Partidos da direita radical atraem mais o eleitorado masculino do que o feminino, e suas estruturas, em geral, são controladas por homens. Essa foi, pelo menos até o início do século, a leitura predominante entre cientistas políticos.
Nas últimas décadas, porém, surgiram sinais de que o fenômeno não é intrinsecamente masculino, com a grande projeção alcançada por mulheres como a primeira-ministra italiana Giorgia Meloni e a líder da ultradireita francesa Marine Le Pen.
No Brasil, também ganharam tração no bolsonarismo figuras como a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro, presidente do PL Mulher, e a senadora Damares Alves (Republicanos-DF). Michelle vem sendo citada como possível candidata à Presidência em 2026 para representar o clã Bolsonaro, embora ainda haja resistência a seu nome por parte de alguns aliados do ex-presidente.
Pesquisadores que se debruçam sobre o tema apontam ao menos três funções estratégicas desempenhadas pelas mulheres da direita radical.
Primeiro, a de aplicar um verniz de moderação, suavizando a imagem do grupo e normalizando pautas mais extremas. Muitas vezes isso se dá por meio de referências conservadoras ao papel de mãe e esposa, ou a Deus, em países onde a religião é muito presente, como a Itália e o Brasil.
O mantra de Meloni, por exemplo, segue esta linha: "Eu sou Giorgia, eu sou uma mulher, eu sou uma mãe, eu sou italiana, eu sou cristã!". Michelle, por sua vez, tem como biografia no Instagram: "Esposa, mãe, voluntária e serva do Senhor". São constantes estas referências pela ex-primeira-dama, que já disse que "a mulher tem que ser ajudadora do esposo".
Estudo publicado em 2019 por Diana Z. O'Brien, professora de ciência política na Universidade Washington em St. Louis (EUA), mostrou que partidos liderados por mulheres são vistos como mais moderados do que os liderados por homens, independentemente do conteúdo programático. O levantamento se baseou em dados de opinião pública sobre 269 legendas em 35 países, de 1976 a 2016.
"As mulheres têm ganhado mais holofotes na extrema direita por uma estratégia de ‘rebranding’, de limpeza de marca", afirma a cientista política Lilian Sendretti, pesquisadora do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). "A extrema direita sempre foi associada mais aos homens, ao uso da violência política, a uma estética e a um discurso mais virulento."
A segunda função abraçada pelas líderes da direita radical é aproximar o partido do eleitorado feminino. Na eleição presidencial de 2022, por exemplo, Michelle foi considerada essencial para tentar diminuir entre as mulheres a rejeição ao marido.
A França é um exemplo de país no qual a estratégia parece ter funcionado. Entre as eleições de 2019 e 2024, o partido de Le Pen (RN) ganhou dez pontos entre o eleitorado feminino, crescendo de 20% para 30%, segundo o instituto de pesquisa Ipsos.
No fim de março, Le Pen foi condenada pela Justiça francesa e ficou impedida de concorrer a cargos públicos por cinco anos, mas não perdeu o mandato de deputada.
Em 2012, a cientista política Nonna Mayer já apontava em artigo publicado na revista Parliamentary Affairs que os votos obtidos pela líder francesa, candidata nas eleições presidenciais daquele ano, poderiam sinalizar a erosão do padrão histórico de menor apoio das mulheres aos partidos e candidaturas da direita radical.
Por fim, com a ascensão das mulheres em seus quadros, partidos dessa linha buscam mais legitimidade para falar sobre temas de gênero e colocar em dúvida o comprometimento da esquerda com a pauta feminista.
No ano passado, após uma ex-namorada ter acusado o filho mais novo do presidente Lula (PT), Luís Cláudio, de agressão, Michelle usou o caso para criticar o petista. "Hoje a gente vê quem é o misógino, que usa as mulheres para subir a rampa e depois fecha a porta na cara delas, que promete e não cumpre", disse ela em evento do PL.
Damares fez o mesmo em publicação no Instagram: "E o silêncio das esquerdistas e feministas permanece, está ensurdecedor. Fosse qualquer pessoa próxima ou que apoia a direita já viram, né?". O inquérito sobre o caso acabou arquivado pela Polícia Civil, que avaliou não haver provas da acusação.
Na Europa, políticas da ultradireita usam a identidade de mulher para movimentar pautas mais amplas defendidas pelo grupo.
Em nome da proteção das mulheres, líderes como Meloni e Le Pen costumam associar homens estrangeiros e/ou muçulmanos a crimes de assédio sexual, reforçando o discurso anti-imigrante de seus partidos. A francesa também encampa a pauta contra o hijab, véu islâmico, a partir da ideia de autonomia feminina.
Essa estratégia foi cunhada pela socióloga Sara Farris, da Universidade Goldsmiths (Reino Unido), como femonacionalismo. "É o termo que introduzi para descrever tanto a exploração de ideias feministas por partidos nacionalistas de direita em campanhas islamofóbicas quanto o endosso de algumas feministas de agendas anti-Islã em nome dos direitos das mulheres", disse ela à revista Salvage.
No Brasil, onde a direita radical não mobiliza um inimigo externo, a função da liderança feminina se apresenta de forma diferente, afirma a socióloga Esther Solano, coautora do livro "Feminismo em Disputa".
"Nós temos um ecossistema religioso muito capilarizado. A extrema direita nessas questões de gênero se enraíza nesse sistema e utiliza temas e valores que têm a ver com os modelos de família [tradicional]", diz ela.
Solano afirma que a extrema direita tem disputado o feminismo, em vez de assumir uma postura totalmente antifeminista. "Ela se coloca como a legítima guardiã dos valores femininos, como aquela que verdadeiramente procura o empoderamento e a emancipação feminina baseada em valores conservadores."
A cientista política Lilian Sendretti observa que partidos mais à direita têm defendido políticas punitivistas no combate à violência contra a mulher. "No caso do PL, que seria o partido mais à extrema direita na sua Executiva Nacional, inclusive há defesa de políticas de armamento para mulheres", diz.
Ela afirma, assim como Solano, que a presença de mais mulheres nessas legendas também se dá a partir da defesa da família tradicional. "Um dos slogans do PL é que cuidar da saúde da mulher é cuidar da nação. A mulher é um corpo de reprodutibilidade da nação."
Solano afirma que a ex-primeira-dama poderia representar uma base feminina evangélica conservadora. Para ela, uma eventual candidatura de uma mulher da direita radical não escapará do seguinte arquétipo: "A mulher empoderada, independente financeiramente, e ao mesmo tempo dona do lar, da família. Uma mulher de fé".
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