Chantille Manuel, sentada em um banco de madeira no jardim

Legenda da foto, Chantille Manuel deixou a dependência para trás e reconstruiu sua vida profissional, mas ainda enfrenta dificuldades para alimentar sua família
    • Author, Ana Faguy
    • Role, BBC News em Sarasota, Flórida (EUA)
  • Há 16 minutos

Chantille Manuel dedicou os últimos cinco anos a transformar sua vida.

Moradora da Flórida, nos Estados Unidos, ela conseguiu se recuperar da sua dependência, perdeu mais de 64 kg e lançou seu próprio negócio: um salão de beleza.

Mesmo com todas estas conquistas, Manuel enfrenta dificuldades para alimentar sua família. Ela depende da assistência social para sobreviver, tanto das igrejas locais, quanto do governo americano.

"Não quero depender de ninguém, quero ser autossuficiente", lamenta ela.

Manuel é uma entre mais de 40 milhões de americanos ameaçados de ficar sem assistência alimentar neste início de novembro. O motivo é o fechamento parcial do governo americano, causado pela falta de acordo sobre a nova lei orçamentária pelo Congresso do país.

Um em cada oito americanos faz uso do Programa de Assistência Nutricional Suplementar (SNAP, na sigla em inglês), similar ao Bolsa Família no Brasil. O programa é fundamental para permitir que muitas pessoas, como Manuel, possam comprar alimentos.

Como no Bolsa Família, o SNAP funciona por meio de cartões de débito recarregáveis, que as pessoas podem usar para comprar alimentos.

Mas os funcionários encarregados do programa alertaram que não iriam contar com os fundos necessários para pagar todos os benefícios a partir de 1° de novembro.

Manuel gastou o restante do dinheiro que recebeu do programa SNAP em outubro uma semana antes do final do mês. Ela comprou artigos como café, creme para café e atum.

Quando fez as compras, Manuel não conseguiu parar para pensar se o governo encontraria ou não uma solução antes do início do mês para manter o programa.

"Ou estará disponível, ou não estará", considera ela. "Por isso, achei melhor comprar o que preciso neste momento."

'Salva-vidas fundamental'

O impasse se apresentou quando, no início de novembro, o governo Donald Trump se recusou a utilizar um fundo de contingência que teria permitido manter os benefícios. O governo defendeu que era necessário manter o fundo para possíveis emergências, como desastres naturais.

Na terça-feira, no entanto, o governo Trump anunciou que utilizará o dinheiro para manter ao menos parte do auxílio.

A decisão de utilizar fundos emergenciais e, consequentemente, reduzir o benefício, surge após determinações judiciais em Massachusetts e Rhode Island.

Juízes federais deram ao governo Trump um prazo final na segunda-feira para apresentar um plano sobre como pagaria os benefícios, argumentando que o governo deveria usar os US$5,25 bilhões em fundos de contingência para garantir pagamentos parciais.

Voluntários embalando alimentos em um salão

Legenda da foto, O banco de alimentos All Faiths Food Bank, de Sarasota, na Flórida (EUA), alimentou mais de 80 mil pessoas no ano passado

'Realmente difícil, muito angustiante'

Em uma terça-feira ensolarada (28/10), cerca de 10 voluntários ocupam um espaço de embalagem no armazém do banco de alimentos All Faiths em Sarasota, no Estado americano da Flórida.

Eles alimentaram mais de 80 mil pessoas com mais de 10 mil toneladas de comida no ano passado. E a necessidade na região continua aumentando, segundo a CEO (diretora-executiva) do banco de alimentos, Nelle Miller.

Desde que começou o fechamento parcial do governo dos Estados Unidos, no dia 1° de outubro, o banco de alimentos presenciou aumento da quantidade de pessoas necessitando de comida.

"No ano passado, tivemos três furacões aqui", relembra Miller.

"Foi um desastre, mas esta é uma tempestade nova. A diferença é que as pessoas não se recuperarão imediatamente."

Cerca de 20 mil pessoas da região recebem os benefícios do programa SNAP, explica ela. Destas, cerca de 6 mil também usam os recursos do banco de alimentos.

Miller se preocupa com o que acontecerá com os 14 mil beneficiários do SNAP quando acabarem os pagamentos do programa. Ela se pergunta se eles também precisarão da ajuda do banco de alimentos.

Mas a All Faiths pode redistribuir suas provisões para alimentar mais pessoas, em caso de necessidade. Isso significaria que cada pessoa receberia menos quantidade, explica ela.

"Receber alimentos é um direito inalienável", afirma Miller. "Você nasce na Terra e há comida para alimentar a todos. O problema é de distribuição."

"Simplesmente, não consigo me imaginar negando comida, água ou ar a nenhum ser humano. É realmente difícil, muito angustiante."

Nelle Miller em um armazém em frente a grandes estantes com caixas de produtos

Legenda da foto, A necessidade de alimentos segue aumentando, segundo a diretora do banco de alimentos All Faiths em Sarasota, na Flórida, Nelle Miller.

Segundo o CBPP, uma família de quatro pessoas recebe mensalmente, em média, US$ 715 (cerca de R$ 3,85 mil). Este valor equivale a pouco menos de US$ 6 (cerca de R$ 32) por dia.

Mas Austin Lemmer, individualmente, recebe ainda menos: US$ 295 (cerca de R$ 1,6 mil) por mês. Ele já gastou seu benefício de outubro do programa SNAP e se prepara para não receber o deste mês.

"Estou muito ansioso", destaca ele. "Tentei 'esticar' ao máximo a pouca comida que tenho, mas há um limite, especialmente quando você já vive de sacos de arroz e feijão em lata."

Os Estados administram os programas e grande parte do financiamento provém do governo federal.

Vários Estados se comprometeram a usar seus próprios fundos para cobrir eventuais déficits. Mas o governo federal alertou que não haverá reembolso.

Alguns Estados, como a Flórida, declararam que os usuários do programa SNAP perderiam os benefícios, se não fossem tomadas medidas antes do último fim de semana.

Eles defendem que a decisão do governo americano de não usar os fundos de contingência seria ilegal e impediria que milhões de norte-americanos comprem alimentos para seu consumo.

Em resposta à ação judicial, o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos culpou os democratas pelo esgotamento dos fundos, declarando que o partido de oposição deve decidir se deseja "manter o apoio da ala mais à esquerda do partido ou reabrir o governo, para que as mães, os bebês e as pessoas mais vulneráveis possam receber os subsídios a tempo".

O fechamento do governo já ultrapassou um mês e é, até agora, o segundo mais longo da história americana.

Não se chegou a nenhum avanço significativo rumo a um acordo para reabrir o governo, o que frustrou muitos beneficiários do programa SNAP, como Chantille Manuel.

"Não acredito que os políticos em Washington tomassem esta decisão se ela afetasse a eles da mesma forma que afeta a nós", lamenta ela.

"Enquanto tiverem o que comer, é o que importa para eles."