A escolha do tema da redação do Enem deste ano foi acertada, em que pese as polêmicas envolvendo outros pontos da prova. O tema escolhido foi "Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil". Como sociedade, devemos mesmo debater como tornar visível o trabalho de quem torna a vida familiar e o funcionamento da sociedade melhores.
Colunas e Blogs
Receba no seu email uma seleção de colunas e blogs da Folha
Colocando essa questão em números: mulheres ocupadas (que trabalham fora) dedicaram 6,8 horas a mais por semana em afazeres domésticos ou ao cuidado de pessoas do que homens em 2022, de acordo com a Pnad Contínua. Além disso, entre 2012 e 2022, o número de domicílios com mães solo aumentou em 17,8%, contribuindo com a disparidade existente. Houve um acréscimo de 1,7 milhão de mães solo em uma década, como aponta o levantamento de Janaina Feijó, pesquisadora do FGV Ibre. Para fechar o quadro, quase 3/4 dessas mães só residem em domicílios monoparentais, isto é, sem a presença de parentes ou agregados que poderiam contribuir nas responsabilidades familiares.
Essa sobrecarga de responsabilidades e tarefas deve ter impacto na produtividade e nos salários. Significa menos tempo disponível para se conectar com colegas e superiores, demandas urgentes e qualificação adicional para o trabalho remunerado. Hoje, as mulheres já ingressam no mercado de trabalho com um capital humano superior em 7 pontos percentuais em relação aos homens, segundo dados do Banco Mundial para o Brasil. Isso significa que elas possuem um nível de educação e capacidade produtiva mais elevados no começo da carreira. No entanto, ao longo da vida produtiva, ocorre uma inversão da vantagem inicial das mulheres em termos de habilidades e educação, fazendo com que apenas metade do seu potencial seja devidamente aproveitado, enquanto 75% do capital masculino é empregado no mercado de trabalho.
Nesse sentido, políticas públicas que reduzam a carga sobre as mulheres, em especial aquelas que não têm rede de apoio, são fundamentais. E é isso que mostra a pesquisa de João Garcia, Rafael Latham-Proença e Marcela Mello. O estudo avaliou o impacto da expansão da oferta de creches públicas em São Paulo na participação das mães no mercado de trabalho. Assim, identificou-se que essa expansão aumentou em 6,4 pontos percentuais a participação das mães na economia formal após o nascimento do primeiro filho. Esses resultados destacam a eficácia das creches públicas como uma solução para mitigar a penalização das mulheres no mercado de trabalho pós-maternidade.
Mas a demanda por esse tipo de política pública muitas vezes também fica invisibilizada na medida em que o trabalho de cuidado e afazeres domésticos é pouco percebido. Se ao acordar o café da manhã está sempre pronto, a casa está limpa e crianças e idosos estão sendo cuidados sem a nossa ajuda, a tendência é acharmos, como sociedade, que se trata de tarefas de menor importância. Nesse contexto, a escolha do tema da redação do Enem deste ano foi pertinente, justamente porque aborda desigualdades que as mulheres enfrentam na vida doméstica e no mercado de trabalho.
Sem esse debate geral, será mais difícil reivindicar melhores políticas públicas, aquelas que consigam efetivamente ajudar mulheres a desenvolverem o seu potencial econômico e, consequentemente, ajudarem a transformar suas próprias vidas e a dos seus filhos.
Comentários
Aproveite ao máximo as notícias fazendo login
Entrar Registro