Mulher de costas com um colete vermelho com a imagem de Che Guevara em preto, durante uma manifestação

Crédito, NurPhoto via Getty Images

Legenda da foto, O que é a 'esquerda caviar' e quais as suas diferenças em relação a outras correntes de esquerda?
    • Author, Fernanda Paúl
    • Role, BBC News Mundo
  • Há 15 minutos

Imagine que você esteja caminhando pela rua e, de repente, alguém aponta e grita: "Você é caviar!" Qual seria a sua reação?

Dependendo de onde você seja, talvez não entenda o significado do termo. No Peru, por exemplo, é um insulto.

Mas este conceito vai muito além de uma simples ofensa. E seu uso não se restringe ao Peru ou ao Brasil.

É este tema que o acadêmico e doutor em ciências políticas Eduardo Dargent aborda no seu livro mais recente, Caviar: Del Pituco de Izquierda al Multiverso Progre ("Caviar: do 'mauricinho' de esquerda ao multiverso progressista", em tradução livre).

O autor analisa o que significa ser da "esquerda caviar" e as complexidades enfrentadas pelas pessoas em situação social privilegiada, que tentam defender ideias progressistas.

Dargent não está fora deste mundo. Ele mesmo se reconhece como parte dele.

"É impossível negá-lo", declarou ele, em entrevista à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC. "Afinal, não há nada mais caviar do que negar ser caviar."

Esta aproximação não impede que ele critique ou aborde o fenômeno com todas as suas nuances. O que significa, exatamente, o "caviarismo"? Por que ele gera tanta antipatia? E qual a sua presença hoje na América Latina?

A BBC conversou com Dargent sobre tudo isso e muito mais, durante as preparações para o Hay Festival Arequipa, que se realiza no Peru entre 6 e 9 de novembro. Confira abaixo a entrevista.

Eduardo Dargent e um cachorro

Crédito, Gloria Araneta

Legenda da foto, 'Não há nada mais caviar do que negar ser caviar', segundo o cientista político peruano Eduardo Dargent.

BBC News Mundo: Vamos começar com uma pergunta básica. O que significa ser caviar?

Eduardo Dargent: Caviar é uma pessoa que defende uma ideologia progressista e é de classe média para cima.

Normalmente, essa pessoa é de esquerda, embora haja setores da direita que defendam o poder estatal, os direitos humanos ou políticas de adequação do mercado, que também poderiam ser classificados como caviar.

BBC: E é possível comer caviar e defender ideias da esquerda socialista?

Dargent: Sim. Isso faz parte da história do socialismo em muitos lugares, especialmente do socialismo democrático.

Quando ganhou força, o socialismo convenceu setores da classe média e alta a fazer alianças com setores mais populares.

Esta aliança sempre foi problemática para a esquerda. O que alguém que não viveu a vida do pobre pode saber o que é bom para os pobres?

Mas é possível viver relativamente bem e ter ideias de esquerda? Acredito que sim.

BBC: No Chile, uma das candidatas à presidência nas próximas eleições, Jeannette Jara (do Partido Comunista), disse que os comunistas também têm direito a ter iPhone. É um pouco disso tudo?

Dargent: Claro, é lógico que é possível ser socialista ou comunista e ter produtos deste tipo.

Onde, realmente, surgem tensões é quando alguém defende ideias igualitárias e, na sua vida cotidiana, exerce a desigualdade. Isso cai muito mal.

A candidata à presidência do Chile pelo Partido Comunista, Jeannette Jara, posa para uma selfie com outras duas mulheres

Crédito, AFP via Getty Images

Legenda da foto, Jeannette Jara, candidata à presidência do Chile (à direita, na foto), declarou que 'nós, comunistas, também temos direito a ter iPhone'

BBC: Poderia dar um exemplo?

Dargent: Convocar uma conferência sobre a igualdade em um espaço de luxo, excludente.

Uma boa compreensão do mundo mais igualitário passa por reconhecer que os níveis de concentração de riqueza devem ser discutidos, pensados, batalhados.

BBC: Existe no seu livro um conceito relacionado à "esquerda mais à esquerda", que ataca o caviar. Essa esquerda se sente mais qualificada para representar as ideias socialistas? Existe algo de superioridade nessa esquerda?

Dargent: Acredito que haja aqui duas dimensões.

De um lado, a procedência social, mas também o radicalismo. E, às vezes, eles coincidem.

Pelo lado social, eles se sentem ou sabem que são mais proletários. E, portanto, mais próximos do povo que a esquerda diz representar.

E, é claro, quando isso se mistura com o radicalismo, eles também exercem superioridade como "verdadeiros" revolucionários, frente ao caviar moderado.

Existe até um certo tipo de esquerda que acusa a esquerda caviar de moderação, exatamente pela sua condição de classe.

BBC: Eles os veem como traidores?

