
Crédito, Reprodução/Instagram
- Author, Edison Veiga
- Role, De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil
Há 22 minutos
Tempo de leitura: 11 min
Milenar e solidamente erguida sobre pilares de rígida hierarquia, a Igreja Católica tem instrumentos para controlar sacerdotes que estejam causando incômodos. O silêncio imposto pela Arquidiocese de São Paulo ao padre Júlio Lancellotti, famoso pelo seu envolvimento em causas sociais, tem fundamento no Código de Direito Canônico da instituição.
Lancellotti anunciou no último domingo que suas missas, celebradas semanalmente na capela da Universidade São Judas, na Mooca, zona leste de São Paulo, não serão mais transmitidas ao vivo pela internet como costumava acontecer. E que ele não deve seguir atualizando suas redes sociais. A capela faz parte da Paróquia São Miguel Arcanjo, da qual Lancellotti é o padre responsável.
Com mais de 2,3 milhões de seguidores no Instagram, ele é um dos maiores influenciadores do catolicismo brasileiro. Seus posicionamentos a favor da inclusão de minorias, de dependentes químicos a transexuais, e seu trabalho de ajuda a moradores de rua de São Paulo costuma despertar críticas intensas, sobretudo de internautas alinhados à extrema-direita.
"Mesmo que a gente fique sem ar, vai aparecer um tubo de oxigênio", afirmou o padre, na missa do último dia 14. Ele não disse o motivo da suspensão da presença nas redes, mas segundo pessoas próximas a ele a imposição teria sido da arquidiocese de São Paulo, comandada pelo cardeal arcebispo dom Odilo Scherer. A entidade, superiora direta da paróquia de Lancellotti, não se manifestou publicamente a respeito, ressaltando que tais tratativas são do "âmbito interno" e devem ser conduzidas entre os envolvidos.
Nota assinada por Lancellotti e divulgada pela paróquia na terça (16) confirma que as transmissões online das celebrações "estão temporariamente suspensas" — embora elas continuem sendo realizadas normalmente no endereço físico. O texto também ressalta que "as redes sociais não estão sendo movimentadas por um período de recolhimento temporário".
Em resposta a uma informação que circulava desde domingo em diversos grupos de WhatsApp de católicos paulistanos, a nota também afirma que "não procede a informação sobre a transferência" de Lancellotti de sua função à frente da paróquia da Mooca. Mas ele escreve que reafirma sua "pertença e obediência à Arquidiocese de São Paulo".
A reportagem procurou diretamente o padre, por meio de seu WhatsApp pessoal. Até o momento, contudo, não houve resposta do religioso sobre um pedido de entrevista.

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Obediência e silêncio
Nascido em 1948 na capital paulista, Julio Lancellotti é sacerdote ordenado há 40 anos. Como padre diocesano, ou seja, ligado diretamente à diocese e não a uma ordem religiosa, ele deve obediência direta ao bispo — padres fazem uma promessa solene de viver em simplicidade, exercer o celibato e obedecer ao superior hierárquico.
Além de pároco de São Miguel Arcanjo, ele é o atual vigário episcopal para a Pastoral do Povo da Rua.
O silêncio imposto a padre Julio Lancellotti não é novidade na Igreja e está previsto no direito canônico. A legislação que organiza o catolicismo como instituição prevê instrumentos graduais para conter, censurar, silenciar e até mesmo excluir sacerdotes que possam estar incomodando ou em desacordo com a Igreja. Tudo isso está previsto no livro 6º do código, Das Sanções na Igreja.
Muito provavelmente, conforme fontes ouvidas pela reportagem, Lancellotti foi enquadrado pelos cânone 1339 do direito canônico.
O item versa sobre a "admoestação" — uma repreensão, censura ou advertência solene — que pode ser aplicada àquele que é visto como alguém que se encontra "em ocasião próxima de delinquir ou aquele sobre quem, depois de feita investigação, incidir grava suspeita de ter cometido um delito".
