O sinólogo Alexander Gabuev

Legenda da foto, 'Eles não se importam com o fim da guerra, o que importa para eles é que Putin ou alguém como Putin esteja no Kremlin', diz o sinólogo Alexander Gabuev
  • Author, Sviatoslav Khomenko
  • Role, Correspondente do serviço russo da BBC
  • 11 março 2025, 09:22 -03

    Atualizado Há 7 minutos

Enquanto a maioria das notícias sobre um possível acordo de paz na Ucrânia está relacionada com o ativismo desenfreado de Donald Trump e do novo governo americano, um ator importante no mapa geopolítico mundial passa mais despercebido: a China.

Os países ocidentais acusam a China de ajudar a Rússia a travar uma guerra contra a Ucrânia, entre outras coisas por não apoiar as sanções ocidentais e continuar fornecendo eletrônicos e outros produtos de uso duplo a Moscou.

Na Ucrânia, muitos acreditam que Pequim está fazendo tudo o que pode para ajudar Moscou, embora pudesse facilmente ordenar que seu "sócio minoritário" parasse de lutar.

Acredita-se também que Donald Trump está se aproximando de Moscou justamente para romper seu vínculo com Pequim.

No mundo real, no entanto, as coisas são um pouco mais complicadas.

A BBC conversou com o especialista em China Alexander Gabuev, diretor do Centro Carnegie para Estudos Russos e Eurasiáticos em Berlim, na Alemanha, sobre as nuances da posição do país asiático, sua atitude em relação à Rússia, à Ucrânia e à guerra entre os dois países, e se o "cenário ucraniano" pode ser aplicado a Taiwan.

(Gabuev, que é russo, foi declarado um "agente estrangeiro" em seu país, e a Fundação Carnegie foi declarada não apenas um "agente estrangeiro", mas também uma "organização indesejável").

Linha divisória cinza

Para a China, o principal é a paz na Ucrânia

BBC - Como é a ordem política mundial ideal sob a perspectiva da China?

Alexander Gabuev - Por um lado, para colocar de forma muito simples, os chineses não pensam que são o "umbigo do mundo", que sabem tudo melhor do que ninguém, e que todos deveriam viver como eles.

Mas a China, na visão deles, é, sem dúvida, a potência mais poderosa do mundo.

Ou, de outro ponto de vista: os Estados Unidos dominam o hemisfério ocidental, e a China domina o hemisfério oriental.

Na Ásia, a China é a potência hegemônica absoluta, não há guerras aqui porque todos reconhecem a soberania de fato da China e respeitam seus interesses.

Em um mundo ideal, segundo eles, a harmonia reina graças à força e à estabilidade da China.

O comércio mundial é conduzido de acordo com regras que não são muito diferentes das atuais, que são benéficas não apenas para a China, mas para todos, mas, acima de tudo, para a China.

E aqui devemos fazer uma observação muito importante sobre como nossas culturas diferem em seu entendimento do que é um acordo do tipo ganha-ganha (em que todos saem ganhando).

Na concepção ocidental, ganha-ganha é quando a proporção desse ganho entre as partes do acordo oscila em torno de "50/50" ou, digamos, "40/60". E na visão chinesa, um acordo ganha-ganha é qualquer acordo em que cada parte ganha algum benefício.

Ou seja, hipoteticamente falando, se começarmos a fazer negócios, e ganharmos dinheiro juntos, mas você receber um copeque (unidade monetária russa) de lucro, e eu receber 99, então, pelo entendimento dos chineses, isso ainda é um ganha-ganha, porque você ganhou alguma coisa.

Se não fosse por este negócio, você não teria ganhado absolutamente nada.

BBC - De acordo com esta imagem da ordem mundial, o que é a guerra entre a Ucrânia e a Rússia?

Gabuev - Se eliminarmos as analogias históricas, a guerra entre a Ucrânia e a Rússia é certamente um conflito muito distante da China.

Mas afeta a China porque envolve o seu vizinho mais importante, a Rússia, que nem sequer é um aliado — mas, sim, um sócio minoritário, um país com uma cultura política semelhante e uma orientação estratégica para conter a hegemonia dos Estados Unidos.