Dargent: A principal crítica tem a ver com sua relação com o poder.

Eles exploram essa ideia de que eles têm interesses internacionais que impedem as mudanças sociais. Que são excludentes, que supostamente não seriam conscientes dos seus privilégios, quando projetam políticas públicas.

Os setores mais radicais os veem como mais uma engrenagem da conspiração para controlar o poder.

BBC: Existe um certo ressentimento social em tudo isso?

Dargent: Sim, claro. Mas gosto mais do conceito em inglês, resentment, que demonstra uma raiva, um incômodo por alguma coisa.

Acredito que haja um certo ressentimento neste sentido crítico contra os membros da esquerda caviar, de que eles não são conscientes de como a desigualdade se infiltra, até mesmo em espaços que se consideram igualitários.

Por isso, as políticas públicas igualitárias criadas por membros da esquerda caviar podem gerar uma série de barreiras de exclusão, que são discriminatórias ou contraproducentes. Existe algo de correto nesta crítica.

 Del pituco de izquierda al multiverso progre'

Crédito, Eduardo Dargent

Legenda da foto, Dargent publicou este ano seu livro sobre a esquerda caviar

BBC: Então, esta crítica, na sua opinião, é merecida. Existem outras?

Dargent: Acredito que, às vezes, por terem um olhar muito moralista, eles perdem de vista as complexidades dos problemas sociais.

A economia ilegal, por exemplo. Todos nós concordamos que a economia ilegal traz consequências muito negativas e que existem poderes reais por trás dela.

Mas também há um drama social e ela emprega as pessoas. E, geralmente, só se observa esse lado mais criminal e nem tanto a dimensão social, que também merece atenção.

Por outro lado, existe um desprezo pela política eleitoral que é muito prejudicial, pois leva as pessoas a pactuar, a se moderar, a entender que existem coisas que precisamos fazer para avançar.

Este desprezo permite que eles se mantenham com pureza moral, intelectual e ideológica, mas sem aterrissar para que sejam agentes mais políticos das mudanças.

BBC: Dentro do espectro da esquerda woke, onde podemos colocar o caviar? Eles são a mesma coisa?

Dargent: Sim, muitas pessoas da esquerda woke são da esquerda caviar, mas o termo não se restringe a isso.

Eu, por exemplo, sou muito crítico em relação a muitas coisas dessa esquerda mais comunitarista, que retomou esta identidade. Acredito que seja uma esquerda que perdeu muitas das características da esquerda democrática, que avançou em muitas agendas e acabou gerando reprovação.

Por isso, é possível ser da esquerda caviar e não comungar com a forma de ver o mundo dessa esquerda mais woke.

Ilustração de uma mulher inserindo seu voto em uma urna

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, 'Caviar é uma pessoa que defende uma ideologia progressista e é de classe média para cima', define Dargent

BBC: No seu livro, você também diz que a esquerda caviar recebe críticas da direita...

Dargent: Sim, principalmente por apoiar causas que eles consideram inadequadas e por exercer seu poder para restringir o desenvolvimento nacional.

Existe uma direita que acredita que, quando você defende causas ecológicas ou os direitos humanos, está limitando o desenvolvimento de projetos energéticos ou de mineração, que trariam maior bem-estar.

BBC: Além da esquerda e da direita, você também defende que a esquerda caviar gera antipatia em geral na sociedade. Por quê?

Dargent: Parte do que os torna antipáticos tem relação com a elegância, com suas origens sociais e essa prédica de "vou explicar o que é ser pobre".

Também acredito que eles são considerados antipáticos porque detêm interesses que não são necessariamente os mesmos da maioria. A diversidade sexual, por exemplo, as causas ecológicas, os direitos das mulheres, a legalização do aborto etc.

E também há setores que podem desenvolver certo radicalismo moral, de desqualificação ou cancelamento.

Mas, de forma geral, acredito que a esquerda critique o caviar por não ser suficientemente radical e a direita, por ser de esquerda.

BBC: Esta antipatia faz com que a esquerda caviar não queira ser caviar?

Dargent: Não quer ser caviar porque o termo é um insulto para indicar alguém que vive bem e defende ideias progressistas.

"Ele se acha socialista, mas tem apartamento com vista para o mar", costuma-se dizer.

Frequentemente, se um candidato político for chamado de esquerda caviar, precisará assumir um custo, pois é equivalente a ser considerado alguém de classe alta que, ainda por cima, está buscando o voto dos que não são necessariamente pitucos [o equivalente a "mauricinhos", em espanhol falado no Peru], o que é ainda mais contraditório.

Mas não existe nada mais caviar do que dizer "não sou caviar".

