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Lo Prete, autora da entrevista que revelou mensalão, dormiu com fitas da confissão do delator

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No primeiro semestre de 2005, pairava sobre Brasília um clima de conspiração e desconfiança, uma inquietação típica de vésperas de grandes crises.

Havia meses circulavam na capital rumores de que o governo Lula (PT), em seu primeiro mandato, pagava mesada a deputados aliados —sua base era bem mais robusta que a atual, numa época em que o Planalto tinha muito mais controle sobre o Orçamento.

Em setembro de 2004, o Jornal do Brasil publicou uma manchete a respeito, mas a principal fonte que sustentava a reportagem, o deputado Miro Teixeira (que fora líder do governo e deixara o cargo supostamente incomodado com a prática), disse que eram falsas as referências atribuídas a ele e apenas ouvira boatos sobre o caso.

Em maio de 2005, a revista Veja revelou um vídeo em que o funcionário dos Correios Maurício Marinho recebia R$ 3.000 em propina e dizia ter aval do presidente do PTB, o deputado federal Roberto Jefferson, apontado como chefe de um esquema para cobrar comissões de empresários interessados em licitações e contratos na estatal.

Foi a senha para a oposição se mobilizar por uma CPI para investigar as suspeitas de corrupção. Travou-se uma guerra pela instalação da comissão: reunidas as assinaturas necessárias, o governo abriu o cofre em emendas para enterrá-la.

Em meio à disputa, Jefferson apanhava dos dois lados e estava acuado, a ponto de declarar apoio à CPI, mesmo que fosse um dos seus alvos e que o PTB integrasse a coalizão governista.

Foi nesse clima conflagrado que, num sábado à tarde, 4 de junho, a jornalista Renata Lo Prete, então editora da coluna Painel, da Folha, recebeu um telefonema do deputado fluminense. Sem dar detalhes, Jefferson avisou que queria falar. Percebendo a importância do chamado, ela viajou de São Paulo a Brasília para, no dia seguinte, entrevistá-lo.

"Ficou mais ou menos claro que ele ia romper com o governo e, nessa condição, revelar informações sobre a relação e as negociações dele com o Palácio do Planalto. Mas que ele ia falar sobre a mesada, disso eu não sabia", conta Lo Prete, hoje âncora do Jornal da Globo.

Pois Jefferson falou, e com riqueza de detalhes, numa entrevista que virou manchete da Folha da segunda-feira 6 de junho, há exatos 20 anos. O neologismo criado para designar tal mesada —mensalão— batizaria o esquema denunciado por ele e entraria para a história política do país.

Nas semanas seguintes, o deputado-bomba daria outras entrevistas a Lo Prete.

As revelações dele tornaram a CPI inevitável e, associadas a investigações de Polícia Federal e do Ministério Público e a outras confissões, resultaram num conjunto fático-probatório que derrubou ministros, cassou deputados e abalou os três Poderes, sobretudo o Executivo.

Pressionado, Lula admitiu indiretamente o esquema, ao dizer que tinha sido traído por aliados.

Jefferson não escolheu Lo Prete à toa. O deputado era fonte da colunista, que o ouvia com atenção e lhe dedicava importância desde o início da crise.

"Ele não era um cara tratado como primeira divisão em Brasília por boa parte dos jornalistas, porque tinha sido da tropa de choque do Collor, já tinha um jeito dele. Mas era um engano tratá-lo dessa maneira", afirma a jornalista.

"Porque ele tinha lugar de fala naquela história: era presidente de um partido da base, tinha cargos no governo e interlocução direta com o José Dirceu [ministro da Casa Civil], que fazia a operação do governo no Congresso e do governo como um todo."

Trabalhar no Painel, coluna de bastidores da política que Lo Prete liderava, requer, nas palavras dela, "administração intensiva das fontes, você precisa falar com as pessoas o tempo inteiro".

Ela ressalta a importância da "leitura de jogo" para esse processo, ou seja, da análise política que mire além do noticiário comezinho. "Não só minha, mas dos repórteres que trabalhavam comigo no Painel, Vera Magalhães, em Brasília, e José Alberto Bombig, em São Paulo."

"Quando surgiu o caso dos Correios, a maioria ficou muito detida no episódio da propina, e a gente começou a pensar em quem não estava aparecendo na história, outros diretores dos Correios, no que estavam fazendo. Olhamos para o caso mais amplamente, e acho que esse olhar me ajudou a manter aberto um canal com o Roberto Jefferson, num momento em que muita gente demandava essa entrevista, mas ele não estava falando."

Jefferson decidiu falar ao perceber que o Planalto tinha resolvido abandoná-lo, como ele mesmo deixou claro na entrevista.

"Eu vi que o governo agiu para isolar o PTB. Vai ter que sangrar a cabeça de alguém na guilhotina, tem que haver carne e sangue aos chacais. A ‘Veja’ falou que sou o homem-bomba. E o que você faz com a bomba? Ou desativa ou faz explodir. Estou percebendo que estão evacuando o quarteirão, e o PTB está ficando isolado para ser explodido", disse o então deputado naquela entrevista à Folha.