O parágrafo segundo parece ter mais a ver com o caso Lancellotti, no entendimento da arquidiocese. "Também pode repreender, por forma adequada às circunstâncias peculiares da pessoa ou do fato, aquele de cujo comportamento surja escândalo ou grave perturbação da ordem", pontua o texto jurídico religioso.
Por fim, o cânone ressalta que a advertência deve ser feita "por meio de um documento", que deve ser guardado "no arquivo secreto da cúria". Cúria é o nome que se dá para o órgão administrativo da diocese.
Dentro das regras da Igreja, um bispo pode impor a seus subordinados uma obrigação ou uma proibição específica. Exemplos comuns são determinar que o religioso não pode, por certo período, falar publicamente, publicar texto ou mesmo celebrar em público. O superior também tem o direito de removê-lo de ofício ou de função, retirando-o ou transferindo-o de cargos pastorais, paroquiais, acadêmicos ou administrativos.
Governança em vez de punição

Crédito, Acervo pessoal
No âmbito canônico, há ainda sanções que variam conforme a gravidade. Em um primeiro nível, o sacerdote pode ter suas atividades suspensas — impedido de celebrar sacramentos, exercer funções pastorais ou mesmo receber seus ordenados por determinado período. É uma ferramenta de silenciamento.
Casos mais graves podem ser escalados para medidas mais extremas, as chamadas "penas medicinais". É o caso do interdito, que proíbe até mesmo que o religioso receba os sacramentos e participe das celebrações litúrgicas. E a excomunhão: que exclui o sacerdote das práticas religiosas.
Vale ressaltar que o direito canônico não funciona exatamente como um código penal clássico. Mais que isso, é um instrumento de governança. Isto permite que a Igreja cale sem necessariamente condenar.
Ao analisar o texto do código, é possível notar três pontos-chave de sua construção: primeiro, a gradualidade das penas; segundo, uma certa ambiguidade jurídica, já que muitas medidas são administrativas e não penais; por fim, fica nítida a assimetria do poder, já que o bispo — ou mesmo o papa — age como legislador, juiz e executor.
Desde o Concílio Vaticano 2º, ocorrido entre 1962 e 1965, e importante para modernizar a Igreja Católica, há uma postura no sentido de evitar penas espetaculares, preservando assim a instituição do desgaste público de punições midiáticas. Em outras palavras, excomunhões são raras atualmente. O que mais ocorre são os chamados "silêncios obsequiosos" — a imposição da cúpula da Igreja para que o religioso em desacordo ou que esteja causando desconforto mantenham um período de silêncio.
Em outros tempos, isso significava não publicar artigos, não dar declarações públicas à imprensa, não pregar em celebrações. Hoje, o que parece mais importante: estar longe das redes sociais e das transmissões via internet, que amplificam os discursos para além do território geográfico da paróquia.
Boff e Gebara
No Brasil, casos notórios de silenciamento estão geralmente ligados a religiosos alinhados a um pensamento mais progressista da Igreja Católica. Então frade franciscano, o teólogo Leonardo Boff ficou conhecido por uma queda de braço com o Vaticano nos anos 1980.
Em 1981 ele publicou o livro Igreja: Carisma e Poder, um compilado de 13 ensaios dissecando o que ele dizia serem violações aos direitos humanos no interior da instituição cristã. Foi uma bomba.
Boff passou a ser investigado pela Arquidiocese do Rio de Janeiro. Em seguida, pela então Congregação para a Doutrina da Fé — hoje um dicastério —, órgão do Vaticano herdeiro histórico do temido Tribunal da Inquisição, conhecido por perseguir, até o século 19, os que eram chamados de hereges.
O órgão era comandado pelo cardeal alemão Joseph Ratzinger (1927-2022), que sucederia João Paulo 2º (1920-2005) no posto máximo da Igreja Católica e assumiria o nome de Bento 16.
Em 11 de março de 1985 saiu o veredito. A cúpula do Vaticano entendeu que a obra de Boff afrontava a doutrina católica e condenou-o a um ano de "silencio obsequioso".
