
Crédito, EPA/Shutterstock
- Author, Camilla Veras MotaCamilla Veras Mota
- Role, Da BBC News Brasil em São Paulo
Há 3 minutos
Essa é a avaliação de Ricardo Brisolla Balestreri, que atua há mais de 30 anos na área de segurança pública, com passagem pela administração federal (foi secretário nacional de Segurança Pública entre 2008 e 2011) e estadual, em Goiás e no Pará.
Ele argumenta que a abordagem focada nas incursões policiais em favelas, como a operação conduzida na terça-feira (28/10) nos complexos da Penha e do Alemão, não resultou na contenção do crime. Pelo contrário. Facções continuam se expandindo territorialmente pelo país e têm adentrado cada vez mais mercados lícitos, passando a atuar em setores como o de combustíveis e o de bebidas.
Trata-se de uma receita de bilhões de reais por ano e que não fica restrita ao espaço das favelas, mas circula também nos grandes centros financeiros, em condomínios de luxo e "nos lugares mais caros e nobres do país" — o "andar de cima" ou a "cobertura", como se refere Balestreri, que atualmente é professor e coordenador do núcleo de Urbanismo Social e Segurança Pública do Insper.
"Fuzil não brota em favela. Bandido de favela não constrói fuzil. Você tem um nível 'top' de criminalidade que não convive com favelado, que não mora em favela, que não senta com bandido de favela para tomar um vinho, para tomar um café", diz ele, usando como exemplo os atores que participam do tráfico internacional de armas e do comércio ilegal de armamento.
A insistência no modelo ineficiente, na visão do especialista, é reflexo de uma mentalidade de "casa-grande e senzala" que permeia a lógica das políticas de segurança pública no país e circunscreve sua atuação contra o crime aos espaços de pobreza.
"Segurança pública no Brasil tem sido para proteger a casa-grande e para atacar e conter a senzala", afirma.
As exceções são pontuais, diz ele, ressaltando a Operação Carbono Oculto, deflagrada em agosto a partir da cooperação entre diferentes entes públicos e com foco na atuação do crime organizado no setor financeiro e de combustíveis.
"Não dá para comparar as duas operações", ressalta. "Carbono Oculto começou na 'cobertura', onde as coisas realmente importantes acontecem. A operação do Rio é o desastre completo. Ela é cortina de fumaça. Ela atua mais uma vez no 'térreo'."
Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista concedida à BBC News Brasil.

Crédito, Arquivo pessoal
BBC News Brasil - O governador do Rio de Janeiro classificou a operação de terça-feira como um sucesso. Qual é a sua avaliação?
Ricardo Balestreri - Olha, a minha avaliação é que é muito triste e vergonhoso classificar essa operação como um sucesso. A operação só traz elementos de fracasso.
Em primeiro lugar, é mais uma incursão numa favela onde vive gente vulnerabilizada, causando pânico e desastre e sem um projeto de retomada do território, sem um projeto de polícia de proximidade, que entre para ficar e conviver com a população local, sem um projeto de urbanismo social que ofereça oportunidades a essa população tão abandonada, que acaba sendo utilizada por grupos criminais que ali atuam exatamente porque o Estado de Direito não atua.
A operação é um desastre porque morreram quatro policiais — em qualquer lugar racional e decente do planeta operações policiais onde morrem policiais são consideradas um fracasso ou indicativo de mau planejamento, de falta de cuidado.
O que não é estranho nessa operação do Rio, porque, com 2.500 policiais jogados em dois territórios, você vai ter ali policial com grande experiência de entrada em territórios com criminalidade armada e você também vai ter policiais que não têm a menor condição de conhecimento para ingressar no território, então você está colocando em risco a vida desses policiais.
É de uma irresponsabilidade enorme colocar 2.500 policiais que não têm expertise em enfrentamento com grupos altamente armados... isso tudo para fazer espetáculo. Isso tudo para ser midiático. Isso tudo para dar uma impressão à população de que o governo está fazendo alguma coisa contra a criminalidade.
Lamentavelmente, como a memória da população é curta, ela esquece que são milhares de mega operações desse tipo feitas no Rio de Janeiro nos últimos anos. Milhares, e quase 600 delas terminando por chacina, por matança, sem nenhum resultado.
O Rio de Janeiro é cada vez mais tomado pelo crime. O crime cada vez é mais rico e mais pujante e cada vez mais está armado. Cada vez mais se infiltra, inclusive na política.
E aí o governador vem com um ufanismo totalmente vazio em termos de conteúdo, numa hora tão trágica para o conjunto da cidade.
Olha, sinceramente, eu não sou de partido, mas, como cidadão brasileiro, como alguém que está cansado dessa irresponsabilidade, dessa imprudência, desses maus tratos à população mais humilde, que não tem culpa... eu tenho vergonha alheia. Eu tenho vergonha alheia de ver e ouvir o governador dando uma declaração como essa.
Acho que qualquer pessoa que entenda minimamente de segurança deveria ficar envergonhado. E eu não estou aqui, com isso, criticando a polícia. Acho que a polícia é mandada. A polícia faz o trabalho que foi ordenado pela classe política.