Por outro lado, a Europa, o maior mercado dos produtos chineses, importante em termos de tecnologia, investimentos, etc., está envolvida neste conflito.

Em terceiro lugar, a Ucrânia, que também é um país bastante importante para a China, embora claramente não tão importante quanto a Rússia ou a Europa, está envolvida.

Por fim, os Estados Unidos estão diretamente envolvidos na guerra — eles são atualmente o Estado mais poderoso do mundo moderno, e um concorrente direto da China na luta por influência e poder no século 21.

Esta guerra afeta os mercados de alimentos, energia, fertilizantes, metais... e isso afeta indiretamente a China, provocando, por exemplo, um aumento nos preços de alguns bens.

Até recentemente, foi também uma guerra que reforçou a presença americana na Europa e fortaleceu o vínculo entre os Estados Unidos e seus aliados.

Esta guerra tem um impacto claramente negativo em muitos dos interesses da China. Claro que seria melhor para a China se esta guerra não tivesse acontecido, mas por outro lado, também há aspectos positivos para o gigante asiático.

BBC - O que os chineses ouvem sobre a guerra na Ucrânia na mídia local?

Gabuev - Em geral, o relato oficial e o que se discute nas redes sociais são diferentes.

A narrativa na televisão estatal poderia ser descrita como "nem tudo está tão claro".

Quero dizer, sim, há uma guerra, e a guerra geralmente é ruim. A integridade territorial foi violada, e isso também não é bom.

Mas, por outro lado, tudo isso, é claro, se deve à expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e às manobras americanas, de modo que é possível entender a Rússia.

Uma rua movimentada de Pequim

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, 'Para a China, a Rússia é um recurso importante para lutar contra a hegemonia americana, e fortalecer Pequim', afirma Gabuev

E depois existem as redes sociais. Elas também são uma plataforma censurada. Se houver algo escrito lá, é provável que tenha sido moderado anteriormente. Não é possível visualizar uma publicação ou um comentário até que um censor tenha lido ou um algoritmo o tenha liberado.

As discussões sobre a Rússia e a Ucrânia nas redes sociais contêm muitas opiniões honestas dos usuários, embora, é claro, não se possa dizer que sejam uma amostra representativa de um país de 1,4 bilhão de habitantes.

Assim, é possível encontrar com frequência a seguinte narrativa: "Vemos que a integridade territorial do país foi violada".

"Temos Taiwan, o Tibete, etc., há pessoas mal-intencionadas que tentam tirar algo de nós pela força".

"Assim como os americanos tentam apoiar os separatistas no nosso país, os russos apoiam os separatistas em Donbas. Isso é ruim, por isso não deveríamos apoiar a Rússia nesta guerra por razões de princípio."

Nos estágios iniciais da guerra, houve muitos comentários, digamos, depreciativos sobre a Rússia, mas agora essa questão ficou em segundo plano.

BBC - Quem Pequim apoia oficialmente? E qual é o resultado final que a China almeja?

Gabuev - Me parece que para a China o objetivo final é que a paz seja alcançada, que ninguém atire em ninguém, que a Rússia permaneça o mais isolada possível do Ocidente, que a China participe de alguma forma do estabelecimento da paz, e seja elogiada por isso.

Em outras palavras, a paz deve ser alcançada, a guerra não deve ser retomada, a Rússia não deve mais atacar a Ucrânia. Ao mesmo tempo, os chineses acreditam que a Ucrânia aderir à Otan é algo ruim.

Para os chineses, não é tão importante onde será a linha de demarcação.

Os chineses não acreditam que a Ucrânia possa retornar às fronteiras de 1991. Ou seja, a Ucrânia mantém sua soberania e independência, mas não sua integridade territorial. É claro que isso é ruim, os chineses não reconhecem as novas fronteiras, mas ainda assim.

BBC - Se entendi bem, se os ucranianos pararem de morrer na guerra, isso vai ser um ganha-ganha, de acordo com a interpretação chinesa nesta situação?

Gabuev - Sim, isso já seria suficiente. Além disso, há considerações humanísticas, puramente humanas, de que qualquer guerra é ruim.

