Um agente do ICE olhando fotos de duas crianças

    • Author, George Wright
    • Role, BBC News
  • Há 25 minutos

Shirley Chung tinha apenas um ano quando foi adotada por uma família americana em 1966.

Nascida na Coreia do Sul, seu pai biológico era militar americano, que retornou aos Estados Unidos pouco depois do nascimento de Shirley.

Sem conseguir lidar com a situação, sua mãe biológica a deixou em um orfanato em Seul, na capital sul-coreana.

"Ela nos abandonou, essa é a forma mais gentil de dizer isso", afirma Shirley, hoje com 61 anos.

Cerca de um ano depois, Shirley foi adotada por um casal americano e levada para o Texas.

Lá, ela cresceu levando uma vida semelhante a de muitos jovens nos Estados Unidos. Frequentou a escola, tirou carteira de motorista e trabalhou como garçonete.

"Vivia a vida como qualquer adolescente americano dos anos 80. Sou uma filha dos anos 80", afirma Shirley, que teve filhos, se casou e se tornou professora de piano.

Décadas se passaram sem que ela tivesse motivos para duvidar de sua identidade como americana.

Mas, em 2012, seu mundo desabou.

Ela perdeu seu cartão de segurança social e precisava de uma segunda via. Mas quando foi até o escritório local da Segurança Social, lhe disseram que ela deveria comprovar seu status migratório.

Foi quando descobriu que não tinha cidadania americana.

"Tive uma crise de nervos ao descobrir que não era cidadã", contou.

Casos semelhantes

Shirley não é a única.

Estima-se que entre 18 mil e 75 mil pessoas adotadas nos Estados Unidos não tenham cidadania.

Algumas adotadas internacionalmente talvez nem saibam que não são cidadãs americanas.

Dezenas de adotados têm sido deportados para seus países de origem nos últimos anos, segundo o Centro Legal de Direitos das Pessoas Adotadas.

Um homem nascido na Coreia do Sul e adotado quando criança por uma família americana — e que depois foi deportado para seu país de origem por causa de seus antecedentes criminais — se matou em 2017.

Shirley quando criança

Crédito, Shirley Chung

Legenda da foto, Shirley teve uma infância semelhante a de muitos jovens americanos

As razões pelas quais tantas pessoas adotadas nos Estados Unidos não têm cidadania são diversas.

Shirley culpa seus pais por não terem completado a documentação necessária quando ela chegou ao país. Também culpa o sistema de educação e o governo por não terem informado que ela não tinha cidadania.

"Culpo a todos os adultos que simplesmente ignoraram o assunto e disseram: 'ela já está aqui nos EUA, vai ficar tudo bem'. Sério, eu vou ficar bem?"

Outra mulher, que pediu anonimato por medo de chamar a atenção das autoridades, foi adotada por um casal americano de origem iraniana em 1973, quando tinha 2 anos de idade.

Criada no meio-oeste dos EUA, ela sofreu racismo, mas, no geral, teve uma infância feliz.

"Me adaptei à minha vida, sempre acreditando que era cidadã americana. Foi o que me disseram. E continuo acreditando nisso até hoje", afirma.

Mas tudo mudou quando, aos 38 anos, ela tentou obter um passaporte e descobriu que as autoridades de imigração haviam perdido documentos essenciais que comprovavam sua solicitação de cidadania.

Isso tornou ainda mais complexos seus sentimentos em relação à sua identidade.

"Pessoalmente, não me considero imigrante. Não cheguei aqui como imigrante, com um segundo idioma, uma cultura diferentes, familiares diferentes, vínculos com o país onde nasci...minha cultura foi apagada", afirma.

Três crianças no colo de uma mulher

Crédito, Arquivo pessoal

Legenda da foto, Uma pessoa adotada no Irã, que solicitou anonimato, aparece nesta foto quando era criança e já morava nos EUA

"Dizem a você que tem esses direitos como cidadão americano: votar e participar da democracia, trabalhar, estudar, formar uma família, ter liberdades, todas essas coisas que têm os americanos", diz.

"E, de repente, começaram a me colocar na categoria de imigrantes, simplesmente porque fomos excluídos da legislação. Todos nós deveríamos ter tido os mesmos direitos de cidadania, já que isso foi prometido nas políticas de adoção."

Lei de Cidadania Infantil

Durante décadas, as adoções internacionais aprovadas por tribunais e agências governamentais não garantiam automaticamente a cidadania americana.

Em algumas ocasiões, o pais adotivos não conseguiam obter o status legal e nem a cidadania por naturalização para seus filhos.

A Lei da Cidadania Infantil do ano 2000 trouxe um avanço para corrigir esta situação, ao conceder a cidadania automática a todos os adotados internacionalmente.

Contudo, a lei só abrange adoções futuras ou adotados que nasceram depois de fevereiro de 1983.

Aqueles que nasceram antes dessa data não receberam a cidadania, o que deixou dezenas de milhares de pessoas em um limbo jurídico.

Ativistas têm pressionado o Congresso para que o limite de idade seja retirado, mas esses projetos de lei não conseguiram ser aprovados pela Câmara dos Deputados.