Crédito, Polícia Federal/Divulgação
BBC News Brasil - Olha-se muito para as favelas quando se fala em crime organizado. Seu trabalho foca justamente na interseção entre urbanismo e segurança pública. Qual é a geografia do crime?
Balestreri - Olha, nós somos um país que teve seguramente o mais longo e perverso regime de escravidão do planeta. Isso marcou profundamente a cultura histórica nacional.
Nós superamos a escravatura como regime, mas não superamos o escravismo como ideologia. O escravismo está profundamente imiscuído e contaminado na cultura nacional.
Quando se administra segurança pública no Brasil, majoritariamente se administra com essa mentalidade da "casa-grande" e da "senzala". Segurança pública no Brasil tem sido para proteger a casa-grande e para atacar e conter a senzala.
Então a gente olha para os pobres como virtualmente criminais. A gente não consegue olhar os pobres como a mão-de-obra que construiu e constrói toda a riqueza do país.
Os pobres têm que ser mantidos com o mínimo nas favelas, com o mínimo de saúde, com o mínimo de educação, com o mínimo de salário, o mínimo de comida para não morrerem — é a mesma lógica da escravidão.
E quando a gente trata de segurança pública, a gente olha para os pobres não como potência de solução, mas como perigo, como risco. E a gente só ataca o crime naqueles segmentos instaurados e instalados no meio da pobreza.
Exceto por alguns poucos e significativos episódios, como esse que foi o desmantelamento das fintechs aqui na Faria Lima, em São Paulo, centro financeiro do país. Isso ocorre como exceção. A gente, em alguns momentos, ataca esse nível de criminalidade, o que está na "cobertura", que está em cima, o crime de luxo — que é o responsável pelo braço que está nas favelas.
E como é que é mantido o domínio territorial do crime, do narcotráfico nas favelas? Com armas longas, com fuzis, em geral. Esses fuzis custam muito dinheiro, e eles entram às centenas, às vezes aos milhares, todos os anos no Brasil. Eles vêm da Europa e dos Estados Unidos, são triangulados aqui no Paraguai e depois vêm para o Brasil.
Ora, essa é uma via de grande monta. Fuzil não brota em favela. Bandido de favela não constrói fuzil. Você tem um nível "top" de criminalidade que não convive com favelado, que não mora em favela, que não senta com bandido de favela para tomar um vinho, para tomar um café.
É gente fina e elegante, só não é sincera. É gente que mora em condomínios de luxo, em coberturas horizontais, nos lugares mais caros e nobres do país, gente que pega jatinho particular e vai a Miami, Amsterdã fazer negócios poliglotas de alto nível. Isso é o crime organizado.
Essa cortina de fumaça faz com que o Brasil só olhe pra baixo, que governos populistas e inescrupulosos façam um espetáculo através do suposto combate à criminalidade. Com isso, ilude uma parte da população que se alegra e vota nessa gente achando que essa gente traz solução.

