Era janeiro de 1986 quando Gardênia Gonçalves (PDS) viu os coquetéis molotov serem atira dos contra Palácio de La Ravardière, sede da Prefeitura de São Luís. A turba enfurecida bradava contra a suspensão das nomeações feitas no período eleitoral pelo antigo prefeito da capital do Maranhão.
No mesmo mês, a também recém-empossada prefeita Maria Luiza Fontenele (PT) toureava uma greve de servidores em Fortaleza. As contas da prefeitura estavam no vermelho com uma folha de pagamento que incluía até mortos que recebiam salários por meio de portadores munidos de procuração.
As primeiras semanas de mandato deram a dimensão do desafio que teriam pela frente aquelas duas pioneiras na Nova República. Gardênia e Maria Luiza foram consagradas nas urnas há 40 anos e se tornaram as primeiras mulheres eleitas para comandar a prefeitura de uma capital.
A eleição de 1985 foi a primeira com voto direto após fim da ditadura militar. Em meio a uma disputa que legitimou a força do PMDB, surpreenderam nas urnas duas mulheres com trajetórias distintas e ideologias opostas, mas igualmente tenazes ao enfrentar um cenário eleitoral adverso.
Maria Luiza Fontenele tinha 42 anos e era professora universitária quando concorreu à prefeitura. Foi líder estudantil, integrou o Movimento Feminino pela Anistia e a União de Mulheres Cearenses. Deputada estadual, fez a Assembleia mudar o regimento para aceitar mulheres com calças no plenário.
Entrou na disputa pela prefeitura em uma eleição difícil. Seus adversários eram nomes tradicionais da política cearense: o então deputado federal Paes de Andrade (PMDB) e o ex-prefeito Lúcio Alcântara (PFL).
Mas a petista teve uma ascensão meteórica durante a campanha, ganhando tração após professores e motoristas de ônibus em greve terem sido duramente reprimidos. Saiu vitoriosa com 34,6% dos votos —a eleição com dois turnos seria instituída somente a partir de 1990.
"Foi uma campanha belíssima, fazíamos até três comícios por noite. Descobrimos que o pessoal tinha medo de dizer que ia votar em mim para não perder os benefícios que recebia do governo na época", relembra Maria Luiza, atualmente com 82 anos e professora aposentada.
No comício final, em 12 de novembro, motoristas de ônibus liberaram as catracas para os passageiros que foram para o ato. A petista declamou "Faz Escuro, Mas Eu Canto", do poeta Thiago de Mello, e as caixas de som repetiam a canção "Maria, Maria", de Milton Nascimento e Fernando Brant.
Enquanto isso, em São Luís, Gardênia Gonçalves tinha 40 anos, nunca havia disputado uma eleição e era esposa de um político tradicional: o senador João Castelo, que havia sido governador do Maranhão entre 1979 e 1982.
Seu principal adversário era Jaime Santana (PFL), apoiado pelo então presidente, o maranhense José Sarney. A eleição teve clima de guerra —um mês antes da votação, militantes do PFL e PDS brigaram enquanto colavam cartazes, houve troca de tiros, e uma pessoa foi esfaqueada.
"Eu era a única candidata mulher e contra cinco homens. E naquele tempo, São Luís ainda muito provinciana, havia muito preconceito contra a mulher. Aquilo, de certa forma, me estimulou a seguir em frente e ganhei a eleição", afirma Gardênia, hoje com 85 anos, na época eleita com 36,1% dos votos.
As duas pioneiras cumpriram mandato de três anos em um período conturbado, marcado pela hiperinflação e pela ausência de regras institucionais, que só viriam após a Constituição de 1988.
Eleita para liderar a primeira gestão do PT em uma capital brasileira, Maria Luiza foi empossada com a presença de Lula e prometeu combater a corrupção e a sonegação e melhorar as condições de vida nas favelas de Fortaleza.
Mas enfrentou um cenário político adverso, sem maioria na Câmara Municipal, com servidores com salários atrasados e dependendo de repasses dos govern os estadual e federal.
Em meio a discordâncias com o PT, abriu uma dissidência no partido. O choque com as demais tendências resultaria em quebra-quebra nas convenções para a eleição de 1988. A direção nacional da sigla interveio e expulsou a prefeita.
Maria Luiza ainda se elegeu deputada federal pelo PSB em 1990 e migrou para o PSTU, então uma dissidência do PT. Anos depois, deixaria a política partidária para fundar o movimento Crítica Radical, que questiona a representação política dentro do sistema capitalista.
"Reforçamos a ideia de um processo em que o povo, de forma revolucionária, possa construir uma alternativa para a humanidade e para o planeta. E isso não será através do processo eleitoral", explica Maria Luiza, cuja trajetória foi contada no documentário "Prefeita", dirigido por Felipe Barroso.
Gardênia também enfrentaria um mandato de dificuldades, sem apoio na Câmara e sem recursos —o incêndio na sede da prefeitura fez com que a gestão perdesse toda a base de contribuintes do IPTU. Não concorreu a outros cargos políticos, mas diz se orgulhar da sua gestão como prefeita.
"Eu acho que valeu a pena participar naquela ocasião, mesmo com todas as dificuldades que enfrentei. Por onde ando, sempre estimulo as mulheres a não se intimidarem e irem em frente na política."
São Luís voltaria a ter uma mulher prefeita entre 1993 e 1996 com Conceição Andrade (PSDB). Fortaleza elegeria Luizianne Lins (PT) em 2004 e 2008, sendo a primeira eleição sem o respaldo da cúpula nacional do partido.
Hoje deputada federal, Luizianne avalia que as dificuldades para as mulheres na política permanecem a despeito dos avanços mais recentes: "O machismo ainda é muito danoso. Quarenta anos depois, a gente é vítima da mesma violência política de gênero."
Desde 1985, apenas 16 mulheres foram eleitas para 24 mandatos nas prefeituras de capitais, incluindo nomes como Luiz Erundina, Marta Suplicy e Lídice da Mata. Na atual legislatura, são apenas duas prefeitas: Emília Corrêa (PL), em Aracaju, e Adriane Lopes (PP) em Campo Grande.

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