Mas a guerra também é ruim porque o apoio da China à Rússia nesta guerra atrai constantemente a atenção do Ocidente para Pequim, e sanções secundárias são introduzidas contra as empresas chinesas.

A Europa vê cada vez mais a China não apenas como uma "admiradora" da Rússia revanchista, mas como sua parceira, uma retaguarda profunda e confiável, ou seja, como parte da ameaça existencial à segurança da Europa. E isso se reflete nas relações entre a China e a União Europeia.

A China, é claro, gostaria de ver esse rastro tóxico desaparecer o mais rapidamente possível.

Pequim não entende as razões de Putin

BBC - A China está ajudando a Rússia nesta guerra?

Gabuev - Em primeiro lugar, (a China) manteve o volume total de suas transações comerciais e econômicas com a Rússia e, inclusive, aumentou consideravelmente.

No início da invasão em grande escala, o volume do comércio entre a Rússia e a China era de US$ 147 bilhões. No ano passado, essa cifra subiu para US$ 245 bilhões.

A China começou a comprar mais petróleo russo, violando assim, até onde sabemos, o teto de preços (imposto pelos países ocidentais para limitar as receitas de Moscou).

Ao mesmo tempo, a China não viola abertamente as sanções, mas faz tudo o que não é diretamente proibido ou encontra brechas para tal.

Esta é uma ajuda bastante significativa, uma vez que o dinheiro que abastece o orçamento militar russo é um componente importante.

Em segundo lugar, estão os produtos de consumo que enchem as prateleiras das lojas russas.

As marcas chinesas estão substituindo as marcas ocidentais que deixaram a Rússia. Graças a elas, as pessoas têm algo para dirigir, telefones celulares para usar, aparelhos eletrônicos, etc. Isso também é uma ajuda.

Alexander Gabuev

Legenda da foto, Alexander Gabuev é diretor do Centro Carnegie para Estudos Russos e Eurasiáticos em Berlim

Em terceiro, está o maquinário puramente militar: componentes, máquinas metalúrgicas, chips e tudo o que não seja diretamente uma arma, mas a partir do que essas armas são fabricadas.

Tudo isso também é fornecido pela China e, além disso, é por meio da China que muitas vezes são fornecidos componentes americanos e europeus que são encontrados em mísseis e drones russos.

A possibilidade de usar o yuan para fazer pagamentos, enquanto metade das reservas da Rússia está congelada, e a outra metade está em yuan e ouro, e o fato de a Rússia poder usá-los, também é uma ajuda importante.

E o apoio diplomático: (a China) não condena a agressão e se opõe à criação de uma frente unida com a participação dos países do Sul Global para condenar a Rússia pela invasão. Este é um apoio importante.

BBC - Mas a China não se orgulha particularmente deste apoio em fóruns internacionais.

A China diz que não faz o que o Ocidente faz. Afinal, o Ocidente fornece armas diretamente à Ucrânia, compartilha informações de inteligência com Kiev, treina soldados das Forças Armadas ucranianas, etc.

É evidente que a China está fazendo algo sobre o qual sabemos menos e de forma mais sigilosa. Ou seja, ela compartilha dados de seus satélites com a Rússia, ajuda com alguma inteligência, mas ainda não é tanto nem tão explícito quanto o que o Ocidente está fazendo com a Ucrânia.

E isso dá à China uma razão para dizer que não está colocando lenha na fogueira.

Por outro lado, a China entende que uma parte significativa dos países do mundo percebe o que está acontecendo como apenas mais uma guerra. Para eles, o conflito na Ucrânia é uma guerra por procuração entre superpotências.

Se, nesta situação, a Rússia estiver disposta a fornecer petróleo, fertilizantes e grãos (próprios e roubados da Ucrânia) com desconto, por que não tirar proveito disso, se precisarmos?

Muitos países do mundo fazem isso, e não condenam a China por isso. A Índia, a maior democracia do mundo, faz menos do que a China, mas faz o suficiente para manter a Rússia à tona, pelo menos em termos de apoio às suas exportações.

