Uma policial chilena vista de costas vestindo uniforme marrom com colete a prova de balas onde se lê "Carabineros de Chile". Ela tem o braço direito erguido e faz sinal para veículos na rua desviarem

Crédito, Getty Images

    • Author, Gerardo Lissardy
    • Role, BBC News Mundo
  • Há 20 minutos

O Chile vive um paradoxo antes do primeiro turno das eleições presidenciais deste domingo (16/11): a insegurança é um tema-chave da campanha, embora o país tenha índices de criminalidade bem mais baixos do que outros da região.

Quase dois em cada três chilenos adultos (63%) apontam o crime e a violência como os temas que mais os preocupam, de acordo com uma pesquisa da empresa Ipsos divulgada em outubro.

Trata-se de um nível de inquietação maior do que no México (59%) ou na Colômbia (45%), segundo o mesmo estudo, apesar de as taxas de homicídio nesses países serem mais de quatro vezes superiores. Para o Brasil, o índice é de 40%.

O Chile registra o segundo maior percentual de preocupação com o crime e a violência entre 30 nações de diferentes continentes incluídas na pesquisa, apenas três pontos abaixo do Peru, que também tem taxas de homicídio mais altas.

Em março, o Chile apareceu no mesmo levantamento como o país mais preocupado do mundo com esses problemas.

Outros estudos mostram resultados semelhantes: o relatório global de segurança 2025 da empresa Gallup colocou o Chile como o sexto país entre 144 onde menos pessoas se sentem seguras ao caminhar por seu bairro à noite.

"O Chile é um país que está extremamente aterrorizado", diz Daniel Johnson, diretor executivo da Fundación Paz Ciudadana, que avalia políticas públicas de justiça e segurança no país, em entrevista à BBC News Mundo (serviço de notícias em espanhol da BBC).

Mas ele alerta que, com seis homicídios a cada 100 mil habitantes, o Chile está longe de ter o maior problema de crime e violência na América Latina ou no resto do mundo.

Engenheiro civil com formação em políticas públicas, Johnson aponta diferentes hipóteses por trás desse fenômeno, que influencia as propostas dos candidatos à Presidência e talvez também o voto das pessoas.

Os chilenos estão indo às urnas neste domingo no primeiro turno da eleição presidencial do país. A candidata do governo, Jeannette Jara, do Partido Comunista, lidera as pesquisas eleitorais no país.

E três candidatos da direita estão bem colocados na pesquisa para chegar ao segundo turno: José Antonio Kast, do Partido Republicano, qualificado como de direita radical; Evelyn Matthei, da coalizão Chile Vamos, que reúne a centro-direita tradicional; e Johannes Kaiser, do Partido Nacional Libertário, que se posiciona ainda mais à direita do que Kast.

A segurança é um dos principais temas da eleição chilena — junto com a economia e imigração.

Daniel Johnson vestido de terno e gravata, falando a um microfone e gesticulando com a mão direita

Crédito, Fundación Paz Ciudadana

Legenda da foto, Daniel Johnson afirma que todos os candidatos no Chile perceberam o medo da população em relação à criminalidade 'e estão usando isso com veemência'

BBC News Mundo - Por que a segurança pública é uma questão central na campanha eleitoral chilena?

Daniel Johnson - O Chile é um país extremamente aterrorizado. Temos alguns dos maiores índices de medo de se ser vítima de crimes no mundo.

É o país com a maior preocupação com o crime e a violência no mundo. E está longe de ser o país com o maior problema de crime e violência, seja em comparação com outros países da América Latina ou com o resto do mundo.

Embora o Chile historicamente tenha apresentado níveis relativamente altos de medo em comparação com sua taxa real de criminalidade, essa situação piorou nos últimos anos.

As campanhas políticas reconheceram isso e estão explorando amplamente essa questão em todas as candidaturas.

Pessoas caminhando numa calçada à noite

Crédito, AFP

Legenda da foto, Johnson observa que o medo de ser vítima de crimes no Chile aumentou nos últimos anos

BBC News Mundo - Como esse paradoxo pode ser explicado?

