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- Author, Mariana Schreiber
- Role, Da BBC News Brasil em Brasília
Há 2 minutos
A denúncia contra o ex-presidente Jair Bolsonaro que o acusa de liderar uma tentativa de golpe de Estado é robusta e deve levar à abertura de um processo criminal contra ele em pouco tempo, avalia o doutor em Direito Processual Penal e professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Aury Lopes Jr.
Mas esse julgamento, afirma, não deveria ocorrer no Supremo Tribunal Federal (STF), e sim na primeira instância do Poder Judiciário, já que Bolsonaro não ocupa mais cargo público com foro especial no STF.
Além de contestar a legitimidade da Corte para analisar a denúncia, Lopes Jr também considera errado que o caso continue sob análise do ministro Alexandre de Moraes, relator da investigação contra Bolsonaro e outros suspeitos de tentar impedir a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Na sua visão, seria "salutar" para a credibilidade do STF que Moraes se declarasse suspeito, devido a seu intenso envolvimento na fase investigatória e também por ter sido alvo de um suposto plano do grupo denunciado para matá-lo.
"Quando você é chamado a tomar várias decisões sobre o caso [durante o inquérito] e depois você tem que julgar esse caso, você está contaminado. Você já tem uma visão pré-estabelecida, isso é da natureza humana", argumenta.
"Ele se declarar suspeito contribuiria muito para a lisura, a transparência de regularidade desse processo, e talvez pra diminuir eventuais críticas de violação do processo", acrescentou.
No entanto, o professor não acredita que STF ou Moraes recuarão de julgar a denúncia contra Bolsonaro. Dezenas de pessoas sem foro privilegiado já foram processadas e condenadas no STF por tentativa de golpe de Estado devido ao envolvimento nos atos de 8 de janeiro de 2023.
Apesar dos questionamentos da defesa, a maioria dos ministros decidiu pela continuação dos casos na Corte por tratarem de ataques ao próprio STF e ao Estado Democrático de Direito. Esse entendimento foi inaugurado com o controverso Inquérito das Fake News, em 2019, quando o STF deu uma interpretação ampliada a seu regimento interno, que autoriza a própria Corte a abrir inquéritos para apurar crimes ocorridos dentro do Tribunal.
A previsão é que a denúncia contra Bolsonaro seja julgada na Primeira Turma do Supremo, formada por cinco ministros: Moraes, Cármen Lúcia, Luiz Fux, Cristiano Zanin e Flávio Dino.
Para Lopes Jr, é possível que os denunciados se tornem réus até abril. Por sua experiência, ele estima que um processo criminal com essa complexidade poderia durar dois anos.
Informações da imprensa brasileira, porém, indicam que a Corte tentará concluir o processo ainda em 2025, para que o julgamento não contamine o processo eleitoral de 2026.
"O Supremo não deveria estar preocupado com expectativas políticas de um julgamento", ressalta.
Confira a seguir os principais trechos da entrevista, editada por concisão e clareza.
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BBC News Brasil – Como avalia a consistência da denúncia?
Aury Lopes Jr - Uma denúncia é uma acusação. O que estamos discutindo aqui é se existem indícios razoáveis de autoria [de crimes] e materialidade para acusar e receber uma acusação, iniciando um processo. Isso é muito menos do que aquilo que se exige para condenar alguém.
Então, nessa perspectiva de uma mera acusação, existem sim indícios razoáveis, com bastante suficiência. A denúncia não é inepta. Ela descreve claramente o fato, é coerente, lógica.
Até porque, por trás dessa denúncia, existe toda uma investigação feita pela Polícia Federal, aquele famoso relatório de mais de 800 páginas que apontam mensagens eletrônicas, conversas, documentos, enfim, monitoramento de estações rádio base de celular [para verificar a movimentação dos investigados], telefones que foram usados de uma maneira a dissimular a identidade dos seus interlocutores. Em suma, tem elementos suficientes.
BBC News Brasil – Após sua leitura da denúncia, identificou possíveis fragilidades na acusação? Por exemplo, defensores do ex-presidente dizem que não há uma prova concreta de que ele determinou uma tentativa de golpe ou o suposto plano para matar Lula.
Aury Lopes Jr - Nem sempre, no processo penal, você tem o acusado [por tráfico] com a mão na substância entorpecente, por exemplo. O que importa é você ter um conjunto de indícios que vinculem ele àquele núcleo [criminoso], que demonstre que ele tinha o poder de mando, o domínio final.
Nesse caso, objetivamente, se lermos o relatório da Polícia Federal, fica muito claro que Bolsonaro tinha consciência, sim, de tudo que estava acontecendo. Não só porque acontecia no entorno dele, no seu grupo forte, como também pelas próprias manifestações públicas que ele fez, as várias lives [transmissões ao vivo comuns no seu mandato] que vêm exatamente na linha daquilo que estava sendo arquitetado. A sistemática resistência ao resultado das urnas, a questão das fake news das urnas eletrônicas é muito comprovado.
