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À espera de virar memorial, centro de tortura onde Herzog foi morto tem delegacia, aula e escavação

Na manhã de 25 de outubro de 1975, um sábado, o jornalista Vladimir Herzog se apresentou voluntariamente na sede paulistana do DOI-Codi, na rua Tutóia, entre os bairros do Paraíso e Vila Mariana, para prestar depoimento —na véspera, agentes da ditadura tinham ido à sua casa levá-lo, mas ele conseguiu adiar a intimação.

Horas depois, na tarde do mesmo sábado, Herzog estava morto, após sofrer sessões de tortura.

A sede do DOI-Codi de São Paulo era o principal centro de repressão da ditadura. No local, foram torturados milhares de presos políticos, dos quais dezenas foram mortos —o relatório final da Comissão da Verdade, com base em documento do Exército, registra 50 vítimas.

DOI-Codi é a sigla para Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna, o órgão de inteligência e repressão encabeçado pelo Exército (mas que também reunia polícias e as outras Forças Armadas, Marinha e Aeronáutica).

No período mais violento da ditadura, o DOI-Codi paulistano foi comandado pelo então major Carlos Alberto Brilhante Ustra, de 1970 a 1974. Ustra, que se tornaria um símbolo nefasto daquele período (ou um herói para os apologistas do regime militar, como o ex-presidente Jair Bolsonaro), foi sucedido no cargo pelo tenente-coronel Audir Maciel, chefe do centro até 1976 —cairia após os assassinatos de Herzog e do operário Manoel Fiel Filho.

Naquela época, o complexo da rua Tutóia —cujos fundos dão para as ruas Tomás Carvalhal e Coronel Paulino Carlos— abrigava uma pequena delegacia, mas era voltado especialmente à repressão. Cinquenta anos depois, o local está no centro de uma disputa pela memória, com o Ministério Público e organizações de direitos humanos buscando transformá-lo num memorial, em embate com o governo de São Paulo, proprietário do espaço.

Enquanto isso, o complexo vive uma situação insólita: uma delegacia continua a funcionar ali (o 36º DP) e, logo ao lado, no mesmo terreno, outros prédios do centro abrigam visitas educativas e oficinas de formação e passam por escavações arqueológicas em busca de respostas sobre seu passado.

Neste sábado, data exata dos 50 anos da morte de Herzog, haverá uma visita mediada especial em memória da efeméride, organizada pela organização Núcleo Memória, que realiza regularmente a atividade.

Na semana que vem, começa a segunda etapa das escavações, um trabalho de arqueologia forense conduzido pelas universidades Unifesp, Unicamp e UFMG.

Em 2014, o complexo foi tombado pelo patrimônio histórico estadual. Em 2021, o Ministério Público estadual, por meio do então promotor de Justiça de Direitos Humanos Eduardo Valerio (hoje procurador), ingressou com uma ação civil pública solicitando a "transferência do todo ou de parte do imóvel" do complexo da Secretaria de Segurança Pública para a Secretaria Estadual de Cultura e a elaboração de um projeto museológico para criação de um espaço de memória.

Naquele mesmo ano, o juiz da Fazenda Pública José Eduardo Rocha conduziu uma audiência de conciliação dentro do complexo, quando ex-presos políticos entraram inclusive em salas da delegacia, ao final da qual concordou-se em suspender a ação em busca de um acordo, que até hoje não saiu.

Numa entrevista em 2023, a secretária de Cultura, Economia e Indústria Criativas da gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos), Marília Marton, disse não ver necessidade da criação de um memorial no local, alegando falta de recursos e que o Estado já possui um do tipo, o Memorial da Resistência.

Procurada para justificar a posição, a secretaria não respondeu especificamente às questões, apenas reiterou que "o Estado já dispõe de um equipamento público dedicado à preservação e difusão da memória da resistência e das violações de direitos humanos ocorridas durante o regime militar".

O procurador Valerio rebate: "Se o Estado foi capaz de fazer vários centros de tortura, que seja capaz de fazer vários centros de memória".

"Os alemães gostam muito dessa questão, lá os campos de concentração viraram centros de memória, porque a força do lugar tem uma capacidade educativa muito intensa."

Segundo Valerio, a Secretaria de Cultura sinalizou que cederia os prédios dos fundos caso alguma instituição assumisse a gestão do espaço. Em abril, a Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) anunciou um acordo com o Ministério Público para ser a mantenedora do memorial.

São ao todo quatro prédios no complexo: o principal, do 36º DP (com entrada pela rua Tutoia, nº 921), e três mais ao fundo, sendo dois desativados (que têm sido ocupados para pesquisa e atividades educativas) e um terceiro (com entrada pela Tomás Carvalhal) que pertence ao DHPP (Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa), da Polícia Civil.

Segundo testemunhos e documentos históricos, havia salas de tortura tanto no prédio da atual delegacia —que sofreu reformas desde então e hoje não possui mais celas— quanto em um dos de trás.

Edson Teles tinha 4 anos quando foi levado por Ustra, junto com a irmã Janaína (então com 6) a ver seus pais, César e Amelinha, com marcas de tortura no local. Hoje professor de filosofia política da Unifesp e vice-coordenador do CAAF (Centro de Antropologia e Arqueologia Forense) da universidade, ele vê a situação como um símbolo da democracia pós-ditadura.

"Você não nega que houve uma ditadura, mas a todo momento cria formas de dar definições ambíguas sobre o que ela teria sido: mantém um espaço policial, onde se torturava e matava, e entrega os fundos desse espaço possivelmente para um lugar de memória", afirma.

Num artigo em 2023, ele contou sobre uma visita que fez à delegacia com a mãe, em que ela identificou, na sala agora dedicada ao "arquivo morto" do DP, o local onde testemunhou os últimos suspiros de Carlos Nicolau Danielli, morto após tortura.

"Acho gravíssimo", acrescenta Teles, "porque o Estado brasileiro continua torturando e matando ao arrepio da lei. E você construir um lugar de memória dividindo o espaço com uma delegacia no maior centro de tortura da ditadura, com uma polícia que até hoje não tem mecanismos de controle da violência, é bem complicado".

Ele pondera que, "do ponto de vista de quem está nessa luta", a saída pragmática é pegar o espaço "e passa a denunciar, abrir e denunciar que na delegacia em frente também se torturava".

Este último ponto é compartilhado por duas pesquisadoras centrais no processo. "O ideal seria todo o espaço dedicado ao memorial. Mas entre o que a gente quer e o ideal, tem a realidade. Então, caso seja possível instalá-lo nesses dois edifícios, ainda que a delegacia permaneça, vejo uma oportunidade de pensar na democratização das nossas polícias", diz Deborah Neves, coordenadora do Grupo de Trabalho Memorial DOI-Codi.

Doutora em história e pesquisadora do local desde 2010, Deborah conta que o grupo sempre teve uma relação "muito boa com a Polícia Civil, com autorização tanto para as visitas mediadas quanto para as escavações", e fala em construir parcerias voltadas à formação em direitos humanos para as forças policiais, uma recomendação da Comissão da Verdade.

Doutora em história social e coordenadora do Laboratório de Arqueologia Pública Paulo Duarte da Unicamp, Aline Carvalho concorda com a colega. "A existência da delegacia não é incompatível com a existência de um memorial. Manter a delegacia pode ser um ponto de questionamento sobre violência do Estado ontem e hoje, pensando as formações do policial no passado, presente e futuro."

"Então é mais um campo em que a gente pode, de repente, atuar. Pensa que lindo seria se esse memorial não pudesse dar cursos de formação falando sobre direitos humanos para essa polícia."

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