Johnson - Existem várias hipóteses.

No índice de medo que compilamos anualmente na fundação, constatamos que as mulheres estão com muito mais medo do que os homens, e que as pessoas de níveis socioeconômicos mais baixos também estão mais medrosas.

Quando sentem a presença do Estado em suas comunidades, geralmente sentem menos medo.

Mas esses dados não refletem mudanças significativas em comparação com as tendências históricas. Portanto, embora isso explique parte do problema, não explica por que temos taxas de medo mais altas nos últimos anos.

É aí que outras hipóteses entram em jogo. Por exemplo, o alto nível de imigração que tivemos no Chile nos últimos anos.

Isso é algo que aconteceu em toda a América Latina. E alguns estrangeiros foram associados a certos tipos de crimes que geram muito medo no país.

BBC news Mundo - Embora o Chile apresente baixos índices de violência em comparação com outros países da região, sua taxa de homicídios praticamente dobrou em uma década. E o índice compilado por sua fundação mostrou, em outubro, que um terço (35%) dos domicílios relataram ter sido vítimas de roubo ou tentativa de roubo nos últimos seis meses. Isso alimenta o medo dos chilenos?

Johnson - De fato, mas o número de famílias afetadas por roubos ou tentativas de roubo não difere do que temos vivenciado historicamente.

Observamos aumentos significativos nos crimes violentos. Por exemplo, estávamos acostumados com três homicídios por 100 mil habitantes por ano, e chegamos a taxas de mais de seis por 100 mil habitantes, embora esse número tenha diminuído ligeiramente nos últimos dois anos.

Em relação aos roubos com violência e intimidação, que não são todos os roubos, também observamos um aumento de 25% nos últimos oito anos.

Outros crimes, muito menos frequentes, também apresentaram um aumento significativo, como extorsão e sequestro.

E períodos de mudança nos padrões de criminalidade geralmente estão ligados a um nível mais alto de medo. No Chile, não sabemos ao certo como nos proteger desses crimes e nos sentimos muito amedrontados.

Vista aérea de um bairro em Santiago, Chile, à noite

Crédito, AFP via Getty Images

Legenda da foto, Os chilenos querem mais patrulhas policiais, iluminação e câmeras de vigilância, mas isso pode ter pouco impacto na segurança, diz Johnson

BBC News Mundo - Esses crimes mais violentos se devem à expansão do crime organizado?

Johnson - De fato, houve um aumento no número de organizações criminosas em atuação: novas organizações com características diferentes.

No Chile, como em todos os países, existem organizações em certos setores ou bairros que estão ligadas ao seu entorno, mas que podem ser muito violentas se se sentirem ameaçadas em suas atividades criminosas.

No entanto, o que sempre existiu e era relativamente controlado agora apresenta uma dinâmica diferente. Há um maior uso de armas de fogo em homicídios e muito mais homicídios planejados no Chile, sem que nenhum suspeito seja identificado.

Há também a presença de novas organizações que se comportam de maneira muito diferente em relação ao seu posicionamento territorial, ligadas a pessoas de nacionalidade estrangeira.

BBC News Mundo - Qual a relação entre o medo do crime e a desconfiança nas instituições no Chile?

Johnson - Elas estão relacionadas. É muito importante. Os baixos índices de aprovação pública de várias instituições que atuam na área de segurança e justiça, com exceção da polícia, têm se concentrado nos últimos tempos.

É um ciclo vicioso: se as pessoas sentem que não estão protegidas, desconfiam ainda mais das instituições, que, por sua vez, têm muito mais dificuldade em agir. As taxas de denúncia de crimes começam a cair, o que, consequentemente, reduz a capacidade do sistema de reagir com eficácia — sua taxa de sucesso — e o sistema perde legitimidade.

Felizmente, no Chile, a polícia, que tinha índices de legitimidade muito baixos após os distúrbios sociais [onda de protestos que abalou o Chile de outubro de 2019 a março de 2020, contra o modelo econômico ultraliberal do país, herdado da ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990)], se recuperou.