Ele chegou a prestar depoimento à congregação que o condenou e, depois que recuperou suas funções, passou a ser observado de perto pelos superiores. Em 1992 decidiu largar a batina.
Em entrevista à BBC News Brasil concedida em 2012, Boff afirmou que os problemas que o fizeram ser enquadrado por Ratzinger não eram apenas teológicos, mas "muito importantes, de caráter político".
Por exemplo, o fato de ele ser membro da Teologia da Libertação, movimento católico que advoga pelo papel social da religião, com um catolicismo que atue em favor dos pobres. "Uma semana antes de minha convocação [para prestar os esclarecimentos], a congregação [para a Doutrina da Fé] havia publicado um documento crítico a este tipo de teologia, acusando-a de politização da fé e do uso de categorias marxistas", disse. "Submeter-me, logo após, a juízo doutrinário, significava também colocar sob suspeição a Teologia da Libertação e, com isso, desautorizá-la."
A freira Ivone Gebara, teóloga feminista, por outro lado, jamais largou o hábito. Ela segue religiosa da Congregação das Irmãs de Nossa Senhora, embora já tenha sido condenada ao chamado "silêncio obsequioso" por suas posturas divergentes da linha doutrinária da Igreja.
Ela própria se intitula como "desobediente".
Em 1993, em entrevista à revista Veja, Gebara afirmou: "Aborto não é pecado, o evangelho não trata desse assunto". O Vaticano condenou-a a dois anos sem dar aulas nem entrevistas e ela passou esse período fora do país. Mas jamais se retratou.
"Fui punida, sim, por um tempo de silêncio. E me fizeram sair do Brasil e estudar de novo em Louvain [na Bélgica, onde há uma importante universidade católica]", disse ela, à BBC News Brasil, em 2020. "Agora eles não fazem punições assim declaradas, mas têm outras formas de punir que continuam tão atuantes como antes, talvez menos drásticas."
Ela comentou, por exemplo, que hoje em dia as repreensões não partem mais do "poder central" da Igreja, mas "dos poderes episcopais locais que vão também cerceando suas falas e suas apresentações".

Crédito, Arquivo pessoal
Padre Marcelo
Mas engana-se quem afirma que a Igreja só persegue aqueles com discursos vistos como mais alinhados à pauta da esquerda, ao viés progressista. Até mesmo o conservador movimento da Renovação Carismática Católica (RCC), tachado de fundamentalista, já foi repreendido pelo órgão responsável por zelar pela doutrina da fé.
No ano 2000, quando a RCC experimentava um período de fama inédito no Brasil — com direito a espaço cativo em programas dominicais de TV, por meio de seu expoente mais famoso, o pop star padre Marcelo Rossi —, o Vaticano publicou um documento de 17 páginas condenando aquilo que chamava de "excessos" nas celebrações e grupos de oração sob a liderança do movimento.
Conforme relato em meu livro Padre Marcelo Rossi: A Superação Pela Fé, biografia não autorizada do sacerdote católico, a bronca institucional "foi interpretada como um puxão de orelhas em padres como Marcelo Rossi".
Ratzinger ainda comandava a Congregação para a Doutrina da Fé nessa época. Em 1996, ele publicou um livro chamado Introdução ao Espírito da Liturgia, no qual criticava coisas muito comuns em eventos da RCC. "A liturgia não é um show. É completamente contraditório introduzir nela pantomimas em forma de dança, que frequentemente terminam em aplausos", diz trecho da obra.
Sabe-se que Rossi foi acompanhado de perto pelo Vaticano por pelo menos 10 anos, entre as décadas de 1990 e 2000. A cúpula da Igreja costumava receber vídeos com suas participações em programas de TV no Brasil — principalmente o de Gugu Liberato (1959-2019), do SBT, e o de Fausto Silva, da Globo — e muitos da equipe de Ratzinger afirmavam que o padre brasileiro promovia um culto ao personalismo e praticava exibicionismo pelo exagero midiático. Também havia o entendimento de que, com suas celebrações animadas, ele estaria desvirtuando a liturgia católica.
