O MP-SP (Ministério Público de São Paulo) afirma que o governo paulista fez pagamentos irregulares em 147 contratos da Secretaria da Agricultura no fim de 2022, na gestão Rodrigo Garcia (na época do PSDB), e colheu relatos de que a gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos) agiu para conter as investigações.
De acordo com depoimentos colhidos pela Promotoria do Patrimônio Público da capital, o secretário da Agricultura, Guilherme Piai, afastou os servidores que denunciaram as irregularidades, arquivou processos de apuração interna e promoveu auxiliares que elaboraram pareceres usados para suspender a investigação, que foi encerrada na esfera administrativa.
Uma das testemunhas, o ex-secretário-executivo Marcos Renato Böttcher, disse aos promotores que avisou Tarcísio pessoalmente das irregularidades. Em depoimento, afirmou ter ouvido do governador na ocasião a seguinte frase: "Vou dar um conselho para vocês: formalizem tudo e encaminhem para os órgãos de controle externo". Böttcher foi demitido semanas depois.
Por meio de nota, o governo paulista disse que as demissões ocorreram por decisões técnicas, que não há tolerância com desvios e que Tarcísio determinou imediata apuração das denúncias.
A investigação já resultou na apresentação de nove ações judiciais que acusam violações à Lei Anticorrupção, contra oito empresas e dois servidores da Agricultura. O ex-secretário da pasta Francisco Matturro responde a inquérito.
Reportagem do portal Metrópoles mostrou nesta sexta (17) documentos sobre a atuação de Piai para encerrar apuração interna.
Ele e Tarcísio têm prerrogativa de foro e não podem ser investigados pela Promotoria. A atribuição é do procurador-geral de Justiça, Paulo Sérgio de Oliveira e Costa. Em nota, a assessoria do MP-SP afirmou que "não há nenhuma investigação em curso no âmbito da Procuradoria-Geral de Justiça".
As obras sob suspeita fazem parte do programa Melhor Caminho, lançado em 2021 pelo então secretário Itamar Borges (MDB), hoje deputado estadual. O programa previa a conservação de estradas de terra, vitais para o escoamento da produção agrícola do estado, e tinha orçamento de cerca de R$ 400 milhões em 2022.
No fim daquele ano, após Itamar deixar o cargo para disputar as eleições, a secretaria ficou a cargo de Francisco Matturro, que era seu secretário-executivo. Foi sob comando de Matturro que foram autorizados pagamentos adicionais às empreiteiras sob o argumento de reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos. Os aditivos somaram R$ 50 milhões, segundo o MP-SP.
Quando assumiu o governo, em janeiro de 2023, Tarcísio nomeou o produtor rural Antonio Junqueira para chefiar a Agricultura. Junqueira chamou Böttcher, servidor de carreira do TCE (Tribunal de Contas do Estado), para ser seu secretário-executivo. Poucos meses depois, após reclamações de prefeitos sobre atrasos e má qualidade das obras, Junqueira determinou a abertura de uma apuração interna.
O levantamento, conduzido pelo chefe de gabinete José Carlos Pagliuca e pelo coordenador de Logística Rural Emílio Nicanor Galan Francês, concluiu que os aditivos haviam sido concedidos no atacado, sem análise individualizada, e considerou frágeis as justificativas para o desequilíbrio financeiro. Também foram identificadas obras inacabadas classificadas como concluídas.
"Na verdade, não foram as empresas que pediram o reequilíbrio, foi a secretaria, através da coordenadoria de logística rural, que distribuiu um documento", afirmou Francês em depoimento ao MP-SP obtido pela Folha. "Foi a primeira vez que eu vi o rabo balançar o cavalo", ironizou.
Junqueira levou o caso a Tarcísio. Segundo depoimentos colhidos pelo MP-SP, o governador orientou que o material fosse encaminhado aos órgãos de controle —o MP-SP, o TCE (Tribunal de Contas do Estado) e a CGE (Controladoria-Geral do Estado) receberam o ofício em junho de 2023.
A decisão, contudo, gerou desconforto político, com incômodo de aliados do MDB, que comandava a pasta na gestão anterior. Posteriormente, Junqueira comunicou a Böttcher que ele seria substituído.
"Ele [Junqueira] estava totalmente desconfortável e disse que tinha recebido uma ligação do governador para indicar outro nome", disse o ex-secretário-executivo aos promotores. Quando falou do caso ao MP-SP, Francês também afirmou que a decisão partiu "do Palácio", em referência ao Palácio dos Bandeirantes.
Piai assumiu a secretaria em substituição a Böttcher e, com Junqueira afastado por motivo de saúde, exonerou Pagliuca e Francês, servidores que haviam conduzido a apuração. Ao retornar da licença, Junqueira pediu demissão, alegando razões pessoais. Ele foi procurado, mas não quis dar entrevista.
Na gestão de Piai, a secretaria produziu um novo parecer técnico, que validou os aditivos, e comunicou ao MP-SP em junho de 2024 que o caso fora arquivado. A comissão responsável pelo parecer foi presidida por Hamilton Amorim, então assessor técnico que neste ano foi promovido a secretário-executivo.
O secretário também reintegrou à cúpula da pasta o servidor Ricardo Lorenzini, chefe de gabinete na época dos pagamentos e apontado pelo MP-SP como um dos responsáveis pela liberação dos recursos.
Lorenzini é hoje o subsecretário de gestão da secretaria e está com bens bloqueados a pedido da Promotoria. A reportagem tentou procurá-lo, sem sucesso. Em depoimento dado em dezembro de 2023 ao MP-SP, ele negou que os aditivos de reequilíbrio tivessem sido concedidos sem análise prévia e defendeu que os pagamentos extras eram corretos.
O governo disse que houve impacto da pandemia da Covid-19, da alta dos combustíveis e da Guerra da Ucrânia para encarecer as obras em 2022. O MP-SP argumentou que os dois primeiros fatores foram antes da assinatura dos contratos e que a guerra não teve correlação comprovada com os reajustes.
A Secretaria da Agricultura informou, em nota, que "acompanha as investigações conduzidas pela Promotoria e permanece à disposição das autoridades para prestar total colaboração".
A Folha enviou um email à comunicação do governador questionando se ele pediu para demitir servidores da Agricultura que investigaram as irregularidades e quais foram as conclusões da CGE sobre o tema —no TCE, o caso segue em andamento.
A nota enviada afirmou que "toda e qualquer suspeita de irregularidade identificada é tratada e investigada com absoluto rigor".
"À época dos fatos mencionados, o governador Tarcísio de Freitas determinou a imediata apuração das denúncias e o envio de toda a documentação aos órgãos competentes", disse o texto, acrescentando que a apuração conduzida pela secretaria foi encaminhada ao MP-SP.
"Em relação às movimentações de servidores, elas decorrem unicamente de decisões técnicas e administrativas", segue a nota, que colocou o governo "à disposição das autoridades para todos os esclarecimentos necessários".
Por meio de seu advogado, Fernando José da Costa, o ex-secretário Matturro informou que "o reequilíbrio econômico-financeiro concedido a contratos celebrados com empresas executoras se mostrou necessário à continuidade dos serviços, considerando os impactos decorrentes da pandemia do coronavírus e guerra na Ucrânia, tendo se pautado na lei, análise técnica e pareceres jurídicos".
A assessoria do ex-governador Rodrigo Garcia foi procurada, mas ainda não se manifestou.
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