Hannah Kreager é uma mulher branca que usa óculos de grau e tem cabelos castanhos claros

Crédito, Cortesía de Hannah Kreager

Legenda da foto, Hannah Kreager saiu do Arizona em abril rumo ao Canadá. Ela aguarda decisão sobre seu pedido de asilo político
    • Author, Leire Ventas
    • Role, Correspondente da BBC News Mundo em Los Angeles
    • X, @leire_ventas
  • Há 5 minutos

"Tenho que sair daqui o quanto antes", disse Hannah Kreager para si mesma.

Era início de abril e a americana — que é uma mulher transgênero —, de 22 anos, já vinha trabalhando a ideia de deixar os Estados Unidos.

Diante do que ativistas e organizações descrevem como um contexto cada vez mais hostil para a comunidade LGBTQIA+, Kreager começou a tomar algumas precauções.

Deixou de usar banheiros públicos e passou a evitar multidões. Também começou a estocar medicamentos para terapia de reposição hormonal, com medo que o governo federal proibisse o atendimento médico para afirmação de gênero em adultos depois de ter rotulado esse cuidado para menores como "mutilação química e cirúrgica".

A norma permite que o governo federal use tropas para controlar uma possível rebelião em seu território, e a jovem passou a se perguntar o que seria dela caso fosse parada pelas autoridades e pedissem sua identificação.

Ela já havia renovado a carteira de motorista para que os dados coincidissem com seu nome legal e sua identidade de gênero.

"Mas eu me preocupava com o passaporte", explicou.

É que esse documento a identifica com o nome que ela tinha antes da transição e com o marcador de gênero X, algo que os EUA deixaram de fazer em janeiro, quando Trump decretou que deve ser política do governo reconhecer apenas dois sexos: masculino e feminino.

Formulário de passaporte

Crédito, AFP via Getty Images

Legenda da foto, Desde que Trump voltou à Casa Branca, o governo deixou de emitir passaportes com o marcador de gênero X para pessoas não-binárias

O que aconteceria se não considerassem aquilo uma identificação válida? Para onde a levariam? Que opções teria?

As perguntas se acumulavam.

"Então, eu decidi que não estava disposta a correr nenhum risco, mesmo que até hoje não tenha sido imposta a lei marcial", admitiu.

Assim, se despediu de seus amigos em Tucson, cidade no Arizona que faz fronteira com o México, colocou seus objetos pessoais em um carro e, com apoio de sua família, dirigiu rumo ao norte, até a fronteira com o Canadá, onde solicitou asilo.

Hoje, ela espera a decisão de seu caso em Calgary, a principal cidade da Província de Alberta. Se receber o status de proteção, seu caso abrirá um precedente, segundo sua representante legal, Yamena Asari.

Segundo Asari, ela recebe cada vez mais clientes norte-americanos interessados em seguir os passos de Kreager.

Enquanto isso, os dados publicados na semana passada pela Junta de Imigração e Refugiados do Canadá mostram que mais americanos solicitaram o status de refugiados no no país na primeira metade de 2025 do que em todo o ano de 2024.

Os americanos compõem uma pequena parte do total de solicitantes de asilo no Canadá — são 245 de 55 mil — e sua taxa de aceitação tem sido historicamente baixa.

E os solicitantes de asilo de outros países que cruzam a fronteira terrestre a partir dos EUA costumam ser "devolvidos" devido a um acordo bilateral que estabelece que devem pedir asilo no primeiro país "seguro" ao qual chegarem.

Leis "antitrans"

"Solicitar asilo geralmente não é a primeira opção, por vários motivos", reconhece Ansari.

"Leva muito tempo para ser resolvido, até dois anos, e não há garantias de que será concedido. Então, a incerteza para o cliente é grande, e isso ainda implica não poder voltar ao país de origem", explica.

Mas, pelo perfil de Kreager — recém saída do ensino médio, tendo trabalhado na pizzaria de sua mãe — não parecia viável aplicar para um visto especializado, de talento ou negócios, por exemplo.

Diante das leis de gênero aprovadas ou sendo consideradas em vários estados americanos, além das ações tomadas pela administração de Trump para revogar programas federais e departamentos criados por governos anteriores em apoio ou proteção à comunidade LGBTQ+ em geral, decidiram recorrer ao asilo.

De acordo com o Trans Legislation Tracker, uma iniciativa independente que monitora projetos de lei que impactam as pessoas trans nos EUA, até agora foram aprovadas 121 legislações desse tipo e outras 981 estão sendo consideradas, tanto em nível estadual quando federal.

É um aumento substancial em relação ao ano anterior, quando todos os recordes já haviam sido superados.

Em apenas dois anos, passou-se de nenhuma iniciativa nacional desse tipo registrada para um total de 88 em 2024.

Trump levantando um papel com as ordens assinadas. Há uma multidão em volta

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Donald Trump assinou uma série de ordens que impactam pessoas transgêneras e não binárias

Entre os projetos de lei apresentados até agora em 2025, há aqueles que pretendem legislar sobre educação, como os que buscam eliminar as referências ao que chamam de "ideologia de gênero" do material escolar, ou aqueles que obrigariam a revelar aos pais a identidade trans de alunos.

Outros abrangem o setor de saúde — como a proibição dos serviços de afirmação de gênero para mentores — ou esportivo. De fato, mais de um terço dos estados há aprovaram leis que proíbem atletas transgêneros a participar em competições femininas.

Mas também existem iniciativas em outras categorias, que vão desde os direitos civis até as isenções religiosas, passando pelo uso de pronomes e o acesso ao serviço militar.

E praticamente nenhum estado está livre disso: as câmaras legislativas de 49 dos 50 Estados dos EUA estão avaliando esse tipo de projeto de lei.