Então, em suma, não é uma denúncia que você diga "aqui ele foi fotografado ou tem uma mensagem dele". Até porque é claro que, numa situação como essa, as pessoas tomam muitas cautelas. Mas há todo um conjunto de circunstâncias que indiciam claramente que ele tinha conhecimento e o domínio final também.
Quer dizer, é todo um conjunto imenso de elementos que para, fins de iniciar um processo, é mais do que suficiente. Agora, se, na devida instrução processual, nós vamos elevar o nível de prova a ponto de convencer plenamente que ele tinha conhecimento, aí é a função do processo.
BBC News Brasil – Se for aberto o processo, a instrução para produção de provas será basicamente um momento de ouvir as testemunhas e os réus?
Aury Lopes Jr - A PGR, nesta denúncia, arrolou seis testemunhas. Inclusive os comandantes do Exército e da Aeronáutica, que foram exatamente aqueles que resistiram ao golpe e cujos depoimentos já foram prestados à Polícia Federal. E o que vai acontecer é que eles vão ser ouvidos na fase processual e vão confirmar ou não o que já declararam.
Têm mais testemunhas ali em relação ao pessoal da Polícia Rodoviária Federal, sobre aquele controle que houve [do fluxo de eleitores nas estradas] no dia da eleição nos Estados onde tinha mais votação do Lula. A tendência é as testemunhas comprovarem isso.
Mas é um processo em que o forte da prova não é testemunhal. Por isso que seis testemunhas não é nada de outro mundo. O forte desse caso é a prova digital, é a interceptação telemática de conversas de WhatsApp, de outras ferramentas de comunicação que eles usavam, Signal, etc. Então é essa prova que vai realmente fazer a diferença
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BBC News Brasil — Considerando a robustez que você vê na denúncia, quanto tempo deve levar para o STF abrir um processo?
Aury Lopes Jr - A lei brasileira não prevê um prazo. Eu não posso dizer claramente "vai durar X". Mas o que acontece agora: o ministro vai intimar as defesas para se manifestarem em um prazo curto, 15 dias, e depois disso, até porque um dos acusados está preso [o que torna o caso prioritário], ele vai, com certeza, pedir pauta para que a Primeira Turma decida se recebe ou não a acusação.
Isso deve acontecer ao longo do próximo mês, talvez até abril, no máximo. Eu creio que a denúncia será recebida. Então, vamos ter a instrução, que é quando vai se ouvir essas seis testemunhas de acusação e mais as testemunhas de defesa, que é uma incógnita a quantidade.
Cada réu, e são oito nessa primeira denúncia, pode arrolar até oito testemunhas por fato [crime denunciado]. E são imputados na denúncia, em linhas gerais, cinco crimes. Então, numa conta grosseira, nós poderíamos chegar a mais de 300 testemunhas, por exemplo. Provavelmente vamos ter um número menor, mas, ainda assim, nós vamos ter um número muito grande de testemunhas
Numa situação normal de temperatura e pressão, eu te diria que é um processo para demorar dois anos até uma sentença. Digo isso pela experiência, estou te dando um dado empírico, sem nenhuma comprovação científica.
Mas todo mundo fala [em notícias na imprensa brasileira] que até o final do ano deve ter uma sentença. Bom, possível é, eu acho pouco provável. Porque, depois de ouvir todas as testemunhas de acusação, que são seis, e todas as testemunhas de defesa, que é um número ainda indefinido, nós vamos ter depois o interrogatório dos acusados. E, então, vai ter que se marcar uma sessão na Turma para alegações finais orais, para que, então, a Turma decida se condena ou absolve.
Esse é o rito do processo. Depois disso, pode ter algum recurso, mas as possibilidades são restritas, porque esse processo já nasce no Supremo, e aí, depois disso, o trânsito em julgado [quando o processo termina].
Mas nós temos outras denúncias vindo. Tem pelo menos mais quatro denúncias prometidas já pelo PGR [que optou por fatiar a denúncia contra 34 suspeitos]. Quer dizer, então você vai ter cinco processos tramitando em paralelo. Digamos que é bem complexo lidar com isso, mas vamos aguardar para ver o tema.
BBC News Brasil – Há notícias na imprensa brasileira de que parte do STF gostaria de concluir esse processo neste ano, para não contaminar a eleição de 2026. É algo negativo se de fato houver uma preocupação política com o andamento do processo?
Aury Lopes Jr - Numa análise exclusivamente jurídica, nenhum juiz precisa ou deve corresponder a expectativas políticas, morais, religiosas ou econômicas. Ele deve corresponder a expectativas jurídicas, que é o devido processo.
