
O Facebook foi flagrado mantendo no ar comunidades dedicadas a conectar gestantes ou mães oferecendo crianças a pessoas procurando adoções por fora do sistema oficial brasileiro. As práticas são ilegais. Segundo o CNJ (Conselho Nacional de Justiça), que gerencia o Cadastro Nacional de Adoções, as condutas podem ser enquadradas em diversos aspectos do Código Penal, e resultar em penas de reclusão de dois a seis anos.
Os grupos só foram removidos após a Defensoria Pública de São Paulo exigir a retirada deles em ofício remetido no fim de julho, ao qual Radar Big Tech teve acesso. Algumas das páginas reuniram mais de 3 mil pessoas e ficaram no ar por pelo menos um ano e quatro meses. Nesses espaços, os usuários se sentiam confortáveis para conversar sobre ofertas de bebês ainda não nascidos, encomendas de crianças para o futuro, descrição dos pais biológicos para antecipar possíveis características físicas das crianças e até dicas para legalizar adoções ilegais.
O caso vem à tona duas semanas após ser sancionado o ECA Digital, que obriga plataformas digitais a adotar camadas adicionais de segurança para menores de idade. Não é a primeira vez que a rede social abriga grupos com esse propósito. Procurada, a Meta (dona do Facebook, Instagram e WhatsApp) informou que não comentaria. Isabella Henriques, diretora-executiva do Instituto Alana, voltada à proteção da criança e adolescentes, classificou a situação como "descaso completo e absoluto da plataforma".
O que rolou?
Os grupos foram identificados pelo defensor público Gustavo Samuel da Silva Santos, coordenador do Núcleo Especializado da Infância e Juventude da DP-SP. Ele não estava no meio de uma investigação, mas, sim, checando o que ouviu durante um mutirão online. Realizado em maio no Dia Nacional da Adoção, o evento reuniu pessoas adotadas com interesse em reconstituir o próprio passado. Segundo Santos, muitos dos casos são difíceis porque boa parte dos indivíduos foram alvo da chamada "adoção à brasileira", prática que passa por fora dos canais oficiais. Em uma das conversas, o defensor ouviu que, se no passado o boca a boca viabilizava as doações, hoje em dia as crianças são encontradas em grupos do Facebook. Ele foi checar e descobriu:
- Mais de 30 comunidades com nome "Bios e adotantes", que em que mães biológicas, as autodenominadas "bios", ofereciam crianças nascidas ou ainda no ventre a adotantes, pessoas que querem ter filhos, mas não procuram os serviços previstos em lei. Conforme o ofício enviado à Meta ao qual Radar Big Tech teve acesso...
- ... Esses grupos eram regionais, de modo que o do Nordeste tinha 1,6 mil membros, o de Mato Grosso, 1 mil inscritos, e o de Goiás, mais de 3 mil...
Analisando o conteúdo de algumas dessas comunidades, percebe-se que é claro o uso da plataforma para burlar o cadastro, inclusive com referências a compensações financeiras, golpes e outros indícios de transações financeiras envolvendo a entrega ilegal de crianças
Gustavo Samuel da Silva Santos, coordenador do Núcleo Especializado da Infância e Juventude da DP-SP
- ... Posts vistos pela reportagem mostram dinâmicas bastante diversas nas comunidades, tanto que Algumas mães e gestantes não pediam dinheiro:
Meu nome é Yasmin, sou bio de menina, sou do rio, mais atualmente morando em sp ate ganhar? alguma adotante? Não quero ajuda (sic)
- ... Outras pediam de forma implícita. Adotantes, a maioria anônima, encomendavam crianças:
Estou procurando uma mulher que esteja grávida para assumir como se fosse meu ajudo financeiramente
- ... Também havia quem tentasse antecipar as características físicas da criança a ser doada:
Pais brancos ambos nasceram louros, um permanece louco com olhos azuis e 85% de chance de ser menina. Pais saudáveis com todos os testes
- ... E, entre "bios" e adotantes, havia um terceiro grupo nessas comunidades, que agia como facilitador. Ora explicavam como não cair em golpes. Ora davam dicas para transformar doações ilegais em processos legítimos, seguindo caminhos como...
- ... Obter dos responsáveis uma procuração com amplos poderes para cuidar da criança e depois entrar com processo judicial para ter a guarda provisória ou...
