Arma apontada para a câmera

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Legenda da foto, Frase 'Bandido bom é bandido morto' tem origem nos EUA do século 19, apontam especialistas
    • Author, Edison Veiga
    • Role, De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil
  • Há 7 minutos

"Bandido bom é bandido morto" foi o mote da campanha eleitoral do delegado de polícia José Guilherme Godinho Ferreira (1930-2021), o Sivuca.

Não colou: ele não foi eleito.

Dois anos mais tarde, tentaria uma vaga na Câmara de Vereadores do Rio. Novo fracasso.

Em 1990, finalmente, suas ambições eleitorais foram exitosas. Concorrendo pelo Partido da Frente Liberal (PFL) — um dos partidos que se originou da Arena (Aliança Renovadora Nacional), que sustentava a ditadura, e que hoje é o União Brasil —, ele se tornou deputado estadual.

Foi reeleito em 1994, desta vez pelo extinto Partido Progressista Reformista (PPR).

Seu bordão já estava a essa altura bastante assimilado por uma parcela grande da população, com endosso de programas sensacionalistas.

"E enterrado de pé, para ocupar menos espaço", Sivuca complementaria quando já era deputado.

Na década de 1960, Sivuca fez parte do primeiro grupo de extermínio da polícia do Rio, a Scuderie Detetive Le Cocq.

No Estado de São Paulo, o maior expoente da ideologia simbolizada pela frase era o radialista, advogado e político Afanásio Jazadji.

Em 1985, ele fazia sucesso com seu programa na rádio Capital. No ano seguinte, foi eleito deputado estadual com quase 560 mil votos — o melhor resultado de todo o Brasil até então.

No auge de sua carreira política, Jazadji foi um dos mais notórios defensores da implantação da pena de morte no país.

Made in USA

Gravura em preto e branco mostra general em cavalo na estrada, levantando chapéu e saudado por homens

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Legenda da foto, Gravura de N. E. Taylor mostra Philip Henry Sheridan ovacionado por suas tropas, por volta de 1870

Segundo especialistas, a frase que ganhou tração no Brasil pode ter sido uma adaptação de outra: "O único índio bom é um índio morto".

Este bordão teria nascido nas batalhas de extermínio dos indígenas norte-americanos, as chamadas Guerras de Fronteira dos Estados Unidos, que ocorreram do início ao século 17 ao fim do 19. Não há consenso sobre a autoria da frase.

No livro Bury My Heart at Wounded Knee (1970), o historiador americano Dee Brown (1908-2002) relatou que o general Philip Sheridan (1831-1888), quando apresentado a um líder comanche, ouviu dele algo como "sou um índio bom".

O militar teria respondido: "Os únicos índios bons que vi estavam mortos".

A frase de Sheridan, datada de 1869 por especialistas e depois repetida de forma jocosa pelos combatentes, acabaria lapidada até se transformar em um aforismo típico dos Estados Unidos.

Na biografia Sheridan - The Life And Wars of General Phil Sheridan (1992), o jornalista especializado em história militar Roy Morris Jr. ponderou que o comentário original pode realmente ter sido dito pelo general; o provérbio consolidado, não.

"Há uma diferença sutil, porém importante [entre ambas]", escreve o autor.

A frase do general, ainda que sarcástica, denotaria que os índios bons eram os que acabavam mortos, pois o comportamento deles os tornaria vítimas mais fáceis.

Já na expressão que sobreviveria ao tempo, "o único índio bom é um índio morto", implica-se que seria "preferível" um índio morto do que vivo, explica Morris Jr. em seu livro.

Já o folclorista alemão Wolfgang Mieder, professor aposentado na Universidade de Vermont, publicou em 1993 um artigo com evidências de que a frase teria uma origem anterior ao diálogo entre Sheridan e o cacique comanche.

Um ano antes da frase atribuída a Sheridan, o congressista e advogado James Michael Cavanaugh (1823-1879) disse algo semelhante durante debate no Parlamento, em 28 de maio de 1868.

"Eu, que já vi milhares de índios em minha vida, nunca vi um que fosse bom, exceto nas vezes em que vi um índio morto", sentenciou Cavanaugh.

Para o professor Mieder, o parlamentar usou de força de expressão — mas, "infelizmente", reproduziu "fortemente" o que "a maioria dos americanos sentia, se não dizia".

Mieder argumenta que a frase pegou no imaginário popular, porque concentra uma "diabólica genialidade".

"(...) no nível literal, justificava a matança em massa de indígenas pelo exército e, em um nível mais figurado, promovia a crença de que os indígenas só poderiam ser pessoas 'boas' se se tornassem cristãos e adotassem a civilização de seus opressores brancos."

