Pela primeira vez, em quase 200 anos de Parlamento, o Congresso Nacional terá uma bancada negra instituída. O Legislativo passa a espelhar cada vez mais a diversidade da população brasileira muito em função a uma maior adesão, compreensão e validação da luta antirracista e também como um resultado de políticas afirmativas implementadas ao longo do século XXI, segundo analisa Reginete Bispo (PT), deputada gaúcha negra que faz sua estreia em Brasília neste ano.
A bancada negra deve levar a luta histórica contra o racismo para a Câmara, onde um projeto de autoria de Reginete pretende regulamentar o artigo da Constituição Federal que trata do trabalho escravo.
O Projeto de Lei (PL) 1102/23 trata da expropriação dos bens daquelas pessoas físicas ou jurídicas que utilizam mão de obra análoga à escravidão e estende a culpabilidade para toda a cadeia produtiva, além de levar a atribuição do julgamento destes casos para a Justiça do Trabalho.
Jornal do Comércio - Qual a importância de ter uma bancada negra na Câmara dos Deputados?
Reginete Bispo - É um feito histórico. O Congresso Nacional brasileiro completa 200 anos no ano que vem. Pela primeira vez na história do Parlamento, temos uma bancada negra formalmente. Representa o reconhecimento da importância da presença negra na casa. Agora temos uma cadeira no colégio de líderes, que define a pauta na Câmara dos Deputados. Quando dizemos que queremos estar nos espaços de poder de decisão, é isso. É poder decidir o que é importante, fundamental para a vida do País. É uma grande conquista ter uma representatividade dentro da estrutura de poder. Só foi possível porque, pela primeira vez, temos um número significativo de parlamentares negros a ponto de constituirmos uma bancada formalmente institucionalizada.
JC - Ao que atribui o crescimento da presença de pessoas pretas e pardas no Congresso?
Reginete - São vários fatores, mas há três fundamentais. Primeiro é o aumento e maior visibilidade da luta antirracista no Brasil, com o fortalecimento das organizações do movimento negro, especialmente de mulheres negras, que têm feito uma luta permanente pela ocupação dos espaços de poder, e também de formação, como foi a conquista das cotas na universidade e no serviço público brasileiro. A organização política dos negros saiu da invisibilidade e hoje ocupa o centro do debate no País. Outro ponto é uma parcela significativa da população não negra que entende que é necessário superar o racismo estrutural que permeia todas as relações, sobretudo as relações de poder no nosso País, somando-se à luta antirracista. Por último, o financiamento público das campanhas tem sido determinante. Hoje, a gente pode acessar os recursos para uma campanha, o que a gente não podia antes. O Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que 30% dos recursos devem ir para candidaturas negras e foi determinante para a constituição da bancada negra, não só na Câmara dos Deputados. Em 2020, em Porto Alegre, elegemos uma bancada negra.
JC - Há países que vão além das cotas de financiamento, reservando vagas no Parlamento. Qual seria a melhor forma de aumentar a representatividade?
Reginete - O financiamento é importantíssimo, mas eu sou adepta de vagas, de cadeiras, como há em diversos países da América Latina, África e Ásia. Em 2015, conheci o Parlamento senegalês, onde há igualdade de gênero. Penso que o Brasil está muito atrasado nesse debate. Nós deveríamos avançar em ter reserva das cadeiras em equidade de gênero, paridade de raça, garantir proporcionalidade. São os maiores grupos populacionais. As mulheres, segundo o IBGE, são 52% da população. Nós negros somos quase 58%. As mulheres negras são o maior grupo populacional, com 27% da população. E são grupos que estão subrepresentados nos Parlamentos, no Judiciário, no Poder Executivo.
JC - Já é possível perceber os efeitos das políticas afirmativas nas universidades?
Reginete - Em 2020, completamos 10 anos das cotas sociais e, de dentro destas, as cotas raciais nas universidades brasileiras. Então temos uma ou duas gerações formadas nessa política de cotas. Vemos uma crescente presença negra em determinados espaços em vários setores. Penso que isso também é consequência das cotas nas universidades. Temos mais gente preparada. Há uma presença maciça de alunos negros nas universidades, sobretudo as públicas. Isso tem uma força de transformação.
JC - Como será o funcionamento da bancada, quais são as atribuições?