BBC - Em determinado momento, Volodymyr Zelensky disse que a China tinha capacidade de pressionar a Rússia, e acelerar assim o fim da guerra. Até que ponto é verdadeira a ideia de que a China pode acabar com essa guerra com um estalar de dedos, simplesmente dizendo a Putin para parar?

Gabuev - Não acho que a China possa acabar com a guerra com um estalar de dedos.

A interpretação chinesa da situação é que Putin, quando chegou a Pequim em fevereiro de 2022 e assinou a famosa declaração conjunta sobre "parceria sem fronteiras", não disse a Xi Jinping exatamente o que planejava fazer.

Não sabemos realmente os detalhes. Eles podem ter discutido, por exemplo, a intensificação das ações militares em Donbas, mas os chineses não tinham a menor ideia de que algo desta magnitude aconteceria.

Portanto, a China, diferentemente dos países ocidentais, não fechou sua embaixada nem organizou a retirada dos seus cidadãos da Ucrânia.

Todos os meus contatos chineses com quem conversei em janeiro e no início de fevereiro de 2022 (diplomatas, especialistas, pessoas ligadas aos serviços de inteligência) estavam absolutamente convencidos de que não haveria guerra.

Loja de produtos russos

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Legenda da foto, A China tem laços econômicos fortes com a Rússia, como pode ser observado nesta loja de produtos russos na cidade chinesa de Chongqing

Seu principal argumento era que isso seria desfavorável para a Rússia.

Mesmo que Moscou prevalecesse, haveria perdas entre as fileiras russas, e a imposição de sanções em larga escala.

Significaria uma guerra de guerrilha, pelo menos em parte da Ucrânia, um aumento da presença militar dos EUA na Europa, uma possível expansão da Otan, e uma maior dependência da Rússia em relação à China.

Qual seria o sentido disso, mesmo que a Rússia fosse bem-sucedida?, eles se perguntavam.

Eles pensaram que, se estamos vendo isso na China, certamente Putin não é um idiota, e o Kremlin também está vendo. Mas eles estavam errados.

Acho que agora eles consideram que Putin está obcecado pela Ucrânia e pelo controle deste país por motivos que não são muito claros para eles.

Eles percebem que a Rússia se tornou um país mais vulnerável, que criou para si mesma muitos riscos e perigos que simplesmente não existiam antes da invasão em grande escala criada por esta decisão de Putin. No entanto, o presidente russo continua insistindo no mesmo objetivo porque isso é importante para ele.

Então, eles pensam, se Putin está tão obcecado com este objetivo, será que conseguimos, usando nossas ferramentas, cortando o comércio com a Rússia, etc., forçá-lo a mudar sua estratégia? Não há nenhuma garantia disso.

Por outro lado, e isso é muito importante para a China, a Rússia é um recurso importante para lutar contra a hegemonia americana, e fortalecer Pequim.

É uma fonte de recursos naturais baratos que são transportados por terra, e não por meio de rotas marítimas vulneráveis. É um mercado, uma fonte de tecnologia militar avançada em algumas áreas em que a Rússia ainda tem alguma experiência, é uma fonte potencial de cérebros em algumas áreas, e assim por diante.

E se o fim da guerra ou, sobretudo, uma hipotética derrota militar da Rússia levasse a uma mudança de governo favorável ao Ocidente, isso seria um pesadelo para a China.

Acabou, a Rússia cai na esfera de influência do Ocidente, e eles estão cercados.

Portanto, eles não se importam com o fim da guerra, o que importa para eles é que Putin ou alguém como Putin esteja no Kremlin.

Consequentemente, eles estão dispostos a jogar no limite da violação das sanções, desde que a Rússia permaneça suficientemente preparada para o combate para, pelo menos, não perder, porque isso não é do interesse deles. Embora eles achem que Putin é um fanático obsessivo.

E, em terceiro lugar, toda vez que os americanos começaram a falar em pressionar a Rússia, a China respondeu: Tudo bem, mas o que nós vamos receber em troca? Nós vamos te fazer um favor, e o que você vai fazer por nós?

Quase não há espaço para criar uma barreira entre a China e a Rússia

BBC - Qual é a atitude da China atual em relação à Rússia moderna, em termos mais simples? Para Pequim, Moscou é um anexo de matérias-primas, um parceiro estratégico com uma declaração assinada de parceria ilimitada, um aliado situacional ou, talvez, um adversário em potencial?