Filigranas semânticas à parte, a cientista política Mayra Goulart, professora na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenadora do Laboratório de Partidos, Eleições e Política Comparada (Lappcom), afirma que, de qualquer maneira, a frase "bandido bom é bandido morto" tem origem nos Estados Unidos.

"A expressão [americana] sintetizava a crença de que o indígena representava um obstáculo à civilização e, portanto, deveria ser eliminado. Era uma visão abertamente desumanizadora, que transformava um grupo social inteiro em inimigo a ser exterminado", analisa a professora.

"A morte, nesse imaginário, não é uma tragédia, mas uma forma de restauração da ordem que pressupõe a exclusão do outro, do inimigo, da ameaça."

'Importação' pelo Brasil

Professor de Direitos Humanos na Universidade Presbiteriana Mackenzie e especialista em estudos sobre genocídio, o advogado Flávio de Leão Barros Pereira afirma que este repertório "desumanizador" sobre os indígenas acabou rapidamente transposto para o Brasil.

"Ainda que não houvesse na época um modelo de racismo como o do século 20, eles eram considerados inferiores, espoliáveis e, portanto, um obstáculo ao progresso", comenta Pereira.

Com a urbanização no século 20, o mesmo discurso de extermínio acabou se voltando para minorias e para grupos que representassem alguma ameaça, como criminosos.

"A insegurança muito grande marca a população, que acaba vendo alguns grupos como dispensáveis", analisa Pereira.

"É a essência de como esse pensamento existe em relação a algumas populações definidas como alvos principais da violência de Estado."

Goulart concorda, afirmando que a frase faz parte de uma tradição de "discriminação e extermínio de corpos considerados 'fora da ordem'".

"Primeiro, os indígenas na fronteira; depois, escravos fugitivos; e, finalmente, moradores de favelas e periferias urbanizadas", enumera a cientista política.

No Rio de Janeiro, a figura estereotipada do criminoso vai mudando ao longo do século 20: o malandro, depois o marginal, e então o vagabundo, aponta o historiador e sociólogo Lucas Pedretti, autor do livro A Transição Inacabada — Violência de Estado e Direitos Humanos na Redemocratização (2024).

"Nos anos 1970 e 1980, passa a ser chamado de bandido. Na virada dos anos 1990, é associado sempre ao traficante", pontua Pedretti.

Ele lembra que, ainda no início dos anos 1960, políticos como Carlos Lacerda (1914-1977) endossavam um discurso mais linha-dura contra a criminalidade.

"Ele falava que a polícia tinha de atirar para matar, que agora era zero tolerância", comenta.

Com o autoritarismo da ditadura no poder, a partir de 1964, começam a ser estruturados os chamados grupos de extermínio — formados dentro das forças policiais com o objetivo de matar.

É o caso da Scuderie Detetive Le Cocq, criado por policiais no Rio em 1965, com o propósito de vingar a morte em serviço do detetive de polícia Milton Le Cocq d'Oliveira (1920-1964).

Considerado o primeiro grupo de extermínio da polícia fluminense, a organização funcionou até o ano 2000 e esteve na raiz das organizações paramilitares que hoje atuam no Rio.

Sivuca integrava o grupo apelidado de "12 homens de ouro", a elite da polícia carioca que tinha a missão, conferida pela Secretaria de Segurança Pública, de "limpar a cidade" da criminalidade.

 'Bandido bom é bandido morto' e 'Basta de sequestros, assaltos, drogas e estupros'

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Legenda da foto, Cartaz de campanha de Sivuca em 1990, um dos responsáveis por impulsionar bordão sobre 'bandido morto'

Quando o esquadrão Le Cocq foi criado, Sivuca se tornou um dos membros. O grupo tinha como símbolo uma caveira com dois ossos da tíbia cruzados por baixo. E a sigla E.M. — significava oficialmente "esquadrão motorizado", mas passou a representar "esquadrão da morte".

Para Pedretti, ao disseminar seu bordão durante a redemocratização, Sivuca sintetizava o pensamento dominante.

"Figuras passam a ocupar o parlamento com esse discurso de linha-dura, de 'é preciso matar' para combater o crime", situa o historiador.

Goulart confirma que essa retórica se consolidou durante a redemocratização: "Foi quando o medo urbano e a sensação de impunidade passaram a dominar o debate público".

Além de Sivuca e de Jazadji, outro expoente da ideologia nesse período foi o político paulista Paulo Maluf, prefeito de São Paulo em duas ocasiões (1969-1971 e 1993-1997) e governador paulista de 1979 a 1982.

"Foi o primeiro [em São Paulo] a converter o punitivismo em política de Estado", diz Goulart.

Maluf também impulsionou um bordão, "Rota na rua, bandido na cadeia" — a sigla diz respeito às Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar, a tropa de elite da Polícia Militar de São Paulo.

"Tornou-se símbolo de um governo que prometia ordem à força", afirma a professora.

