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Graduação em psicanálise é hoje uma falácia, mas precisamos ouvir mais

Tenho meu canal no YouTube, mas também falo em redes clínicas, projetos de escuta e coletivos psicanalíticos.

Vou a debates acadêmicos e eventos de todo tipo de associação, já falei em bancos e sindicatos, empresas e chão de fábrica, escolas de periferia e centro, sociedades científicas e mídia de massa. Já dei aula na rua, em praia, em praça pública. Presencial ou digital, para democratizar o ensino e diversificar o acesso à psicanálise, insistindo nas boas práticas de formação e no diálogo sobre experiências de sofrimento, psicoterapia e psicanálise.

Conversar com pessoas em diferentes contextos, fora dos condomínios, não me torna menos parte da elite, mas permite retribuir um pouco do que recebi do ensino público e das bolsas de estudo nas Escolas de Psicanálise.

Graduação em psicanálise hoje é uma falácia

Penso que foi essa presença, como psicanalista, professor e pesquisador da Universidade de São Paulo, ativista e crítico cultural, que me levou ao Fórum do Campo Lacaniano, junto à Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras, que aconteceu em setembro, na Câmara dos Deputados.

Na ocasião, discutiu-se a impertinência dos cursos de graduação em psicanálise, hoje em processo de regularização pelo Ministério da Educação.

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Entre os argumentos favoráveis, destacam-se dois:

  1. A criação de graduações reconhecidas poderia substituir cursos irregulares amplamente comercializados, principalmente em formatos digitais e Ensino a Distância, inclusive com prática clínica, supervisão e análise pessoal, mas sem controle institucional.
  2. Esses cursos poderiam democratizar e diversificar o acesso à formação, atendendo à demanda crescente por cuidados em saúde mental, diante da insuficiência das escolas tradicionais.

Esses argumentos, porém, são falaciosos. Eles confundem estudo da psicanálise —legítimo e aberto a qualquer instituição acadêmica— com habilitação, certificação ou reconhecimento estatal.

Misturam, proposital ou inadvertidamente, formação de pesquisador ou docente universitário, formação como especialista ou terapeuta e formação universitária genérica com habilitação para a prática clínica psicanalítica.

O problema das pseudoformações

Criar graduações não resolve o problema das formações irregulares — ao contrário, o agrava.

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Currículos padronizados, baseados em créditos acadêmicos, contraria o fundamento da psicanálise, cuja formação é singular e não redutível a protocolos, cursos, pós-graduações ou especializações.

A habilitação para a prática clínica é sustentada por uma regulação social difusa, exercida historicamente pelas escolas e sociedades psicanalíticas, não pelo estado. Essas escolas regulam legitimamente a prática e formação, mas isso levanta uma pergunta: o que é uma escola ou sociedade? No que elas diferem de associações e instituições que oferecem cursos de psicanálise?

Nem o cumprimento formal do "tripé" — análise, supervisão e estudo teórico — certifica psicanalistas. Essa garantia só vem da qualidade da formação, não dos indivíduos formados.

Por isso, democratização não deve ser confundida com acesso, engajamento midiático ou proselitismo religioso. A luta por uma representação legítima e ética recusa tanto a regulamentação estatal quanto as pseudoformações que exploram a ausência de regulamentação.

Sim, aos cursos livres de extensão. Sim, à presença da psicanálise nas universidades e nos programas de pós-graduação. Mas não às graduações em psicanálise, e não às pseudoformações.

Pseudoformações incluem:

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  • Distribuição de carteiras de "psicanalista";
  • Obediência meramente curricular ao "tripé";
  • Ausência de leitura e elaboração teórica;
  • Inexistência de contato presencial entre mais de quinhentos alunos;
  • Mercantilização da prática clínica;
  • Falta de formação universitária ou técnica prévia;
  • Mistura imprópria com discursos religiosos, moralizantes e comerciais.

É preciso olhar a formação fora do centro

Qualquer um que tenha interesse real em pensar uma psicanálise decolonial deveria entender como a psicanálise é traduzida e pasteurizada longe dos grandes centros e como o processo de pseudoformação acontece no Brasil profundo —feito às pressas, majoritariamente à distância, iludindo pessoas com o título de psicanalista.

Reconhecer os saberes e sofrimentos que pessoas em condições adversas têm pode transformar a psicanálise.

Mas, imaginar que uma formação pode ocorrer sem leitura, estudo continuado e rigoroso, fora de comunidade de trabalho presencial, com análises compulsórias e endogâmicas, apenas reforça a dominação e exclusão que interessa aos caudilhos locais e "pastores" que disputam a prerrogativa de representar a "fé psicanalítica".

Interesso-me, como antropólogo amador, por compreender esses confrontos para-psicanalíticos e como eles se justificam diante da crítica direta para elaborar uma resposta mais contundente.

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É preciso escutar sem infantilizar ou desqualificar saberes não hegemônicos, o que só é possível no território.

Não olhar para esse número expressivo de desinformados que se engajam, com sonho e dedicação, nas pseudoformações e na regulação sem perceber as ciladas é apenas mais um capítulo da segregação que caracteriza historicamente nossa sociedade.

Ao mesmo tempo, isso não significa que psicanalistas sejam formados por geração espontânea.

Silêncio e distância não tornam a crítica mais profunda

Repudiamos lideranças inflamadas e pessoas com formação escolar precária, que impessoalizam a transmissão de uma educação de baixa qualidade.

Mas repudiamos também a indiferença e a denúncia interesseira, de quem age preventivamente por medo de ser denunciado ou que acusa para se tornar mais autorizado. Criticar não faz de ninguém um psicanalista marginal ou independente.

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O que se espera de nós é uma resposta que inclui instituições e pessoas, com o rigor esperado de uma verdadeira formação.

Não é fácil chegar a um formato que produza emancipação, democratização e compromisso ético de longo prazo. Ainda assim é indispensável.

Minha atitude sempre foi — e continuará sendo — aceitar convites para os mais variados formatos.

Todas as tratativas para esses eventos são feitas por minha assessoria, com pouco conhecimento prévio sobre a instituição ou o uso de divulgação. Tenho consciência da qualidade duvidosa de algumas situações e conheço várias delas apenas pouco antes da data marcada. Ainda assim, decido verificar in loco o funcionamento discursivo, institucional e comunitário dessas entidades.

Não repudiar espaços antes de escutá-los é uma prática contra o tiroteio digital, que teme o contágio por associação de imagem. Aceito o risco e pretendo continuar saindo dos condomínios, não peço que outros sigam o exemplo.

Participar de eventos públicos não significa endossar ou legitimar um projeto, recomendo mais atenção ao discurso e às ações.

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Se propaganda e imagem prevalecem sobre as razões do ato e a história dos posicionamentos, é porque deixamos nos guiar mais pelo que "os outros vão pensar".

É justamente esse tipo de raciocínio, de alto impacto nas redes sociais, que costuma se beneficiar de práticas
retóricas e apelos narcísicos estranhos à psicanálise.

Prefiro me aproximar das zonas de conflito e ter contato regrado com a diferença, o que gera discussões e posicionamento, à indiferença e ao distanciamento.

O inesperado é que a desconfiança venha justamente da comunidade à qual sinto pertencer — e que isso acabe beneficiando quem não merece publicidade. A política de silêncio pode ser suficiente para que o tempo faça seu trabalho e leve as pseudoformações à destruição, mas é justo experimentar outras estratégias sem que o terrorismo significante prevaleça.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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