O primeiro tornou-se metonímia do nacionalismo colonial e protótipo do homem enlouquecido pelo excesso de poder; o segundo tornou-se metáfora dos povos subjugados e líder potencial das revoltas coloniais.
Foi assim também com Antígona, a heroína grega de Sófocles, que Lacan tomou para representar a ética da psicanálise e que Andrea Beltrão trouxe para os palcos.
Após a morte do pai Édipo, os irmãos Polinice e Etéocles combinaram revezar-se no reinado de Tebas. Logo na primeira alternância, Etéocles se recusou a sair. Polinice se aliou aos inimigos da cidade e, no combate, ambos morrem. O tio Creonte decidiu que Polinice ficaria insepulto no campo de batalha, enquanto Etéocles seria enterrado com honras por ter defendido Tebas.
Coube então a Antígona, uma jovem de 13 anos, se levantar. Num ato heroico e improvável, ela desafiou Creonte, enterrou o irmão e foi condenada a ser enterrada viva com ele.
Alguns dirão que ela agiu por apego à família; outros, que foi a heroína de uma nova lei, na qual todos nós temos direito a um funeral e a existir na memória dos que sobrevivem.
Não me parece um acaso que agora Beltrão protagonize "Lady Tempestade: uma mulher contra a barbárie" no papel de Mércia Albuquerque, uma advogada que defendeu mais de 500 presos políticos na ditadura militar brasileira.
À primeira vista, Mércia não parecia destinada a se tornar uma heroína da luta contra a opressão. Mas, de caso em caso, de família em família, ela foi se envolvendo em algo muito maior.
A direção de Yara Novaes parece ter compreendido que é justamente essa a voz que precisamos ouvir em tempos de chantagem trumpista: a voz dos prisioneiros, dos torturados e dos desaparecidos, que corre o risco de ser esquecida e enterrada por versões remixadas dos anos 1970, que pintam o período como era de ouro da ordem e do progresso.
Quando batem os ventos de um novo autoritarismo, mais uma vez alimentado por forças internas e externas, essa voz retorna na potência de Andrea Beltrão.
Quando assisti à peça, lembrei-me do Museu do Aljube, em Lisboa, um marco da memória da Revolução dos Cravos e da libertação do povo português de seu líder napoleônico, Salazar. No fim da visita, qualquer um pode levar cópias dos arquivos de tortura e prisão, com os nomes dos perseguidos.
Diante do vasto número de vítimas, precisamos do nome concreto e objetivo, para que cada indivíduo seja real perante a massa anônima de desaparecidos.
Andréa Beltrão e Marieta Severo são duas heroínas que hoje dirigem teatros no Rio de Janeiro (Poeira e Poeirinha). A peça "Lady Tempestade", como tantas outras iniciativas culturais, enfrenta o efeito "ventos passados ainda movem moinhos".
Como disse Andréa: "a moral e os bons costumes invadiram a vida da gente".
As empresas temem associar seu nome a iniciativas que se posicionam do lado, digamos, progressista da força, independentemente de boa ou má vontade dos dirigentes, por medo de "perder" os outros 40% da população.
O mesmo ocorre nas escolas, quando "milícias organizadas" de pais questionam conteúdos de história ou literatura. Acuadas, muitas vezes elas reduzem ou retiram os assuntos da pauta. Novamente, não porque sejam contra ou a favor, mas porque temem o conflito e o risco de perder essa parte dos alunos.
Infelizmente, isso tem um correlato na esquerda. Ao conquistar maior diversidade de raça, gênero e classe nas mesas de discussão, congressos e bancas, abriu-se espaço para que novas representações — de religiosidade, etariedade e até "diversidade epistêmica" — também fossem reivindicadas.
O problema é que muitos processos acabam sendo obstruídos por uma espécie de chantagem "branca": a ameaça de conflito, com todo o potencial de atraso e o custo subjetivo que carrega, basta tirar certos temas da pauta, ainda que informalmente e sem alarde.
Educação sexual, direito à memória e aborto são exemplos disso.
O desfinanciamento de produções como "Lady Tempestade" carrega o gosto amargo que os verdadeiros atos heroicos sempre deixam em nós.
Isso porque a memória dos desaparecidos e torturados e do sofrimento de pessoas reais que se perderam nas brumas e nos ventos da história não pertence nem à esquerda nem à direita, mas a todos nós.
E, se não permitirmos que os mortos descansem em paz, eles sempre voltarão para nos assombrar.
Opinião
Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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2 meses atrás
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