"Maluf construiu, sobre esse discurso, uma base política duradoura."

Em sua dissertação de mestrado defendida em 2014 na Fundação Getúlio Vargas (FGV), a cientista social Samira Bueno Nunes analisou que a imprensa deu bastante espaço a Jazdji e à sua defesa de que "bandido bom é bandido morto'" na cobertura do massacre do Carandiru — chacina ocorrida em outubro de 1992, quando policiais militares executaram 111 presidiários da Casa de Detenção de São Paulo.

Goulart analisa por que a sentença ganhou tamanha dimensão: "A força da frase está no seu apelo emocional e imediato. Ela oferece uma solução simples para um problema complexo, o medo. O cidadão comum, diante da violência cotidiana, encontra nela uma forma de alívio moral: se o Estado não protege, ao menos pune."

Para a especialista, o sucesso do bordão se contrapõe à "dificuldade histórica do campo progressista de propor uma alternativa com igual poder de mobilização emocional" na área de segurança.

Pedretti destaca haver apoio social para uma polícia violenta e "que mata". "Dados da pesquisa de opinião sobre o massacre da semana passada não surpreendem, são condizentes."

Castro afirmou que as únicas vítimas da operação foram os policiais e que as mortes não foram planejadas, mas acabaram ocorrendo por conta da "retaliação" dos suspeitos.

Segundo o Instituto Datafolha, 57% dos moradores do Rio avaliaram positivamente a megaoperação contra a facção Comando Vermelho.

O apoio não é apenas local. Levantamento realizado pela AtlasIntel mostra que 55,2% dos brasileiros também aprovam o trabalho realizado pelos policiais na ação.

Policiais posicionados com armas perto de escadas e portas

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Legenda da foto, Ação no Rio no último dia 28 foi a mais letal da história do Brasil; pesquisas mostram apoio majoritário dos brasileiros à operação

A segurança pública é uma questão central para os brasileiros — em pesquisa Genial/Quaest divulgada em outubro, antes da ação no Rio, a violência foi apontada como a maior preocupação da população, chegando a 30% dos entrevistados (aumento de dois pontos percentuais em relação ao mês anterior). Em seguida, vêm os problemas sociais (18%) e a economia (16%).

"Pessoas vivem sob regime de medo. É plenamente compreensível, embora terrível, que elas estejam desesperadas", afirma Pedretti.

"Nesse cenário, o autoritarismo cresce: em momentos marcados pelo medo."

Quando o bordão vira política

Para Goulart, o discurso do "bandido bom é bandido morto" ganhou força própria no Rio de Janeiro.

"Desde os anos 1980, integrantes de grupos de extermínio como a Scuderie Le Cocq foram eleitos para cargos legislativos, transformando a execução sumária em pauta eleitoral. Essa conversão de matadores em representantes eleitos não encontra paralelo consolidado em outras democracias contemporâneas", argumenta a cientista política.

"Com o avanço das milícias nos anos 2000, o Rio passou a viver uma simbiose inédita entre poder armado e política institucional."

Assim, o bordão deixou de ser uma expressão: transformou-se em programa político, com a aposta no uso ostensivo da força.

Para Goulart, historicamente, esse posicionamento sempre "esteve mais presente na direita conservadora".

"Mas não é exclusividade dela. Pesquisas recentes mostram que parte do eleitorado progressista também apoia ações letais, movido por medo e desconfiança nas instituições", diz.

No seu laboratório na UFRJ, pesquisas mostram que a ascensão do grupo político do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que tem sua base no Rio, "transformou o punitivismo em projeto nacional".

"Bolsonaro eleva o combate ao crime à categoria de cruzada moral, ao prometer carta branca às polícias e defender o excludente de ilicitude [flexibilização para que policiais não sejam punidos por suas ações e até mortes durante seu trabalho]", aponta a pesquisadora, destacando também a recorrente oposição, verbalizada por este campo político, entre "cidadão de bem" e "bandido".

Condenado por tentativa de golpe, o ex-presidente está proibido de se manifestar nas redes sociais. Mas um de seus filhos, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), deu declarações sobre a megaoperação no Rio.

Morando nos Estados Unidos, o parlamentar criticou quem classifica a operação como uma "chacina" e lamentou a morte de quatro policiais.

"Eles choram lágrimas de crocodilo pela morte de 100 bandidos que estavam trocando tiro com a polícia. Isso eu acho que beira uma certa psicopatia", disse Eduardo Bolsonaro ao portal Metrópoles.

Nas redes sociais, o político afirmou que a população tem "o dever moral" de apoiar a polícia e defendeu um modelo linha-dura para controlar a criminalidade.

Nesta quarta-feira (12/11), está prevista uma homenagem no Senado a todos os policiais que atuaram na operação.