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- Author, Daniel Gallas
 - Role, Da BBC News Brasil em Londres
 
3 novembro 2025, 16:02 -03
Atualizado Há 27 minutos
"O Hemisfério Ocidental deixou de ser um porto seguro para narcoterroristas que trazem drogas para nossas costas com o objetivo de envenenar os americanos."
"Não se trata apenas de traficantes de drogas — são narcoterroristas trazendo morte e destruição às nossas cidades"
"Foram mais de 60 dias de planejamento das polícias Civil e Militar, da Secretaria de Segurança Pública e do Ministério Público. É uma operação do Estado contra narcoterroristas."
As frases acima são de autoridades ao falarem sobre operações de segurança contra o narcotráfico.
Os governos dos EUA e do Estado do Rio de Janeiro usam o mesmo termo para designar os traficantes: narcoterroristas.
No Brasil, o Congresso está sendo discutindo pelo menos dois projetos de lei que ampliam o conceito de terrorismo previsto na Lei Antiterrorismo de 2016 para incluir o tráfico de drogas.
A Lei Antiterrorismo de 2016 afirma que "o terrorismo consiste na prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos neste artigo, por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública".
O projeto de lei 724/2025, do Coronel Meira (PL-PE), avançou este mês na Comissão de Segurança Pública da Câmara dos Deputados e propõe ampliar essa definição para incluir narcoterrorismo.
"Ataques a ônibus, escolas, batalhões, delegacias e até hospitais têm a finalidade de gerar terror social e paralisar a resposta estatal. É exatamente este o conceito jurídico de terrorismo: violência com o intuito de causar pânico e desorganização coletiva", diz o relator do projeto, o deputado Fabio Costa (PP-AL).
O projeto de lei 1283/2025, do deputado Danilo Forte (União Brasil-CE), estende "a aplicação da lei a organizações criminosas e a milícias privadas que realizem atos de terrorismo". O secretário de Segurança de São Paulo, Guilherme Derrite, anunciou que vai se afastar do seu cargo e voltar a ocupar a vaga de deputado para relatar esse projeto, que teve pedido de trâmite de urgência aprovado no começo do ano.
Governadores de oposição ao governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva já manifestaram apoio a mudar a lei para tratar traficantes como terroristas.
Os governadores formaram na quinta-feira o que chamam de "Consórcio da Paz" — um projeto de integração para trocar informações de inteligência, prestar apoio financeiro e de contingente policial no combate ao crime organizado.
Participam do consórcio, além do governador do Rio de Janeiro Claudio Castro (PL), os governadores Romeu Zema (Novo), de Minas Gerais, Jorginho Mello (PL), de Santa Catarina, Eduardo Riedel (Progressistas), do Mato Grosso do Sul, Ronaldo Caiado (União Brasil), de Goiás e de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos). A a vice-governadora do Distrito Federal, Celina Leão (Progressistas), também participou de uma reunião do consórcio.
Esta semana, após a megaoperação no Rio de Janeiro, os governos de Argentina e Paraguai anunciaram que passaram a classificar o Comando Vermelho e o Primeiro Comando da Capital (PCC) como grupos terroristas.
"Essas organizações transcendem a criminalidade comum; são verdadeiros terroristas que ameaçam a vida das pessoas e a soberania do país", disse o comandante das Forças Armadas do Paraguai, Cíbar Benítez.
Mas acadêmicos e especialistas com que a BBC News Brasil conversou criticam o uso de leis de combate ao terrorismo para lidar com crimes de tráfico.
"Nossa visão é que o terrorismo é essencialmente violência política, enquanto o crime organizado, segundo a Convenção das Nações Unidas sobre o Crime Organizado Transnacional de 2000, é definido essencialmente como crime com fins lucrativos ou por outro benefício material", explica o relator especial da ONU sobre Direitos Humanos e Contraterrorismo, Ben Saul, em entrevista à BBC News Brasil.
"Portanto, nossa forte recomendação é que o crime organizado e o terrorismo sejam mantidos amplamente separados como conceitos jurídicos."
O que é narcoterrorismo?