Policiais com rostos cobertos no Centro de Imigração dos EUA

Crédito, AFP via Getty Images

Legenda da foto, Muitas das pessoas adotadas temem as batidas de imigração, apesar de terem chegado aos Estados Unidos

Algumas pessoas, como Debbie Principe, cujos dois filhos adotivos têm necessidades especiais, passaram décadas tentando obter a cidadania para seus dependentes.

Principe adotou duas crianças em um orfanato na Romênia, na década de 1990, após ver A vergonha de uma nação, um documentário sobre o abandono infantil em orfanatos depois da Revolução Romena de 1989, que chocou o mundo após sua exibição.

A recusa mais recente do pedido de cidadania aconteceu em maio, seguida de uma notificação informando que, se a decisão não fosse contestada em 30 dias, ela teria que entregar sua filha ao Departamento de Segurança Interna.

"Teremos sorte se eles não forem detidos e deportados para outro país que nem é o delas", afirmou.

Esse medo dos adotados e de suas famílias aumentou ainda mais desde que o presidente Donald Trump retornou à Casa Branca, com a promessa de expulsar "imediatamente todos os estrangeiros que entrarem ou permaneceram no país em violação da lei federal".

Aumento de deportações

No mês passado, o governo de Trump declarou que "dois milhões de imigrantes sem documentos abandonaram os EUA em menos de 250 dias, incluindo aproximadamente 1,6 milhão de deportações voluntárias e outras 400 mil deportações."

Embora muitos americanos apoiem a deportação de imigrantes indocumentados, alguns incidentes geraram indignação.

Em um caso, 238 venezuelanos foram deportados pelos EUA para uma prisão de segurança máxima em El Salvador. Eles foram acusados de pertencer à organização criminosa Tren de Aragua, embora a maioria não tivesse antecedentes criminais.

Donald Trump usa um terno azul marinho e uma gravata vermelha. Ele aponta o dedo e tem uma expressão facial séria.

Crédito, Reuters

Legenda da foto, As deportações têm sido uma das principais pautas do segundo mandato de Donald Trump

No mês passado, autoridades americanas detiveram 475 pessoas, — mais de 300 delas cidadãs sul-coreanas — que trabalhavam ilegalmente na fábrica de baterias da Hyundai, um dos maiores projetos de investimento estrangeiro na Geórgia.

Os trabalhadores foram levados algemados e acorrentados para um centro de detenção, o que gerou indignação na Coreia do Sul.

Organizações de direitos dos adotados afirmam ter recebido um aumento expressivo de pedidos de ajuda desde o retorno de Trump, e alguns adotados se viram obrigados a se esconder.

"Após o resultado das eleições, os pedidos de ajuda dispararam", destacou Greg Luce, advogado e fundador do Centro Legal para os Direitos dos Adotados, que acrescentou ter recebido mais d e275 solicitações.

A mulher adotada, que chegou ao Irã na década de 1970, conta que começou a evitar certos lugares — como o supermercado iraniano que ela costumava a ir — e que compartilha sua localização em um aplicativo com os amigos para que eles saibam onde ela está, caso seja detida.

"No fim das contas, eles não se importam com a sua história. Não se importam que você esteja aqui legalmente e que seja apenas um erro administrativo. Eu sempre digo às pessoas que um simples pedaço de papel praticamente arruinou a minha vida", afirma.

"No momento, me sinto apátrida."

O Departamento de Segurança Nacional dos EUA não respondeu aos pedidos de comentário da BBC.

Vontade política

Embora as pessoas adotadas vivam em um limbo jurídico há décadas, Emily Howe, advogada de direitos civis e humanos que trabalha com pessoas adotadas nos EUA, acredita que se trata de uma questão de vontade política que deveria unir pessoas de todo espectro político.

"A solução deveria ser simples: crianças adotadas deveriam ter os mesmos direitos que seus irmãos biológicos cujos pais eram cidadãos americanos na época do nascimento", afirma Howe.

"Os requerentes têm pais cidadãos americanos a agora estão na faixa de 40 e 60 anos. Estamos falando de bebês e crianças pequenas que foram enviadas para o exterior sem culpa alguma e admitidos legalmente sob a política dos EUA."

"A essas pessoas foi prometido que seriam americanas quando completassem dois anos de idade."

Shirley Chung usa uma camisa branca em cima da uma blusa azul. Ela tem cabelos longos e grisalhos

Crédito, Shirley Chung

Legenda da foto, Shirley, hoje com mais de 60 anos, pede que Trump finalmente conceda cidadania a ela e outras pessoas na mesma situação

Shirley diz que gostaria de poder falar com o presidente Donald Trump para que ela e outras pessoas na mesma situação pudessem compartilhar suas histórias.

"Pediria a ele que, por favor, tivesse alguma compaixão. Não somos imigrantes ilegais", disse.

"Fomos colocados em aviões quando éramos bebês. Por favor, escute a nossa história e cumpra a promessa que os EUA fizeram a cada bebês que embarcou naqueles aviões: da cidadania americana."