Manifestante no Peru com um cartaz com as cores do arco-íris e a inscrição 'Diversidades LGBTIQ+ Anti Fujimoristas' em preto sobre fundo branco

Crédito, LightRocket via Getty Images

Legenda da foto, A esquerda caviar é associada às reivindicações de diversidade sexual

BBC: Já falamos das críticas. Que mérito você vê naqueles que pertencem a uma situação social privilegiada e defendem ideias progressistas?

Dargent: Acredito que eles adotem agendas que são fundamentais em países latino-americanos como os nossos: a luta contra a pobreza, a crítica aos limites do modelo de desenvolvimento, que normalmente não penetra nos bolsões de pobreza, ou a defesa de causas de direitos humanos.

Os violadores de direitos humanos simplesmente não querem que exista a esquerda caviar.

Existem pessoas de direita conservadora, de esquerda conservadora, que convivem melhor com o status quo, mesmo quando são pessoas de boa vontade. Elas convivem muito facilmente com uma série de vícios e problemas de longa data.

Por isso, sem estas ideias da esquerda caviar, liberais ou de centro, muitas dessas agendas são perdidas.

BBC: Você diz no seu livro que, em algum momento, a esquerda caviar foi muito poderosa na América Latina. O que sobrou disso? Qual o seu poder hoje em dia?

Dargent: No caso peruano, eles tiveram muita influência, pois ocuparam cargos em ministérios e detinham vínculos internacionais, que permitiram avançar nas suas agendas. Mas esse poder diminuiu.

Como eles não têm respaldo político organizado, sua influência caiu em um contexto internacional de aumento do populismo, sobretudo do populismo de direita.

Por isso, estes não são bons tempos para a esquerda caviar. Se ela quiser manter sua influência, deve estabelecer algum tipo de organização mais política.

Não quero dizer um partido político caviar, mas pelo menos fazer parte de uma facção ou organizar algumas prefeituras, ter presença dentro dos partidos.

BBC: Além do Peru, qual é a presença da esquerda caviar em outros países da América Latina?

Dargent: Acredito que ela está em todos os países e pode ser reconhecida. Ela tem nomes diferentes, mas, na Argentina, por exemplo, Javier Milei usa a palavra caviar.

O conceito vem da França, com a Gauche Caviar, depois da Espanha, onde também se usa esse termo. Na Colômbia, eles são chamados de mamertos e, no Chile, de socialistas de champanhe.

BBC: No livro, você diz que Mario Vargas Llosa (1936-2025) era da esquerda caviar. Que outras figuras latino-americanas entram nesta classificação?

Dargent: Isso de Mario Vargas Llosa é curioso porque, antes da sua morte, ninguém o qualificava de esquerda caviar, porque ele se voltou mais à direita em muitas coisas.

Que outras figuras? Fora do Peru, o presidente do Chile, Gabriel Boric, provavelmente poderia ser considerado caviar. Antes de assumir o governo, ninguém o teria considerado, mas, agora, sim.

Na Colômbia, a candidata Claudia López [ex-prefeita de Bogotá] ou Sergio Fajardo [ex-prefeito de Medellín e ex-governador de Antioquia] também são da esquerda caviar.

O pré-candidato à presidência da Colômbia Sergio Fajardo

Crédito, LongVisual Press/Universal Images Group via Getty Images

Legenda da foto, Sergio Fajardo é pré-candidato à presidência da Colômbia, pelo partido Dignidade e Compromisso

BBC: A presidente do México, Claudia Sheinbaum, é da esquerda caviar?

Dargent: Acho que não. O que me parece é que [seu antecessor] Andrés Manuel López Obrador está mais à esquerda que a caviar. Mas, se estivesse no Peru e sem partido político, Sheinbaum provavelmente seria caviar.

BBC: Sobre os governos da Venezuela, Nicarágua e Cuba. Que posição costuma ter a esquerda caviar a respeito?

Dargent: Esta é uma diferença interessante.

A maior parte da esquerda caviar não vê problema ao qualificar a Venezuela ou [o presidente da Nicarágua] Daniel Ortega como regimes autoritários. Mas, com Cuba, fica sempre essa coisa meio romântica que, às vezes, é difícil de eliminar.

Ainda assim, acredito que qualquer caviar razoável perceba que não pode apoiar um regime que atropele as liberdades básicas. Mas, provavelmente, ouve [o cantor cubano] Silvio Rodríguez.

BBC: Como se sente a esquerda caviar hoje em dia, em um mundo que parece estar se voltando para a extrema direita?

Dargent: É um mundo no qual o caviar não teve maior capacidade de desenvolvimento de capacidades de organização e sua sobrevivência será mais difícil.

BBC: Para encerrar, por que você decidiu escrever um livro sobre o que significa ser caviar?

Dargent: Há alguns anos, o próprio governo peruano denunciava que o poder da esquerda caviar estava no seu apogeu e que eles eram os responsáveis por todo o mal que se passava no país, capazes de demitir ministros e organizar conspirações.