Distintos na visão de mundo, os dois líderes mais carismáticos da histórica recente do catolicismo - João Paulo 2º e Francisco - usaram politicamente a prerrogativa de declarar santos em prol da sua agenda à frente da mais antiga multinacional em atividade no planeta.
Mais do que gestos de devoção, as canonizações promovidas por cada papa refletem a visão pastoral e política sobre o papel da Igreja no mundo.
No curso do pontificado de Francisco, o Brasil ganhou dois novos santos: José de Anchieta (1534-1597), um jesuíta cujo processo de santificação demorou mais de 400 anos para ser concluído, e a baiana Maria Rita Lopes Pontes (1914-1992) que ganhara fama de santa viva ao dedicar a vida aos miseráveis de Salvador. Desde sua canonização em outubro de 2019, Irmã Dulce passou a se chamar Santa Dulce dos Pobres.
Entre os primeiros atos simbólicos de seu pontificado esteve a canonização dos 813 mártires de Otranto, em 2013 — um grupo de católicos mortos por invasores otomanos no século XV, cuja proclamação serviu de afirmação histórica, mas sem maior controvérsia política.
A guinada viria com o tempo, à medida que o papa dava prioridade a figuras antes marginalizadas pela burocracia vaticana, como o arcebispo Óscar Romero, de El Salvador. Vítima de uma campanha de difamação, o jesuíta Romero foi erroneamente associado à Teologia da Libertação, vertente de esquerda do catolicismo, nos últimos anos de sua vida.
Assassinado em 1980 por um esquadrão da morte ligado à ditadura militar salvadorenha, Romero era tido como símbolo da resistência aos regimes autoritários da América Latina.
A causa de Romero ficou paralisada durante décadas pelos papas João Paulo 2º e Bento 16, sob o argumento de que seu engajamento em defesa dos pobres poderia associá-lo à esquerda revolucionária.
Para João Paulo 2º, cuja experiência como prelado nascido em um país da Cortina de Ferro repercutiu profundamente em como o polonês moldou a política externa do Vaticano à sua convicção anticomunista, deixar o processo de Romero andar equivaleria a elevar a Teologia da Libertação aos altares da Igreja.
Pesos e medidas de cada papa
Durante seu pontificado, João Paulo 2º foi o primeiro a transformar a canonização em uma ferramenta de afirmação política e diplomática da Igreja Católica. Em 1983, ele reformou o processo de santificação com a constituição apostólica Divinus Perfectionis Magister, simplificando etapas e reduzindo a exigência de milagres — o que acelerou significativamente o número de proclamações.
Essa mudança abriu caminho para que a Congregação das Causas dos Santos funcionasse em ritmo quase industrial: em 26 anos, João Paulo 2º canonizou 483 pessoas e beatificou outras 1.338, mais do que todos os outros papas do século 20 juntos.
As cerimônias, muitas vezes realizadas em viagens internacionais ou transmitidas em massa pela TV, ampliavam o alcance da Igreja e reforçavam sua presença nos cinco continentes, num momento em que o papa polonês liderava a luta ideológica contra o comunismo e buscava reaproximar fiéis em regiões afetadas pelo secularismo ou por regimes hostis à fé cristã.
A escolha dos novos santos não se dava ao acaso: refletia prioridades pastorais e geopolíticas do pontífice.
Canonizações em países do Leste Europeu sob regimes comunistas, por exemplo, ajudavam a sustentar a resistência católica frente às ditaduras marxistas, como no caso do padre Jerzy Popiełuszko, na Polônia, torturado e morto em 1984, aos 37 anos.
Como no caso de Romero, o assassinato de Jerzy Popiełuszko era incontroversamente político, mas o polonês foi declarado mártir "in odium fidei" (do latim, "por ódio à fé") por João Paulo 2º, reconhecimento negado ao salvadorenho.
Além disso, ao elevar aos altares figuras alinhadas com valores conservadores, como Madre Teresa de Calcutá ou o fundador da Opus Dei, Josemaría Escrivá, João Paulo 2º também deixava clara sua oposição à Teologia da Libertação e a setores mais progressistas do clero, consolidando uma identidade doutrinária mais rígida no seio da Igreja.
A máquina de santidade montada por João Paulo 2º foi herdada por Francisco e usada por ele para fazer rodar dua própria agenda, abandonando uma posição política predominante desde a Guerra Fria.
Francisco destravou o processo de Romero, que correu a toque de caixa. Em 2015, ocorreu a beatificação, etapa que precede a canonização no processo canônico, como mártir "in odium fidei". Três anos depois, Francisco declarou-o santo mártir.
A própria canonização de João Paulo 2º — festejada com entusiasmo pela ala conservadora da Igreja — foi moldada por Francisco com uma sinalização política: o papa argentino decidiu canonizar, na mesma cerimônia, João 23, o pontífice que convocou o Concílio Vaticano 2º e é lembrado por abrir as portas da Igreja ao mundo moderno.
João 23 foi canonizado sem a comprovação formal de um segundo milagre, como exige a norma canônica, numa espécie de compensação histórica à santificação do papa polonês.
Os brasileiros
As escolhas de Francisco escancararam o uso das canonizações como plataforma de afirmação de valores e rumos eclesiais.
A beatificação de Irmã Dulce, em 2011 por Bento 16, foi convertida em canonização em 2019, colocando nos altares a imagem de uma mulher brasileira e consagrada pelo trabalho junto aos pobres e doentes — arquétipo perfeito da Igreja como "hospital de campanha", metáfora recorrente do atual pontífice.
Francisco também utilizou com frequência o instrumento da canonização equipolente, que permite reconhecer a santidade de uma figura histórica sem exigir a comprovação formal de milagres — mecanismo usado, por exemplo, para canonizar José de Anchieta em 2014.
O jesuíta, figura central da colonização portuguesa no Brasil e da evangelização dos povos indígenas, teve sua causa paralisada por mais de quatro séculos. Sua canonização representou tanto um tributo à missão da Igreja na América Latina quanto uma reparação simbólica à Companhia de Jesus, alvo de perseguições sob pontificados anteriores.
Ao ampliar o escopo das canonizações, Francisco também mostrou sensibilidade ao clamor popular e à diversidade global do catolicismo.
Seus santos são africanos, asiáticos, latino-americanos, leigos, mulheres, indígenas. Trata-se de um esforço deliberado de universalizar os altares — e, por consequência, as referências espirituais e morais da fé católica.
Nesse sentido, o papa transformou a "fábrica de santos" do Vaticano em um instrumento diplomático e teológico de reafirmação do projeto pastoral de uma Igreja menos dogmática e mais próxima dos pobres, dos marginalizados e dos que sofrem.
Num tempo de conflitos culturais e erosão da autoridade religiosa tradicional, a santidade proclamada por Francisco se tornou também uma forma de dizer ao mundo o que importa na sua visão social do papel da Igreja – e para quem a Igreja deseja abrir suas portas.
Reportagem
Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.
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