Em 1999, o sacerdote ficou longe dos holofotes, sem aparecer na mídia ou em qualquer evento público por cinco meses. A razão oficial nunca foi explicada e não se sabe se ele chegou a ser enquadrado por algum dispositivo do código canônico ou se o sumiço era apenas uma prevenção. Na esfera episcopal, ele tinha um anteparo forte: seu superior até 2015, o bispo de Santo Amaro, era Fernando Antônio Figueiredo, religioso que sempre o defendia e o tratava como um pupilo.
"Sempre buscamos em nossas celebrações cânticos religiosos apropriados e observamos as normas estabelecidas pela Santa Sé", declarou Figueiredo, quando foram ventiladas as notícias de que a congregação do Vaticano estava de olho nas missa carismáticas. Em 2001, o próprio bispo apresentou Rossi pessoalmente ao então cardeal Ratzinger.
Em maio 2007, quando Ratzinger, já papa Bento 16, visitou o Brasil, o padre esteve no epicentro de uma polêmica. Celebridade católica mais famosa do país, Rossi havia sido escalado para cantar na missa realizada no Campo de Marte, em São Paulo, no dia 11, para a canonização do primeiro santo nascido no Brasil, Frei Antônio de Sant'Ana Galvão (1739-1822). Celebração esta presidida pelo papa.
Contudo, o padre pop star foi barrado na entrada do evento. Um agente da Polícia Federal alegou que sua credencial não dava acesso ao setor reservado para os participantes.
"Fui escalado para o Campo de Marte, de madrugada, no frio e com credencial errada", afirmou ele, conforme conto no meu livro. "Sinceramente, só posso interpretar isso tudo como ciúme."
Possível ato de 'cuidado e proteção'
Observadores do catolicismo no Brasil, contudo, também têm expressado o entendimento de que o silêncio imposto a Lancellotti não seria uma punição, mas uma forma de protegê-lo dos constantes ataques que ele costuma receber na internet.
"O cardeal estaria usando de sua autoridade para proteger o padre de ataques e acusações de grupos conservadores extremistas", afirma à reportagem uma pesquisadora da área que pediu para não ter seu nome divulgado. Ela ressalta que o padre "afirma estar de acordo", bem como "quem o apoia e trabalha com ele".
Deste a noite de terça circula uma nota, assinada pelo católico Toninho Kalunga, membro da fraternidade leiga Charles de Foucauld, do Núcleo Nacional da Teologia da Libertação Política e Religião e paroquiano de São Miguel Arcanjo. O texto se intitula "o ato de cuidado e proteção a padre Júlio Lancellotti".
"Esta carta é direcionada, particularmente, aos militantes e agentes de pastoral que, pela distância, enxergam este momento como sendo uma perseguição política contra padre Julio em razão de sua atuação pastoral, por parte da Igreja. Não é!", alerta Kalunga, comentando que o ocorrido "não deve ser lido como debate político, censura ou recuo".
Para ele, trata-se de "cuidado com uma pessoa que, do alto de seus 77 anos, precisa de proteção diante de riscos reais".
"Padre Júlio, em razão de sua coerência com a luta dos empobrecidos e com a pregação do evangelho, sempre foi, em razão de suas atividades pastorais, perseguido, caluniado e difamado. Todos nós somos sabedores e testemunhas disso", diz o texto. "Mais recentemente e pelas mesmas razões, tornou-se alvo de uma campanha de ódio organizada — esta sim politicamente — que visa criminalizar a ação da Igreja pela evangélica opção preferencial pelos pobres."
Ele afirma que Scherer "não pediu a interrupção da missão de padre Júlio, não questionou sua fidelidade ao evangelho e nem o desautorizou pastoralmente". "Ao contrário, buscou protegê-lo de uma escalada de violência que só interessa a quem lucra com o ódio, pessoas que fazem a vida vendendo posts em redes sociais e jornais da extrema direita, inclusive se fazendo próximo e agindo sorrateiramente contra a comunidade", argumenta.

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