Gabriel Boric de paletó azul e camisa branca sem gravata, com óculos de aros grossos na cor preta e cabelo levemente desgrenhado

Crédito, AFP

Legenda da foto, Como presidente do Chile, Gabriel Boric enfrentou o desafio de melhorar a segurança pública diante das crescentes demandas dos cidadãos

BBC News Mundo - Como você avalia a forma como o governo Boric respondeu a esse desafio?

Johnson - Os Poderes Executivo e Legislativo reagiram adequadamente.

Há uma expectativa pública por uma resolução mais rápida dos problemas de segurança e uma demanda por mudanças imediatas nas políticas públicas. Por exemplo, o aumento do patrulhamento policial, a iluminação pública e as câmeras de vigilância são medidas que os cidadãos desejam porque as consideram eficazes.

Mas sabemos que essas políticas geralmente têm pouco impacto se não forem acompanhadas por processos mais complexos.

Portanto, foi difícil abordá-las da maneira que o público exigia.

Por outro lado, temos um nível de criminalidade tão dinâmico que a polícia precisa mudar constantemente seus métodos. E essa capacidade de mudança não reside na força policial.

O que o governo fez foi dar continuidade ao processo, por exemplo, criando um Ministério da Segurança que recebeu o poder de liderar mudanças institucionais, inclusive dentro da polícia. E foi criado um sistema de segurança que exige a coordenação entre ministérios e serviços públicos.

Essas são mudanças positivas que esperamos que tenham um efeito a longo prazo. Mas há outros aspectos que foram adiados, como a reforma policial.

BBC News Mundo - Você mencionou o fator imigração, e uma pesquisa recente do Ipsos em 30 países colocou o Chile bem acima da média em preocupação com o controle da imigração (40%), além da preocupação com a criminalidade (63%). Até que ponto esses dois fenômenos estão relacionados?

Johnson - Existe uma relação. Um estudo até 2020 não mostrou correlação entre imigração e o aumento da criminalidade.

Estamos finalizando mais um estudo. Ainda não temos os resultados, mas temos indícios de certos tipos de crimes presentes no Chile que estão intimamente ligados a pessoas de nacionalidade estrangeira, muitas vezes não migrantes.

Também existem organizações criminosas que atuam no exterior e possuem filiais ativas no Chile, como a gangue Tren de Aragua.

Esses grupos, embora não sejam numerosos, podem ser muito prejudiciais devido aos tipos de crimes que cometem.

Nos casos que vimos, eles são muito violentos, inclusive contra migrantes, porque são os mais vulneráveis. E tendem a estar envolvidos em diversas atividades: tráfico de pessoas, exploração sexual, grilagem de terras, extorsão, sequestro e até homicídio.

Portanto, existe uma rede criminosa que envolve estrangeiros como autores, mas também como vítimas, o que é muito diferente da organização criminosa tradicional no Chile. O sistema conseguiu responder e identificar muitos membros dessas organizações. Isso conteve seu avanço, mas eles ainda estão presentes e causando danos.

Um policial fortemente armado guarda um carregamento de drogas apreendido em Santiago, Chile.

Crédito, AFP

Legenda da foto, Embora os níveis de violência no Chile sejam baixos para a região, 'houve um aumento na atuação de organizações criminosas', afirma Johnson

BBC News Mundo - Você também mencionou que todos os candidatos estão abordando a questão da segurança de alguma forma. Será que esses temores entre os chilenos estão sendo usados ​​ou explorados em certa medida para angariar votos, em uma sociedade que está menos politizada do que antes?

Johnson - De fato, sim.

Suponho que não haja má intenção por trás disso. Mas quando as pesquisas mostram que a maior preocupação dos chilenos é a segurança, obviamente quem apresentar soluções que mais ressoem com o público ganhará mais votos. Portanto, é de se esperar que os candidatos apresentem propostas.

