A tipologia permite classificar as ocupações segundo três critérios fundamentais: o tipo de interação (direta ou indireta), a frequência (recorrente ou eventual) e o espaço em que o cuidado se realiza (doméstico ou não doméstico). De acordo com esses parâmetros, identificamos cinco grandes grupos ocupacionais, organizados segundo o grau de proximidade com quem recebe cuidado —do mais próximo ao mais distante da relação pessoal e cotidiana.
Modelo brasileiro aprofunda desigualdades
A aplicação dessa metodologia ao caso brasileiro trouxe informações contundentes. Em 2023, o trabalho de cuidado remunerado mobilizava cerca de 25 milhões de pessoas —o equivalente a um quarto da força de trabalho do país. No núcleo mais íntimo, denso e cotidiano desse mercado —o cuidado doméstico, direto e recorrente— predominavam, de forma marcante, as mulheres negras. Segundo dados da PNAD Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - IBGE), elas representavam 62% das trabalhadoras do cuidado direto e 61% do cuidado indireto realizados no domicílio. E são justamente essas trabalhadoras que enfrentam as condições mais adversas: remunerações baixas (menos de sete dólares por hora, em média), jornadas extensas e escassa proteção social. A formalização é mínima. Apenas 21% das mulheres que prestam cuidado direto no domicílio estão inscritas na Previdência. No caso do cuidado indireto doméstico, esse percentual é similar: meros 25%.
A comparação com outros países torna ainda mais evidente o caráter estruturante dessas desigualdades. Na França, por exemplo, o provimento do cuidado externalizou-se largamente em relação ao domicílio, deslocando as atividades de cuidado do âmbito doméstico para instituições ou serviços organizados fora das residências. Esse processo implica a transferência, parcial ou total, do cuidado familiar para arranjos públicos ou mercantis, mediado por políticas, organizações e vínculos formais de trabalho. Neste país europeu, o Estado desempenha papel central no financiamento e regulamentação do cuidado, sobretudo nas áreas de saúde e educação infantil. Ali, o mercado é intermediado por empresas e associações, mas o trabalho é regulado, há exigência de certificações e a ele se associam direitos e proteções. Na Colômbia, diferentemente, destaca-se o peso do mercado, onde é forte a presença de contratos por tarefa em um contexto de baixa participação estatal.
O Brasil parece configurar um outro arranjo: entre nós, chama a atenção o papel das famílias na contratação direta de cuidadoras e trabalhadoras domésticas. Ao mesmo tempo, assistimos ao avanço rápido de intermediadores do trabalho domiciliar, como empresas-plataforma e serviços de homecare. É um crescimento que ainda escapa às estatísticas oficiais, mas reconfigura silenciosamente o campo do cuidado.
Isso cria uma situação ambígua: se é certo que somos um país onde os valores “familistas” são muito fortes, e estão sublinhados na própria Constituição, os dados também indicam a presença significativa do Estado nas áreas institucionalizadas do cuidado. Ainda assim, persiste a contratação direta de mulheres, majoritariamente negras e pobres, mobilizadas no cuidado cotidiano que se faz nas residências. Em outras palavras, vivemos um processo em que a mercantilização do cuidado parece não ter a equivalente externalização das tarefas em relação ao domicílio, um modelo que não apenas mantém, mas aprofunda as desigualdades de classe, raça e gênero.
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