Crédito, Polícia Federal/Divulgação
BBC News Brasil - O senhor falou em 600 incursões com chacinas no Rio nos últimos anos. Como vê a incursão em territórios como estratégia de combate ao crime organizado?
Balestreri - A Universidade Federal Fluminense (UFF) fez uma pesquisa que foi de 2007 a 2022 para saber o volume de incursões nesse período de 15 anos nas favelas cariocas e chegou à conclusão de que foram cerca de 18 mil.
Dessas, quase 600 terminaram em matança, em chacinas, algumas inclusive com "mega chacinas". Se utiliza um critério de mais de oito mortes: mais de oito mortes numa incursão policial já é uma "mega chacina".
De todo esse espetáculo trágico, o nível de eficiência medido pela mesma Universidade Federal Fluminense é de menos de 2%. Então aí está plenamente expressa essa política do espetáculo, essa política da enganação, essa política da farsa para a população.
Esses números são escandalosos, porque eles revelam uma política de "mais do mesmo" há 40 anos. É sempre a mesma coisa, e a realidade da favela não muda em nada, o crime não é removido. Ele continua tiranizando, sendo autoritário diariamente sobre a vida dessas populações. Obviamente não resolve nada. É só espetáculo e tragédia.
"Ah, mas armas foram apreendidas", mas tem muito mais armas, e se faltar arma localmente tem muito mais sendo importada com dinheiro graúdo do crime. Nós estamos falando de uma receita de centenas de bilhões de reais ao ano.
"Prendemos gente", prenderam gente "pé de chinelo", que amanhã já está substituída. "Prendemos alguns gerentes", tem uma indústria de gerentes do crime organizado, porque é uma atividade muito lucrativa. Não falta gente neste país do abandono para ingressar nas fileiras do crime e tentar ter uma vida melhor.
Quer dizer, não tem boa técnica nisso tudo, não tem ciência, não tem racionalidade. É um apelo constante a emoções baratas e desordenadas para manipular a população através dessas compreensíveis emoções. A população não aguenta mais a falta de segurança.

Crédito, Reuters
BBC News Brasil - Qual então a estratégia eficiente para o combate ao crime organizado?
Balestreri - Em primeiro lugar, tem que estancar o fluxo de armas longas. Elas que mantêm o domínio territorial, inclusive armas de pequeno calibre. São fuzis, metralhadoras, submetralhadoras.
E aí não há uma política séria para estancar isso. Porque, para estancar esse fluxo, você tem que ir para o "andar de cima", você tem que ir para a "cobertura", é a cobertura quem faz esse tráfico internacional de armas.
Se a gente conseguir racionalmente olhar mais para as armas longas e menos para as drogas…tem uma fissura com o negócio de drogas. É claro que droga causa um dano enorme à sociedade. Droga mata, droga causa doenças. Mas não adianta olhar para as drogas, que são o produto das armas, e não ter uma política mais séria para contenção das armas.
Por que se olha tanto para a droga? Porque se aproveita também o impulso popular, moral, de condenação da droga.
Então, esse é um elemento. Outro elemento é que tem que entrar com policiamento, e não com operações policiais. Operação policial é uma operação tópica. É colocar band-aid numa ferida enorme, aberta.
Policiamento é estabelecer um método de uma polícia que entra, permanece e convive com a comunidade. Para que a polícia, muito mais do que reprimir o crime, ela evite o crime. Não vai conseguir evitar totalmente, mas vai evitar uma grande parte.
E, além disso, a gente precisa de urbanismo social, porque é preciso oferecer oportunidades de melhoria de vida, de uma vida mais digna para uma população abandonada, que, de maneira geral, é heroicamente honesta.
Percentualmente, a maioria dos pobres são heroicamente honestos, mas em termos absolutos é tanta gente pobre que a massa de pessoas que sobram para aderir ao crime é tão grande que constitui o que a gente chama economicamente de um exército de reserva da indústria criminal.
Se você não der aos jovens, por exemplo, de 14 a 25 anos oportunidades de qualificação profissional, de trabalho e renda, de formação de valores, de liderança, o crime vai lá e oferece essas oportunidades. O crime tem plano informal de carreira.
O sujeito entra ganhando R$ 800, R$ 1.000 por semana, ele ascende numa hierarquia muito rica e passa a ter uma vida curta, mas uma vida mais bem assistida do ponto de vista material, para si mesmo e para sua família. É isso que alimenta a dinâmica criminal. E o Estado, ao invés de ir lá ajudar a resolver esse drama, oferecendo mais oportunidades para a comunidade, ele vai lá com tiro, porrada e bomba.
Cuidado aqui, eu não estou passando pano em bandido. Não estou dizendo que tem que deixar bandido tomar conta de maneira nenhuma. Não estou aqui dizendo que quem entra para o crime entra porque é coitadinho. Cometeu o crime, vai ter que ser punido. Eu estou tentando explicar por que o crime não para de crescer. E porque a gente não olha para isso. É o enigma da esfinge: "Decifra-me ou te devoro". E a gente nunca decifra o crime.