A isso se soma a enxurrada de ordens executivas assinadas por Trump desde que assumiu a presidência, em janeiro.

Entre elas estão as intituladas "Acabando com a doutrinação radical nas escolas", "Protegendo menores da mutilação química e cirúrgica" e "Mantendo homens afastados os esportes femininos".

Sobre essa última, em 16 de abril, a procuradora-geral Pam Bondi disse:

"Esta tem sido uma causa enorme para ele [Trump]. E é bastante simples: as meninas competem em competições esportivas femininas. Os homens, nas masculinas."

Nessa linha, a GLAAD — uma organização sem fins lucrativos que defende a eliminação da discriminação baseada na identidade de gênero e orientação sexual — documentou, durante os 100 primeiros dias de Trump na Casa Branca, o que considera 225 ataques anti-LGBTQ+.

Diante disso, a advogada Ansari apresentou formalmente o pedido de asilo em 1° de junho, sob o argumento que sua cliente "teme perseguição em seu país devido às políticas antitrans da administração atual".

Medo de perseguição

O processo para pedido de asilo no Canadá não é muito diferente de outros países.

O solicitante deve demonstrar que seus medos de perseguição estão relacionados com sua raça, religião, nacionalidade, grupo social a que pertence ou opinião política, e que sua vida corre perigo ou que corre risco de enfrentar tortura ou um tratamento cruel.

Também é preciso provar que não pode obter proteção do Estado e nem se realocar de forma segura dentro do próprio país.

Diante da pergunta se considerou, assim como alguns de seus compatriotas transgêneros, mudar para Estados com maior proteção, Krager foi firme: "Nenhum Estado é seguro".

"Mesmo se ela tivesse feito isso, se tivesse se instalado na Califórnia, Nova York ou Illinois, ainda haveria serviços federais aos quais gostaria de acessar e que a afetariam, como o de modificar seu passaporte para que refletisse seu gênero correto", explica a advogada de Krager.

Depois que um agente de imigração canadense avalia a elegibilidade do pedido e sua admissibilidade no país, ele é encaminhado à Junta de Imigração e Refugiados do Canadá para decidir sobre o caso.

Foto de um passaporte americano

Crédito, AFP via Getty Images

Legenda da foto, Hannah tinha medo de que pedissem seu passaporte em uma abordagem, já que o documento tem o nome que ela tinha antes da transição

"Com base nos meros fatos, minha cliente tem um caso sólido", afirma Ansari, que trabalha há anos trabalhando com solicitantes de asilo de outros países, sobretudo provenientes da África Ocidental e de países árabes.

"Definitivamente vejo muitos paralelos entre esses casos e a experiência de Hannah. Estamos falando que, em certos estados, pessoas como ela, americanas como ela, poderiam não ser reconhecidas."

Apesar isso, a advogada admite que existem outros fatores em jogo, como a possível falta de compreensão no Canadá do contexto sociopolítico dos EUA e um sentimento anti-imigração crescente.

Sentimento anti-imigração

O sentimento anti-imigração é mostrado pelas pesquisas.

A última edição do Focus Canadá, realizada pelo Instituto Environics desde 1976 em parceria com o Instituto de Diversidade da Universidade Metropolitana de Toronto, concluiu em novembro que "pela primeira vez em um quarto de século, uma maioria de canadenses diz que há imigração demais".

Segundo o levantamento, 6 em cada 10 (58%) canadenses acreditam que o país aceita muitos imigrantes, 14% a mais do que em 2023, quando já havia sido registrado um aumento de 17 pontos em relação ao ano anterior.

O percentual é maior entre os eleitores do Partido Conservador (80%) do que entre os do Partido Liberal (45%) ou dos social-democratas do Novo Partido Democrático (36%), embora o aumento seja comum e equivalente.

Outra pesquisa, publicada também em novembro e realizada pelo Museu Canadense pelos Direitos Humanos, mostrou um panorama similar, com 56% dos entrevistados afirmando que os refugiados e solicitantes de asilo "recebem benefícios demais" no Canadá.

O percentual na edição do ano anterior foi de 49%.

A pesquisa também mostrou uma "diminuição significativa" no número de canadenses que acreditam que a imigração melhora o país: de 52% em 2023 para 44% este ano.

"Os imigrantes de todos os tipos, mas especialmente os solicitantes de asilo, estão sendo usados como bodes expiatórios diante da crise de curso de vida no país", aponta Ansari.

Bandeira dos EUA e do Canadá em um túnel

Crédito, AFP via Getty Images

Legenda da foto, Número de americanos pedindo asilo no Canadá já é maior do que todos os pedidos do ano passado

Ainda assim, ela acredita que a Junta de Imigração e Refugiados vai enxergar além, e está confiante em relação ao caso.

Enquanto aguarda a audiência, Kreager tem permissão para estudar e trabalhar, e está arrecadando doações por meio da plataforma GoFundMe para cobrir os gastos e honorários da advogada.

Ela se considera privilegiada, já que nem todas as pessoas podem sair dos EUA e solicitar asilo no Canadá.

Também conta que se sente mais segura, que o medo de acordar e perceber que "sua existência foi criminalizada" já está passando.

Mas o contexto nos EUA pode mudar nos próximos anos.

Se os democratas recuperarem o controle da Câmara dos Deputados nas eleições de meio mandato em 2026 ou da Casa Branca nas eleições de 2028, uma abordagem mais amigável aos direitos LGBTQ+ é esperada.

Isso enfraquecerIa a alegação de Kreager de temer perseguição em seu país devido à sua identidade de gênero.

"Se o Canadá me negar o asilo, vai ser porque as coisas estão melhores nos EUA."