Gabuev - Em primeiro lugar, existe um sentimento de superioridade cultural e racial.

É claro que existem ali pessoas cultas que não são chauvinistas, mas em geral os chineses acreditam que a sua civilização de cinco mil anos é claramente superior a de outros povos.

Nas redes sociais, é comum encontrar montagens de como é a fronteira russa, a própria Blagoveshchensk, e como é a cidade chinesa de Heihe, que na época do colapso da União Soviética era apenas um campo, mas agora se tornou uma cidade com arranha-céus e uma população de quase 1,5 milhão de habitantes.

Isso alimenta a sensação de que somos bons, e conseguimos isso porque somos chineses. Mas vocês fracassaram não só porque o malvado Gorbachev destruiu a União Soviética, mas também porque vocês são russos, e sua cultura é pior.

A cidade chinesa de Heihe, na fronteira com a Rússia

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Legenda da foto, A cidade chinesa de Heihe, na fronteira com a Rússia

Por outro lado, existe a sensação de que a Rússia não é um país aliado — mas, sim, um sócio e vizinho.

Os russos e os chineses estão unidos por sua aversão a um inimigo comum: os EUA.

Agora precisamos trabalhar juntos para colocar os americanos em seus devidos lugares, e depois resolvemos isso. Afinal, os chineses são, acima de tudo, pragmáticos.

E é esta percepção pragmática da Rússia que determina a política atual, e não pensamentos sobre sua superioridade cultural ou qualquer emoção.

Por fim, algumas pessoas sentem nostalgia por territórios perdidos. Elas não se esquecem de que a Rússia czarista roubou um milhão de quilômetros quadrados de território da China e, de uma maneira geral, seria uma boa ideia devolvê-los.

É algo mais latente, mas certamente pode ser ativado.

BBC - Alguns analistas acreditam que o atual governo dos EUA pretende realizar uma operação geopolítica chamada "Nixon reverso": separar a Rússia da China para evitar que Pequim se torne muito forte. Você concorda com essa visão e, em caso afirmativo, a China estaria se contrapondo a ela?

Gabuev - Durante a campanha eleitoral, Donald Trump disse diretamente que a aproximação entre a Rússia e a China é contrária aos interesses dos Estados Unidos, e que pretende separá-los.

Até onde sabemos, sua equipe, incluindo o conselheiro de segurança nacional (Michael) Waltz e o secretário de Estado (Marco) Rubio, acredita que as políticas de Nixon e Kissinger, que se aproximaram da China, e exploraram a divisão sino-soviética, ajudaram a vencer a Guerra Fria.

E que, neste triângulo EUA-China-Rússia (antiga URSS) de grandes potências, vence o lado que tiver melhores relações com os demais do que os outros têm entre si.

É por isso que agora é importante para os EUA estabelecer relações com a Rússia, e tudo o que eles fazem, inclusive com relação à Ucrânia, é explicado por essa lógica geopolítica.

Acho que há bastante evidências de que isso faz parte da motivação de Trump.

Além do fato de querer acabar com a guerra, além do fato de que as garantias de segurança para a Ucrânia aparentemente o preocupam muito menos do que ao governo Biden, e de que, de uma maneira geral, ele tem mais simpatia pessoal por Putin do que por Zelensky, a política externa de Trump é personalista

Trump tem a ideia de que a parceria com a Rússia vai abrir novas oportunidades para as empresas americanas, e os russos estão usando isso de forma muito ativa, pintando na mente de Trump a imagem de uma parceria mágica russo-americana que o ajudará.

Nesta imagem do mundo, a Ucrânia é simplesmente uma espécie de obstáculo a ser removido para que não atrapalhe este objetivo brilhante.

Acho que os russos estão alimentando cuidadosamente essas esperanças de um "Nixon reverso".

Eles dizem: "Tudo bem, nós respeitamos Xi Jinping, respeitamos os chineses, não vamos cortar completamente os laços com eles, mas precisamos de alguma margem de manobra".

