdos, os criadores de conteúdo infantil seriam forçados a mudar seu modelo de negócio
Alana Rizzo, gerente de políticas públicas do YouTube
Para Isabella Henriques, diretora-executiva do Instituto Alana, organização que atua no campo da infância e adolescência, o contraponto aos pontos de atenção do YouTube estão no próprio projeto de lei. No caso da indicação etática, o texto estende, diz ela, à plataforma algo que já é exigido da televisão, um meio de comunicação com que o YouTube se compara frequentemente. Para o controle parental, "o Youtube poderá agregar seu conhecimento no sentido de desenvolver a melhor ferramenta para informar as famílias".
Ao dizer que o PL acabaria com o conteúdo infantil, a plataforma parece estar dizendo que não quer se adequar à prioridade absoluta dos direitos de crianças e adolescentes prevista na Constituição e nas normas que nela se inspiram, como é o caso do pl 2628/2022
Isabella Henriques, diretora-executiva do Instituto Alana
Não é bem assim, mas está quase lá
A discussão retorna agora porque a proposta chegou à Câmara. No dia em que o projeto foi distribuído para comissões temáticas, a diretora de relações governamentais do YouTube para Américas, Alexandra Veitch, estava no Brasil para conversar com autoridades em Brasília.
A coluna apurou que um dos temas abordados foi a preocupação com o PL 2628/2022. Outro dos tópicos foi a chegada do uso de inteligência artificial para verificar a idade de usuários, ferramenta anunciada pelo CEO do YouTube Neal Mohan em carta divulgada há duas semanas e cujo teor foi adiantado pela coluna. Começará no fim do ano nos Estados Unidos e no começo de 2026 no Brasil.
Fora tudo isso, há no projeto do ECA Digital um dispositivo espinhoso:
Para atender ao princípio da proteção integral, é dever dos produtos ou serviços de tecnologia da informação direcionados ou que possam ser utilizados por crianças e adolescentes proceder à retirada de conteúdo que viola direitos de crianças e adolescentes assim que forem comunicados do caráter ofensivo da publicação, independentemente de ordem judicial
Artigo 16 do PL 2628/2022
Por obrigar a exclusão de vídeos mesmo sem decisão judicial, esse trecho avança sobre o que determina o Marco Civil da Internet, que torna as empresas responsáveis por conteúdo de terceiros apenas se descumprirem ordens da Justiça —muitas delas são para tirar coisas do ar. Para os mais sugestionados, pode significar uma tentativa de censura —ainda que se trate de conteúdo direcionado a crianças. E isso tem um potencial de colocar o Brasil em rota de colisão com a Casa Branca.
Quem acompanha o embate entre o ministro Alexandre de Moraes, do STF, e a plataforma Rumble sabe que Donald Trump está disposto a se empenhar pessoalmente. Sinal disso foi o processo de uma empresa do presidente norte-americano contra o magistrado. Outro indicativo foi a decisão de uma comissão de aprovar uma lei para banir do território norte-americano autoridades de outros países consideradas censoras.
Ainda há um longo caminho, tanto no Brasil quanto nos EUA, para as duas propostas viraram lei. Não é improvável, porém, que seus rumos se cruzem e isso possa interferir nos vídeos que tocam no celular do seu filho.
DEU TILT
Toda semana, Diogo Cortiz e Helton Simões Gomes conversam sobre as tecnologias que movimentam os humanos por trás das máquinas. O programa é publicado às terças-feiras no YouTube do UOL e nas plataformas de áudio. Assista ao episódio da semana completo.

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