O termo narcoterrorismo teria sido usado pela primeira vez no Peru, nos anos 1980, pelo então presidente do Peru, Fernando Belaúnde, ao denunciar grupos de traficantes de drogas que usavam táticas semelhantes ao de terroristas.
O relator da ONU, Ben Saul, diz que "narcoterrorismo" não existe enquanto um conceito jurídico — trata-se sim de um rótulo político.
"O termo 'narcoterrorista' não é um termo jurídico. É apenas um rótulo político usado para tentar desacreditar e deslegitimar grupos de que você não gosta. Esse termo não diz nada sobre o aspecto legal dessas questões, mas está sendo usado cada vez mais."

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No passado, ele diz, o termo narcoterrorismo costumava ser usado para descrever grupos que usam atividades de crime organizado como tráfico de drogas para financiar outras operações que possuem propósitos ideológicos e políticos. Nestes casos, segundo os especialistas, o crime organizado seria um braço financiador do terrorismo.
"Grupos genuinamente terroristas podem ter ligações com o crime organizado. Pense nas FARC, por exemplo, envolvidas com tráfico de drogas, extorsão e proteção de atividades criminosas. Ou o ISIS negociando petróleo ou antiguidades. Ou o Talebã, no passado, com o tráfico de ópio."
"Essas ligações sempre existiram: grupos terroristas arrecadam dinheiro para sua violência política por meio do crime organizado."
Saul diz que o que determina juridicamente se um grupo é terrorista ou se ele é uma facção criminosa é a natureza da atividade — e não o nível de ameaça à segurança nacional ou o grau de violência ou sofisticação.
Apesar disso, recentemente o termo passou a ser usado por governos contra outras organizações criminosas, segundo o relator da ONU.
"Acho que é um fenômeno bastante recente ver vários países das Américas começando a classificar gangues e cartéis como grupos terroristas, simplesmente por praticarem o que é essencialmente atividade criminosa organizada. É o caso de Canadá, EUA, Honduras, Equador e Argentina", diz Saul.
Para Rafael Alcadipani, professor da Fundação Getúlio Vargas e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (ONG apartidária que reúne especialistas na área), as facções brasileiras não se enquadram na definição de terrorismo — por não possuírem motivações políticas e ideológicas.
"O Comando Vermelho ou o PCC não têm interesse em virar presidente do Brasil. Eles não têm interesse em tomar o poder ou em uma pauta ideológica. Eles negociam cocaína, eles negociam o crime", diz.
Alcadipani acredita que o alto poder de fogo e sofisticação desses grupos faz com que muitos associem suas atividades ao terrorismo.
"Os narcotraficantes utilizam algumas algumas técnicas semelhantes aos terroristas", diz.
"O poderio bélico que eles têm de fato não é trivial. Ou o domínio de território como acontece no Rio de Janeiro e em São Paulo e também as ações de atentado contra autoridades, como no caso do doutor Ruy Fontes."
Ele entende que na disputa pela opinião pública, o argumento de equiparar traficantes de drogas a terroristas possui muito apelo popular.
"No imaginário popular, quando você fala em terrorismo, você lembra de Bin Laden, Torres Gêmeas, carro bomba. Quando eu acesso esse tipo de simbolismo, eu passo uma impressão para a população de que estou fazendo alguma coisa. 'Nós estamos dando o nome para esses bandidos malditos. Eles são terroristas mesmo'."
"Eu acho que a direita é muito boa e competente em utilizar esse tipo de recurso simbólico no discurso público. Eles fazem isso muito bem e ganham eleições no mundo inteiro. E eu acho que a esquerda é incompetente para disputar essa narrativa."
Existe vantagem em classificar traficantes como terroristas?
Na prática, qual é a vantagem de se classificar um grupo como terrorista, em vez de organização criminosa?
Segundo Saul, ao classificar facções como terroristas, os governos podem em tese ganhar maiores poderes legais para combater as organizações.
"A legislação antiterrorista geralmente concede poderes excepcionais em termos de coleta de informações e poderes policiais relacionados a diversos tipos de crimes, não apenas os atos terroristas ofensivos", explica o relator especial da ONU.