A portas fechadas ou em conversas informais lideradas pelo diretor do Fundo Russo de Investimentos Diretos, Kirill Dmitriev, podem estar sendo enviados sinais que encorajam Trump.

Na realidade, não creio que haja muito espaço para criar uma barreira entre a Rússia e a China.

Em primeiro lugar, a estratégia dos EUA da era Nixon para melhorar as relações com Pequim coincidiu com a divisão sino-soviética que havia surgido na época.

Não há divisão entre a Rússia e a China aqui. Pelo contrário, as relações entre eles se tornaram muito mais intensas e profundas. Sim, são países assimétricos, mas se beneficiam mutuamente e, até o momento, não vemos nenhuma fissura grave entre eles.

Alexander Gabuev conversando com o correspondente da BBC Svyatoslav Khomenko

Legenda da foto, Alexander Gabuev durante a entrevista com o correspondente da BBC Svyatoslav Khomenko

Em segundo lugar, por mais desagradável que possa ser para Putin o fato de a China ser agora o "irmão mais velho" com maior poder de negociação, os chineses não interferem nos assuntos internos da Rússia.

Por fim, como o Ocidente pode ser confiável quando a chegada de um novo presidente muda completamente o paradigma?

Os governos de Biden e Trump são como a noite e o dia quando se trata da Ucrânia e da Rússia.

E se o pêndulo da polarização nos Estados Unidos atingiu o pico, e sua amplitude só está aumentando, onde está a garantia de que, daqui a quatro anos, não vai surgir um presidente completamente diferente e mudar toda a abordagem da política externa dos EUA, voltando ela para o transatlântico, a pressão sobre a Rússia e o apoio maciço à Ucrânia?

Portanto, a Rússia entende que precisa embolsar o que Trump estiver disposto a dar por esta ilusão de parceria, mas que não deve realmente se distanciar da China.

Xi Jinping e Vladimir Putin

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Legenda da foto, O líder chinês, Xi Jinping, se reúne regularmente com Putin. A foto é de uma reunião na cidade russa de Kazan em outubro de 2024

Os chineses poderiam participar da manutenção da paz na Ucrânia

BBC - Pelo que estamos ouvindo agora, a pedra angular de qualquer cessar-fogo hipotético é o fim dos combates na atual linha de frente, e que a Ucrânia não se torne membro da Otan como resultado do acordo de paz. Isso se encaixa perfeitamente na estrutura do plano de paz da China.

Gabuev - Sim.

BBC - Mas, em algum momento, surgiu a ideia de introduzir algum contingente estrangeiro na linha divisória. Isso não está nos planos dos chineses. Mas Volodymyr Zelensky diz que não deveríamos estar falando de dezenas, mas de centenas de milhares de pessoas. É evidente que a Europa não tem estas forças, mas também é evidente que a China tem. Podemos imaginar que na linha de demarcação este contingente seria formado por militares chineses?

Gabuev - Acredito que seja difícil imaginar centenas de milhares, dada a extensão da linha de contato, o custo provável de tal operação, a complexidade da logística e assim por diante.

Mas o envio de forças mais significativas do que uma missão de observadores desarmados da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), como a que vimos em Donbas durante a vigência dos Acordos de Minsk, é algo que pode ser facilmente imaginado.

E também é perfeitamente possível imaginar os chineses como parte da missão: não como os únicos pacificadores encarregados de garantir que a guerra não seja retomada, mas como parte de algum contingente de manutenção da paz exigido pela Organização das Nações Unidas (ONU).

Mas aqui surgem vários problemas ao mesmo tempo.

Primeiro: até que ponto essa situação é aceitável para a Rússia? Tenho a impressão de que a Rússia atualmente se opõe a qualquer contingente de paz, e o máximo que ela aceitaria seria uma missão como a de Donbas.

A segunda razão pela qual a ideia de um contingente europeu de manutenção da paz é inaceitável para a Rússia é que a sua implementação elimina a possibilidade de atacar novamente a Ucrânia, porque isso exigiria matar pacificadores europeus.

Soldados chineses na Praça da Paz Celestial

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Gabuev acredita que o Exército chinês poderia se juntar ao contingente de manutenção da paz

Por fim, há um cenário de pesadelo (para Moscou) que os russos também devem considerar.