- ... No ato do nascimento, registrar a criança no nome do pai adotante e, após um ano, entrar com pedido de guarda provisória. Mais tarde, solicitar a guarda unilateral para incluir a mãe adotante na certidão de nascimento. Ainda assim, alertavam que...
- ... No decorrer dos processos, os pais e mães biológicos poderiam ir à polícia para reaver as crianças.
Por que é importante?
Pensando na dor que viu durante o mutirão das pessoas em busca do passado biológico, o defensor Santos diz que adoções sem os devidos registros podem causar lacunas irreparáveis.
Isso traz um sofrimento para essas pessoas, porque muitas dessas pessoas nunca terão acesso às suas origens
Gustavo Samuel da Silva Santos, da DP-SP
Para Isabella Henriques, do Alana, casos como esses mostra como companhias que gerenciam ambientes digitais ignoram que possuem obrigação constitucional de proteger crianças e adolescentes.
As plataformas digitais têm a responsabilidade constitucional de garantir e preservar os direitos de crianças e adolescentes. Quando entra especificamente na atuação dessas empresas, elas acabam não só permitindo, mas tolerando que tudo isso aconteça. Muitas vezes até eventualmente impulsionando. É realmente muito grave
Isabella Henriques, diretora-executiva do Instituto Alana
Santos conseguiu convencer a Meta a derrubar os grupos ao argumentar que as comunidades infringiam o Estatuto da Criança e do Adolescente, a Constituição Federal (Estado, família e sociedade, da qual o Facebook faz parte, são responsáveis por proteger crianças e adolescentes) e a resolução 245/24 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e Adolescente (provedoras de serviços e plataformas digitais precisam garantir segurança no ambiente digital a crianças e adolescentes).
Em resposta a Radar Big Tech, o CNJ explicou que há dois tipos de burla ao sistema de adoção:
- adoção à brasileira: uma fraude de registro em que um terceiro registra uma criança em seu nome no lugar do pai e mãe biológicos, à revelia ou com consentimento deles. Registrar filho alheio como próprio é enquadrado pelo artigo 242 do Código Penal
- Adoção intuito persona: é basicamente deixar o filho com outra pessoa sem passar pelos canais oficiais de adoção. Pode ser enquadrado como abandono intelectual, descrito no artigo 246 do Código Penal. Alguns juízes, porém, passaram a aplicar sanções civis, como indenização por dano moral coletivo por violação ao cadastro nacional, informa o CNJ.
Se você está entregando uma criança para um terceiro desconhecido, pode até ser para tráfico de órgãos. Você não sabe o que vai acontecer, não tem controle daquela de quem é aquela família. E, se uma pessoa tá procurando um meio ilícito para conseguir a adoção, a gente pode presumir que ela não tem condições de exercer essa função, seja porque não passaria numa avaliação psicossocial ou não teria condições de ofertar um espaço seguro para essa criança
Gustavo Samuel da Silva Santos, coordenador do Núcleo Especializado da Infância e Juventude da DP-SP
Não é bem assim, mas tá quase lá
No ofício enviado à Meta, o defensor Santos pede para a empresa proibir a criação de grupos voltados à adoção ilegal de crianças. Segundo ele, a dona do Facebook afirmou ser difícil adotar um veto às palavras "bio" e "adotantes", pois impediria, por exemplo, grupos de biologia, de adoção legalizada ou sobre o acolhimento de pets. O objetivo dele, ainda em negociação, é a rede social topar promover uma campanha educativa no Brasil sobre adoção legal.
Não é a primeira vez que o Facebook é flagrado hospedando grupos ou comunidades voltadas à adoção à margem dos canais oficiais. Em 2016, o Ministério Público de São Paulo processou dois advogados por falsidade ideológica ao fazer uma adoção clandestina de bebê em São Paulo por intermédio de páginas no Facebook, segundo reportagem da "Veja SP".
Em 2020, o MP-SP abriu nova investigação, dessa vez contra o Facebook, sobre um esquema ilegal de doação ilegal em grupos da rede social. Chegou a apreender duas crianças, encaminhadas para abrigos. A ação levou à derrubada de várias páginas -uma delas, a "Quero doar meu bebê", não deixava dúvida sobre o que ocorria lá.
DEU TILT
Toda semana, Diogo Cortiz e Helton Simões Gomes conversam sobre as tecnologias que movimentam os humanos por trás das máquinas. O programa é publicado às terças-feiras no YouTube do UOL e nas plataformas de áudio. Assista ao episódio da semana completo.

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