"A classificação de grupos ou entidades inteiras como grupos terroristas frequentemente leva ao congelamento e confisco de bens."
Mas ele aponta que — além do erro jurídico de se misturar conceitos diferentes — há sérios riscos de deterioração de direitos humanos.
"O assassinato de 'narcoterroristas' equivale à justiça pelas próprias mãos, própria de um Estado gangster, e os líderes políticos e militares responsáveis devem ser investigados, processados e punidos", escreveu ele em artigo recente.

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O relator da ONU diz que o uso de legislação antiterrorismo contra grupos criminosos pode abrir caminho para outros tipos de abusos.
"Antes de os EUA invocarem a Lei de Estrangeiros Inimigos para deportar centenas de venezuelanos para El Salvador sob a alegação de suspeita de terrorismo, a primeira coisa que eles fizeram foi declarar o Tren de Aragua [facção criminosa venezuelana] como uma organização terrorista. E depois disso é que vieram as deportações sumárias."
"Agora, temos ataques militares contra os chamados narcoterroristas, dizimando-os no Caribe. Portanto, muitas vezes é um caminho para uma série de abusos ainda maiores."
"Chamamos isso de execuções sumárias ou assassinatos extrajudiciais. Para nós, não é diferente de se Donald Trump estivesse ordenando à polícia que matasse traficantes de drogas a sangue frio nas ruas de Nova York ou Washington."
"Esses traficantes de drogas devem ser presos. Eles devem ser processados. A maneira comum é interceptá-los em alto mar, usando a Marinha e a Guarda Costeira."
Para Rafael Alcadipani, professor da Fundação Getúlio Vargas e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a mudança do enquadramento de organização criminosa para organização terrorista — proposta pelos projetos de lei no Congresso — não traria muitos efeitos práticos no combate a essas atividades.
Na sua visão, essa mudança legal poderia alterar, por exemplo, o tamanho da pena de alguns condenados.
Mas não mudaria o principal problema brasileiro, que, para ele, é a falta de coordenação dos esforços de combate ao narcotráfico no Brasil. Segundo o especialista, isso poderia acontecer dentro dos marcos legais já existentes.
Alcadipani acredita que é preciso melhorar alguns pontos das leis atuais — e cita um projeto do governo para facilitar o uso de dados interceptados em operações ou para agir sobre contas bancárias das facções.
"Tem uma série de questões que poderiam ser facilitadas pela legislação, mas para mim o central não é legislação", diz ele.
"Você vê o que aconteceu no Rio de Janeiro. O juiz deu ordem de prisão, deu ordem para fazer as coisas. Você vê que o Marcola está preso, que o Fernandinho Beira-Mar está preso. Não é falta de legislação. O ponto central é que é preciso haver muito mais articulação de organização dos esforços."
"Mudar a classificação de traficante para terrorista não vai mudar a realidade."
Repercussão internacional
Em abril, o governo dos EUA designou oito cartéis de drogas — como o mexicano Sinaloa e o venezuelano Tren de Aragua — como organizações terroristas.
"A designação de entidades e indivíduos como terroristas expõe e isola-os, negando-lhes o acesso ao sistema financeiro dos EUA e aos recursos necessários para a realização de ataques", disse o governo americano, no comunicado oficial.
A medida americana provocou uma reação da ONU.
O relator especial da ONU sobre Direitos Humanos e Contraterrorismo, Ben Saul, em conjunto com outros integrantes das Nações Unidas, enviou correspondência ao governo dos EUA cobrando explicações.
"Estamos preocupados com o fato de a designação [de traficantes como terroristas] confundir terrorismo e crime organizado, quando os dois fenômenos são distintos e deveriam estar sujeitos a regimes jurídicos separados."
Alcadipani diz que uma medida como essas poderia ter repercussões grandes no Brasil.
"Eles teriam a possibilidade de criar sanções e tomar ativos de forma muito mais rápida. Por exemplo, se o governo americano de repente considerar que o Pix e o sistema bancário brasileiro têm infiltração das facções criminosas, e que por isso precisa ser descartado do sistema Internacional, ele pode agir", diz.
"Isso pode gerar sanções que são sanções mais pesadas."

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