Esse é o cenário de, digamos, Nagorno-Karabakh, Idlib ou Croácia, que consiste em o Ocidente rearmar as Forças Armadas ucranianas até os dentes por trás da barreira das forças de paz e, daqui a dez anos, um presidente hipotético como Kirill Budanov ou qualquer outro, dar a ordem para libertar a Crimeia.

E daqui a dez anos a Rússia estará totalmente despreparada para isso, e será um quadro monstruoso que custará o poder de Putin.

E para evitar isso, Putin vai se opor a qualquer contingente europeu de todas as formas possíveis, especialmente porque agora ele tem uma vantagem no campo de batalha, e pode ditar as condições.

Nesta situação, me parece que o envio para a linha de contato de forças que nem os russos nem os ucranianos poderão matar por razões políticas, que serão difíceis de mover e que, em última análise, estarão vinculadas ao prestígio pessoal de Xi Jinping para evitar a retomada da guerra, poderia ser uma opção de compromisso.

Mas Putin precisa ser pressionado até este ponto. Por enquanto, ele acha que pode vender a Trump uma missão de manutenção da paz no estilo da OSCE.

BBC - E será necessário pressionar Xi para fazer isso? Ou a China está preparada para isso em princípio?

Gabuev - Acho que se os chineses querem melhorar as relações com a Europa, este seria um grande passo. Demonstrar seu papel como potência responsável.

E deixando de lado a percepção cínica da política, esta seria de fato uma grande contribuição para a causa da paz.

Lições para Taiwan

BBC - Uma opinião bastante popular é que a China está observando atentamente a guerra na Ucrânia porque ela estabelece um certo marco para sua própria história com Taiwan. Isso é verdade? E se for, que conclusões a China pode tirar da história da Ucrânia?

Gabuev - A China certamente está observando esta situação e aprendendo com ela. A China é, em geral, um sistema que está constantemente aprendendo e tirando lições.

O importante é que eles entendam que há lições a serem aprendidas com a guerra em 2022, lições ligeiramente diferentes das que vieram com a guerra em 2023, e lições até completamente distintas dadas pela guerra em 2024.

Além disso, acho que eles entendem muito bem que a história não é linear e que, se olharmos para o passado, a versão dos acontecimentos que vimos na realidade não é a única possível. Eles entendem que toda ação abre algumas ramificações de linhas do tempo, e fecha outras.

Portanto, eles estão observando e percebendo que, sim, o Ocidente se uniu. Que as sanções poderiam ser bastante severas. E agora eles estão enviando equipes à Rússia para estudar como os russos estão burlando as sanções, e como as estão combatendo.

Xi Jinping

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Legenda da foto, A China, de Xi Jinping, e a Rússia estão unidos por sua aversão a um inimigo comum: os EUA, de acordo com Gabuev

A segunda lição que aprenderam imediatamente foi que os generais podem mentir sobre a prontidão do Exército para o combate.

Disseram a Putin que ele tomaria "Kiev em três dias", mas o que aconteceu foi um constrangimento diante do mundo inteiro. E a reação é: como a Ucrânia conseguiu isso, nós não sabemos, mas vamos tentar estudar o assunto.

Por outro lado, vamos ver se nosso próprio maquinário de guerra precisa de uma pequena faxina. Como resultado, desde aproximadamente maio de 2022, está em curso um expurgo militar interminável no Exército de Libertação Popular da China, durante o qual dois ministros da Defesa já foram destituídos.

E em terceiro lugar, acho que eles estão observando a reação do Ocidente, no sentido de que viram sua capacidade de se unir e fazer algo, mas será que eles se envolveriam com tropas neste conflito?

Aqui é muito importante compreender que Taiwan não é a Ucrânia. Não é um Estado independente reconhecido internacionalmente.

Um número significativo de países ainda considera Taiwan como parte da República Popular da China. Neste caso, do ponto de vista do direito internacional, a situação será mais parecida com Nagorno-Karabakh, Chechênia ou Irlanda do Norte do que com a Ucrânia.

Portanto, é muito difícil prever como o Ocidente vai reagir a uma hipotética escalada em Taiwan.