Crédito, EPA/Shutterstock
BBC News Brasil - O senhor fez referência à Operação Carbono Oculto. Nos últimos dias tem-se usado essa operação, que foi fruto de um trabalho conjunto entre diferentes órgãos, como Ministério Público, Receita Federal e Polícia Federal, e mirou o "andar de cima", como o senhor chama, como contraponto à operação feita no Rio da terça. Como enxerga as duas abordagens?
Balestreri - Não dá para comparar as duas operações. A Carbono Oculto é o contrário dessa desastrada operação no Rio de Janeiro. Carbono Oculto é um exemplo para a história do Brasil de tudo aquilo que se deve fazer.
Carbono oculto começou por cima. Começou na cobertura, onde as coisas realmente importantes acontecem. Carbono Oculto não trocou um tiro. Ela fez uma operação que envolveu em torno de R$ 50 bilhões de dinheiro ilícito. Ela surpreendeu o país, que não tem muita esperança nunca que os mega importantes sejam responsabilizados.
Ela trouxe uma lufada de esperança para o país, de que a gente pode enfrentar o crime organizado de uma maneira consequente. E fez isso de uma maneira impecável.
A operação do Rio é o desastre completo. Ela é cortina de fumaça. Ela atua mais uma vez no "térreo". Ela confundiu a opinião pública, dando a entender que isso vai melhorar. A situação da Penha e do Alemão não vai melhorar em nada. Infelizmente. Você pode ter certeza de que vai continuar exatamente a mesma coisa.
O pior é que daqui a uns meses nós vamos estar enfrentando mais uma mega operação e, mais uma vez, contando mortos. Para quê? Para nada. A única consequência que vai ter é mais pânico, mais medo, mais sensação de abandono daquelas pessoas que já são abandonadas, que precisariam de mais oportunidades, de mais cuidados do Estado.
A única comparação que vale é para dizer "olha como foi um sucesso e como a outra é um fracasso total", um fiasco internacional que, inclusive neste momento, enxovalha a imagem do Rio de Janeiro e do Brasil em todo o mundo.

German (DE)
English (US)
Spanish (ES)
French (FR)
Hindi (IN)
Italian (IT)
Portuguese (BR)
Russian (RU)
3 horas atrás
1





:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_59edd422c0c84a879bd37670ae4f538a/internal_photos/bs/2023/l/g/UvNZinRh2puy1SCdeg8w/cb1b14f2-970b-4f5c-a175-75a6c34ef729.jpg)










Comentários
Aproveite ao máximo as notícias fazendo login
Entrar Registro