Por um lado, isso exacerba o sentimento de medo. Em outras palavras, valida o medo que sinto, porque um candidato está dizendo que é um caso tão sério que todos deveriam estar falando sobre ele.

BBC News Mundo - Isso beneficia algum partido ou candidato em particular?

Johnson - Historicamente, partidos mais conservadores, de centro-direita ou de direita têm dado mais atenção à segurança do que partidos mais à esquerda.

Ou, dito de outra forma: partidos mais à esquerda tendem a buscar soluções na esfera social, enquanto partidos mais à direita se concentram no policiamento e no controle.

Ambas as abordagens são necessárias. E isso é menos evidente na campanha atual. Quando temos um nível tão alto de medo, temos um forte senso de urgência.

Hoje, no Chile, pouco se fala sobre medidas com impacto definitivo ou de longo prazo. O pensamento predominante é que o problema da insegurança é tão alarmante que as soluções devem ter um impacto imediato.

E as propostas que poderiam ter um impacto imediato são aquelas mais relacionadas ao controle ou ao encarceramento. E medidas que podem ter um impacto a longo prazo, como a prevenção precoce do envolvimento criminal ou a reintegração social, são frequentemente relegadas a segundo plano.

Aí tem um problema. Sabemos que o controle e a punição são necessários. Mas, embora isso possa ajudar hoje, não resolverá o problema permanentemente.

Pessoas caminham por um bairro de Santiago à noite.

Crédito, AFP via Getty Images

Legenda da foto, Johnson argumenta que a ênfase dada pelos candidatos a questões de segurança "exacerba o sentimento de medo das pessoas"

BBC News Mundo - Há alguns anos, o ex-presidente socialista chileno Ricardo Lagos nos disse em uma entrevista que, para a esquerda latino-americana, seria um "erro profundo" deixar a questão da insegurança, que afeta principalmente os setores mais pobres, para a direita. A esquerda chilena conseguiu incorporar efetivamente essa questão em sua agenda?

Johnson - Acho que nenhum setor político no Chile conseguiu incorporá-la, entendendo-se "efetivamente" como propor soluções relevantes para os problemas.

Eu diria que isso é verdade em todo o espectro político. Sim, a esquerda adiou. E este governo, que é de esquerda, teve que abordar a questão fortalecendo as instituições, o que acreditamos ser um caminho muito necessário que terá impacto a médio e longo prazo.

Mas foi preciso lidar com a situação de forma improvisada, porque, historicamente, esse é um tema que não tem sido abordado com a força necessária.

Espero que, após essa experiência, a esquerda no Chile abrace a questão e que as palavras do presidente Lagos se reflitam em uma abordagem mais abrangente.

O mesmo vale para a direita, que, embora tenha uma compreensão maior das questões de segurança, tende a abordá-las principalmente com medidas de controle e precisa incorporar medidas tipicamente associadas a setores de esquerda, como políticas sociais.

Johnson - Esses tipos de eventos têm tamanha relevância internacional que são profundamente familiares à sociedade chilena. Eles permeiam todos os níveis sociais do país.

Ouso dizer que, embora não haja uma opinião definitiva sobre se era necessário, existe a sensação de que o Chile corre o risco de atingir esses níveis de violência, com organizações criminosas operando de uma forma que justifique uma operação policial como a do Brasil ou ações como as tomadas pelos EUA contra a Venezuela.

E isso também está sendo explorado por candidatos que afirmam que o Chile está a caminho de se tornar um Estado falido, com o narcotráfico controlando as instituições públicas.

Portanto, quando esse tipo de ação é visto, gera uma reação mais forte entre os cidadãos, devido ao medo de que o Chile possa se tornar um Estado enfrentando as mesmas dificuldades.

Isso tem um impacto, e está sendo explorado na campanha política para destacar esse risco e tentar se apresentar como o candidato mais capaz de lidar com ele.

BBC News Mundo - Por parte da direita mais radical?

Johnson - Há alguns candidatos que estão levando isso mais a sério, sim.