A conversa aconteceu no apartamento funcional de Jefferson em Brasília, acompanhada por duas assessoras do deputado. Durou cerca de uma hora e meia. Quando ele começou a abrir o jogo sobre o esquema, Lo Prete conciliou pasmo com racionalidade.

"Quando ele fala do mensalão, eu continuo prestando atenção no que ele está dizendo, mas já penso coisas como: tinham me dado uma página, tenho de avisar que preciso de duas ou três; não pode ser uma manchete de uma linha só", relembra.

Numa época em que a internet não tinha nem sombra da força atual, o horário de conclusão da edição impressa (ou fechamento, no jargão) era um desafio mais exaustivo. Lo Prete correu para a sucursal de Brasília da Folha para escrever o seu megafuro.

Antes, teve de "tirar a fita" no braço —isto é, transcrever os áudios, sem apps nem inteligência artificial como é possível hoje—, no que precisou da ajuda, conta, do então repórter da sucursal Eduardo Scolese –hoje editor de Política da Folha.

Simultaneamente, tratou da organização do que havia apurado com o editor de Brasil –como a editoria de política era então chamada–, Fernando de Barros e Silva.

O trabalho de transcrição dos áudios e redação da reportagem era a todo instante interrompido por um som estridente. "Os telefones da sucursal não paravam de tocar, mesmo sendo um domingo", relata Lo Prete.

Só aí que ela entendeu o que ocorria: "Era o governo desesperado tentando saber da entrevista. Porque o Roberto Jefferson, num momento de crueldade, pouco depois que eu saí da casa dele, avisou o Aldo Rebelo, então ministro da Coordenação Política, que tinha falado com a Folha."

O fato de estar hospedada em Brasília no mesmo hotel do tesoureiro do PT, Delúbio Soares —apontado por Jefferson como o responsável por pagar a mesada—, aumentou a tensão e a expectativa na véspera da publicação, levando Lo Prete a uma atitude inusitada.

"Fiquei com aquilo na cabeça e dormi com as fitas [da entrevista]. Na cama."

O pouco tempo disponível e a profusão de nomes envolvidos fizeram com que o jornal optasse excepcionalmente por publicar a entrevista sem checagens adicionais e sem ouvir os citados antes da publicação, opção até hoje apoiada por Lo Prete.

"Tínhamos um testemunho com aquela octanagem, de alguém com lugar de fala… Você plenamente pode decidir publicar. Num elogio à Folha, digo que nunca ninguém me falou sobre segurar uma coisa daquele tamanho e importância. Nunca. Essa possibilidade não chegou a ser discutida naquele domingo."

O desenrolar dos fatos mostrou que Jefferson não tinha blefado. "As entrevistas estão inteiras, qualquer um pode fazer o exame. O que ele fala se comprova. Quando aponta, por exemplo, o Dimas Toledo como operador anfíbio, para o PSDB e para o PT, em Furnas, o Dimas cai. As consequências eram imediatas", diz Lo Prete, que ganharia, pela série de entrevistas, o prêmio Esso de jornalismo.

Após denúncia da PGR (aceita em 2007 no STF), o julgamento dos réus do mensalão só começou em 2012.

Dos 40 denunciados, 24 foram condenados, num processo que recebeu críticas, sobretudo do PT, pelo recurso à "teoria do domínio do fato" –que permite punir alguém pela influência sobre a cadeia criminosa mesmo sem provas de que cometeu o crime em si– ou pela escolha de julgá-los no Supremo, já que quase todos os réus não tinham mais foro especial.

Lo Prete rejeita a ideia de que tenha havido lawfare (uso da Justiça para perseguição política) no mensalão. "A investigação e o julgamento do mensalão formaram um edifício que parou de pé. Não foram revistos, como tantos outros que vimos depois."

"Essas pessoas cumpriram pena, algumas voltaram à política, outras não, mas não houve um desfazimento do mensalão como houve na Lava Jato e como algumas forças estão tentando fazer agora com as investigações sobre a tentativa de golpe do 8 de Janeiro."

Outro ponto que distingue o mensalão de escândalos assemelhados, segundo Lo Prete, é ter sido um caso que nasceu na imprensa, e não a partir de investigações da polícia e ou do Ministério Público.

E como viu a conversão de Roberto Jefferson ao extremismo bolsonarista, que culminou com sua prisão após receber a polícia a granadas e tiros de fuzil?

"Acho que as pessoas são tudo junto e misturado, desde sempre, que o Roberto Jefferson do mensalão tinha dentro dele o Roberto Jefferson da tropa de choque do Collor e o que viria a ser o Roberto Jefferson do bolsonarismo e de receber a polícia a bala. Acho que você vai fazendo o seu caminho pela vida, as coisas dão errado ou certo –no caso dele muito errado– e determinados aspectos seus vão ficando mais evidentes. Então para mim é o mesmo personagem, não tem conversão."

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