Reginete - É uma bancada plural. Temos negros de diversos partidos. O que caracteriza e justifica a existência de uma bancada negra é que ela seja antirracista, então deverá priorizar pautas que democratizem as relações de poder, que fortaleçam políticas públicas voltadas para a população negra. Por óbvio, não vamos tratar só de pauta racial. Vamos tratar de pautas de interesse nacional, mas que dentro dessas pautas esteja garantida a igualdade racial. Vamos estruturar nossas demandas, tendo como prioridade uma agenda antirracista. A criação do feriado da consciência negra em 20 de novembro foi um ato histórico da bancada negra. O projeto tramitava há 35 anos com a resistência de setores da casa vinculados ao comércio, que trabalha com a lógica equivocada de que o feriado prejudica a economia. Ter um feriado que homenageia um herói negro que lutou contra a escravidão é inédito. Não tínhamos nenhum feriado que fizesse referência a essa epopeia que foi a presença negra no Brasil e a luta desse povo contra a escravidão, que durou quase quatro séculos. Hoje as crianças negras vão poder dizer que têm um herói negro da Pátria, com o Zumbi dos Palmares, que representa a história de resistência do povo negro por justiça e liberdade. Quiseram os orixás que eu fosse a relatora e pudesse fazer parte dessa história.
JC - Como combater o racismo legislativamente?
Reginete - A aprovação de uma lei é importantíssima porque é ela que vai orientar como uma sociedade deve se portar. Na agenda antirracista, temos uma que é a efetivação dessa lei. A Constituição diz que todos somos iguais perante a lei, independentemente, de sexo, cor da pele, religião ou gênero. No entanto, o racismo estrutural é algo forte que determina tudo no nosso País, estrutura todas as relações de poder. Temos, no machismo, uma sociedade muito misógina. É assustador o número de feminicídios. Na nossa capital gaúcha, quase todos os parlamentares negros sofreram ameaças de morte, violências no plenário. Aqui na Câmara dos Deputados, e as comissões de ética não funcionam para os homens brancos. Nas comissões, tem um grupo de parlamentares que define a pauta de costumes e, consequentemente, há o silenciamento das mulheres. Porque todas essas pautas de costumes retiram direitos das mulheres. É muito difícil.
JC - O racismo é estrutural, assim como a misoginia. Há um caminho para a desestruturação do preconceito?
Reginete - O racismo à brasileira é uma engenharia muito bem feita. Foi pensado. O processo de escravização de africanos no Brasil não foi algo por acaso. Ele foi muito bem elaborado. Então tem uma tecnologia racista que persiste e se mantém muito ativa. A primeira é nos deslegitimar da possibilidade de sermos o que quisermos ser. Ainda existe na mentalidade da maioria dos brasileiros que negro deve ocupar determinados papéis, nos desconstituindo de inteligência. A escravidão de seres humanos se constituiu dessa forma: tirando a humanidade; sob a benção da igreja, do Estado e da sociedade.
JC - Acredita que é um processo que persiste?
Reginete - Persiste de tal forma que, por exemplo, veja o Rio Grande do Sul. Um estado que entendíamos até bem pouco tempo como um dos mais desenvolvidos e ainda persiste a utilização de mão de obra escrava. Essa mentalidade ainda está permeando o conjunto da sociedade brasileira. Nesse sentido, apresentei o Projeto de Lei 1102/23, que trata do combate ao trabalho escravo. Busca regulamentar o artigo 243 da Constituição, que trata da expropriação dos bens daquelas pessoas físicas ou jurídicas que utilizam mão de obra escrava. Vimos no Estado, no início do ano e mais recentemente, o Ministério Público e a Justiça do Trabalho resgatando trabalhadores escravizados. Não foi lá nos grotões, onde o Estado não chega. Foi em setores da economia muito bem estruturados, muito bem organizados, como a vitivinicultura, os setores arrozeiro, fumageiro, maciêiro. Isso é muito recorrente em todo o País e concluímos que a abolição da escravatura não cessou esse processo. Ele é permanente, precisa ser enfrentado e a casa parlamentar tem esse papel. É assustador o número de trabalhadores que são resgatados, mas é pífio o número de pessoas que são punidas por isso. Então há uma falha na legislação e, na minha opinião, é a falta de regulamentação do artigo 243.
JC - Como a regulamentação desse artigo pode prevenir que novos casos de escravização de trabalhadores voltem a ocorrer?