Então, tecnicamente, o Supremo não deveria estar preocupado com expectativas políticas de um julgamento. Mas sabemos que o juiz é um ser no mundo e que com certeza existe muita pressão. Isso pode ser um fator a influenciar o julgamento? Pode, mas não deveria.
BBC News Brasil – Há questionamentos sobre a imparcialidade do ministro Alexandre de Moraes para julgar o caso. Qual sua avaliação?
Aury Lopes Jr - Eu acredito que vai haver uma resistência, por parte das defesas, com razão, em relação ao ministro relator.
Eu entendo que o ministro Alexandre deveria se dar por suspeito e não deveria participar desse julgamento, por uma série de fatores. Não só porque ele já tomou decisões [durante as investigações], ele já instruiu esse caso, então ele está contaminado, juridicamente falando, mas também porque existe uma suspeição dele dada toda aquela circunstância de ameaça em relação à vida dele, ainda que isso não tenha se transformado numa acusação jurídica formal de tentativa de homicídio.
Agora, é inequívoco que ele foi afetado pelo fato, ele era alvo do golpe. Então, seria muito interessante e salutar para a própria jurisdição que ele se afastasse. Mas já alegaram a suspeição dele antes e ele não reconheceu. Então, eu acredito que vão surgir exceções de suspeição [alegações de parcialidade], mas elas, provavelmente, pelo histórico do STF, não serão acolhidas.
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BBC News Brasil – O Congresso aprovou a adoção do juiz de garantias, que seria responsável apenas por supervisionar a investigação, justamente para que o juiz que for julgar depois não tenha essa contaminação. Isso ainda está sendo implementado?
Aury Lopes Jr - Não se aplica o juízo das garantias ao Supremo, porque o Supremo entendeu que não caberia [quando julgou ações sobre a aplicação da nova regra]. Mas o argumento é o mesmo [que se aplica ao caso de Moraes].
BBC News Brasil – Há juristas que não consideram Moraes suspeito para julgar Bolsonaro e os demais denunciados. Eles argumentam que, se Moraes for afastado do caso, abriria um precedente e bastaria qualquer investigado ameaçar um ministro para que ele ficasse impedido. Além disso, afirmam que os ataques não eram pessoais a Moraes, mas ao seu papel institucional no STF e no TSE. O que acha?
Aury Lopes Jr - É que eu entendo que o problema da atuação do ministro Alexandre Morais não é só por conta do ataque [que ele recebeu] nesse caso aqui especificamente, mas pelo conjunto de decisões que ele tomou já nesse inquérito todo, envolvendo os acusados do 8 de janeiro, o inquérito das Fake News, ele já foi chamado a tomar decisões lá na fase investigação de maneira muito intensa.
Então, para mim, o que existe é um imenso prejuízo [de imparcialidade] que decorre dos pré-juízos que ele já elaborou. Não é uma questão de bondade, de maldade, de perseguição ou não, é uma questão de inconsciente, de dissonância cognitiva. Quando você é chamado a tomar várias decisões sobre o caso e depois você tem que julgar esse caso, você está contaminado. Você já tem uma visão pré-estabelecida, isso é da natureza humana. "Ah, então qualquer ministro ameaçado vai sair". Não é só a questão da ameaça, é todo o contexto.
Ele se declarar suspeito contribuiria muito pra lisura, pra transparência de regularidade desse processo, e talvez pra diminuir eventuais críticas de violação do processo.
E tem outro detalhe importante: para mim, a própria competência do Supremo para julgar esse caso não é clara e não é pacífica. Isso deveria estar em primeiro grau. Por quê? Porque Bolsonaro é ex-presidente.
O Supremo [quando fixou sua competência em um julgamento sobre foro especial] disse que ele queria julgar o quê? Pessoas detentoras de cargos políticos apenas quando o crime for praticado durante o exercício do cargo. Olha, vamos fazer uma analogia grosseira até: o Lula foi acusado [na operação Lava Jato] depois de sair da presidência por fatos, em tese, ocorridos enquanto presidente. E Lula foi julgado onde? Em primeiro grau.
BBC News Brasil - Na eventualidade de haver um processo e o Bolsonaro for condenado, ele seria preso?
Aury Lopes Jr - Primeiro, ele pode ser preso a qualquer momento a título de prisão preventiva, prisão cautelar. Só que para isso seria necessário existir uma necessidade concreta, por exemplo, um risco de fuga comprovada ou uma destruição de provas.
Fora isso, a pena de prisão de pessoas condenadas pressupõe o trânsito em julgado. Então, ele teria que ser julgado pelo Supremo. Se for condenado, com certeza teremos recursos, desde embargos de declaração, eventualmente embargos infringentes, enfim. Mas só depois de esgotados recursos no próprio Supremo é que nós vamos poder falar em execução de uma pena eventualmente aplicada. Se essa pena superar oito anos, o regime é fechado.
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