Reginete - Nosso projeto inova no sentido de que atribui a responsabilidade de fazer a expropriação dos bens para a Justiça do Trabalho, que na minha opinião é mais bem preparada para lidar com o tema. Ela que reconhece se o trabalhador está sendo escravizado, é ela que conhece as vulnerabilidades desse trabalhador. Então ela que deve encaminhar a expropriação dos bens de quem está escravizando. Inova também no sentido de responsabilizar, no caso de empresa, toda a cadeia produtiva. No caso do RS, um discurso recorrente em todo o País, o empresário diz: "era uma empresa terceirizada, eu não sabia que estava utilizando mão de obra escravizada". No nosso projeto, esse argumento não existe mais. Toda a cadeia será responsabilizada. Outro elemento é que as propriedades que forem expropriadas não ficarão com o Estado. Se forem no campo, serão destinadas para fins de reforma agrária. Se na cidade, para moradia popular. Estou dedicada em aprovar esse projeto para que possamos ter uma legislação séria e eficiente para punir quem utiliza mão de obra escravizada no nosso País.
JC - Deputados gaúchos se mobilizam para suprimir um dispositivo da reforma tributária que define os recursos do IBS, novo imposto, a partir da média da arrecadação dos estados entre 2024 e 2028. É um movimento de toda a bancada gaúcha?
Reginete - É de parte da bancada. Agora, vemos movimento de governador, como é o caso do Rio Grande do Sul, de aumentar o ICMS para poder ter uma maior compensação ali adiante. Acho absolutamente equivocado e desonesto esse tipo de movimento. A própria reforma prevê um fundo de compensação para estados e municípios que tiverem perdas nesse processo de transição. No primeiro momento, pode parecer que tenha perdas, mas vai ser compensado logo adiante. O importante é que vamos fazer aquilo que há mais de 30 anos se tenta fazer, que é ter um sistema tributário justo e eficiente. O Brasil precisa de uma reforma tributária para dar mais competitividade à economia e promover justiça social. O projeto já prevê medidas de correção. Ele já foi exaustivamente debatido na Câmara dos Deputados. Infelizmente, no Senado, foi colocada uma porção de "jabutis", como por exemplo isenção para setores da economia que vão impactar depois no aumento da alíquota final para o consumidor. Ele é complexo, mas penso que estados e municípios estão se precipitando em aumentar alíquotas hoje para terem uma maior compensação amanhã.
JC - Acredita que é possível alguma mudança no texto?
Reginete - Acredito que sim, mas isso vai depender muito do acordo de líderes. Penso que se houver mudanças, deve ser mudado aquele conjunto de isenções que foram atribuídas. No texto original, trabalhamos em isenções para queles setores que são fundamentais, como isenção na cesta básica, produtos da saúde, mas também naqueles setores que são essenciais para o conjunto da sociedade. O que justifica, em nome da empregabilidade, dar isenção para a indústria automobilística? O Senado acrescentou algumas coisas que talvez, na Câmara, a gente possa vir a fazer algumas alterações.
Reginete Bispo é socióloga, formada pela Ufrgs. Nasceu em Marau e mudou-se para Passo Fundo. Iniciou a militância social junto à Pastoral da Juventude e na luta pela reforma agrária. É ativista dos direitos hmanos nas pautas de enfrentamento ao machismo, ao racismo e do movimento de mulheres negras. Integra o Movimento Negro Unificado desde 1990. Em 2018, foi eleita suplente na chapa ao Senado encabeçada por Paulo Paim (PT). Concorreu em 2022 à Câmara dos Deputados e assumiu como primeira suplente em fevereiro de 2023, após o deputado Paulo Pimenta (PT) se tornar ministro da Secretaria de Comunicação Social. No governo do RS, na gestão Olívio Dutra (PT, 1999-2002), foi diretora do Departamento de Desenvolvimento de Recursos Humanos; e, no governo de Tarso Genro (PT, 2011-2014), foi assessora do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social. Em 2011, recebeu a Medalha de Honra ao Mérito de Ensino e, em 2018, o prêmio Zumbi dos Palmares, da Assembleia Legislativa. Representou o Brasil, em 2012, na 3ª Conferência Internacional de Solidariedade da África do Sul. Foi consulesa honorária do Senegal no RS. É sócia-fundadora do Instituto Akanni - Pesquisa e Assessoria em Direitos Humanos, Gênero, Raça e Etnia.

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