Homem com olhos saltados pela doença ocular da tireoide

Crédito, Getty Images

Legenda da foto,

A doença ocular da tireoide é mais comum em mulheres, mas costuma ter maior gravidade entre homens

Se nosso corpo fosse uma orquestra sinfônica, a tireoide seria a grande maestrina. Afinal, essa glândula em formato de borboleta que temos no pescoço é a responsável por ditar o ritmo de funcionamento de todo o organismo.

Ela produz dois hormônios — o T3 e o T4 — que determinam a velocidade com que diversos órgãos operam.

Quando há alguma disfunção nessa glândula — ou no TSH, o hormônio fabricado pelo cérebro que envia os comandos para a tireoide trabalhar — o corpo pode acabar prejudicado.

Se os tais hormônios tireoidianos estão em falta, há um quadro de hipotireoidismo. Nesse caso, todo o corpo entra em marcha lenta e surgem sintomas como intestino preso, falhas de memória, cansaço excessivo, menstruação irregular, desaceleração dos batimentos cardíacos e queda de cabelo.

Agora, quando o T3 e T4 são fabricados além da conta, surge o hipertireoidismo. Os incômodos são alguns como coração acelerado, intestino solto, ansiedade, sudorese, tremores.

Mas há uma condição pouco conhecida que costuma estar relacionada ao hipertireoidismo e pode ter consequências graves à saúde e à qualidade de vida. É a doença ocular da tireoide, também conhecida como orbitopatia ou oftalmopatia de Graves.

Nesse quadro, uma inflamação que se desenvolve na parte traseira da cavidade ocular empurra os olhos para a frente — o que gera incômodos que vão desde olhos saltados a estrabismo e perda da visão.

A boa notícia é que existem formas de tratar a situação — e especialistas europeus e americanos se reuniram recentemente para definir as melhores formas de lidar com essa enfermidade. Nos últimos meses, também houve a aprovação de um novo medicamento específico contra a orbitopatia de Graves no Brasil.

Rara ou pouco conhecida?

A oftalmologista Stefânia Diniz, especialista em oculoplástica — área da Medicina que trabalha com a órbita ocular, as pálpebras, os ductos lacrimais e a face —, estima que em torno de 30% dos pacientes com hipertireoidismo desenvolvem a doença ocular da tireoide.

Levantamentos internacionais apontam que a tireoide acelerada é uma condição que afeta entre 0,5% a 2% da população mundial.

Uma conta básica permite estabelecer, portanto, que a superprodução de T3 e T4 acomete entre 1 milhão e 4 milhões de brasileiros — desses, de 300 mil a 1,2 milhão sofreriam também com a doença ocular da tireoide.

Vale ponderar que esses números são apenas estimativas, uma vez que não existem trabalhos específicos publicados sobre essa questão no país.

"Trata-se de uma doença heterogênea, que pode manifestar sintomas muito leves e inespecíficos, como um ressecamento ou uma vermelhidão, até incômodos graves, que comprometem a visão", detalha Diniz.

A maioria dos casos, segundo a oftalmologista, tem uma gravidade menor e pode ser manejada de maneira eficaz.

"Infelizmente, a doença ocular da tireoide é muito subdiagnosticada pela falta de conhecimento sobre ela tanto entre a população geral quanto entre os médicos", lamenta a especialista.

Mas, afinal, como um problema que afeta a tireoide pode gerar repercussões numa região tão específica quanto o fundo da cavidade ocular?

Ilustração de tireoide

Crédito, Getty Images

Legenda da foto,

A tireoide é uma glândula em formato de borboleta que temos no pescoço responsável por fabricar os hormônios T3 e T4

Receptores prejudicados

É importante explicar que a doença ocular da tireoide é uma condição autoimune. Em outras palavras, isso significa que substâncias produzidas pelo próprio sistema de defesa passam a atacar partes específicas do organismo.

Neste caso, alguns anticorpos se conectam a receptores localizados nas superfícies das células da tireoide — o que desregula o funcionamento da glândula e faz com que ela trabalhe mais do que deveria.

Por algum motivo que a ciência ainda não sabe explicar, as células localizadas no fundo da cavidade ocular possuem esses mesmos receptores. Ali se encaixam substâncias como o TSH (que é produzido no cérebro e faz a comunicação com a tireoide) e o IGF-1 (sigla para Fator de crescimento semelhante à insulina tipo 1).

Num mecanismo parecido ao funcionamento de chaves e fechaduras, esses anticorpos se ligam aos tais receptores localizados atrás dos olhos e dão início a uma inflamação.

"As células afetadas passam a produzir substâncias chamadas glicosaminas, que atraem água. Isso, por sua vez, cria um edema que vai empurrar o olho para fora", detalha o endocrinologista Danilo Villagelin, presidente do Departamento de Tireoide da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM).

"Com o passar do tempo, essas células podem se diferenciar e gerar mais tecido adiposo [gordura] ou músculos nesse local", complementa o médico.

Ou seja, a região da órbita ocular — que já é naturalmente apertada — acumula muita coisa que não deveria estar lá.

A grande maioria dos casos dessa doença ocular está relacionada com o hipertireoidismo. Mas há pacientes que desenvolvem a enfermidade de forma independente, mesmo com a tireoide saudável. Outra situação rara, mas que também pode ocorrer, é a inflamação nas órbitas junto do hipotireoidismo.

Em casos mais graves, os olhos ficam bem saltados ou até perdem o movimento coordenado (algo conhecido no meio médico como estrabismo). Há pacientes que sofrem com a visão dupla ou não conseguem mais fechar as pálpebras completamente.

Villagelin calcula que 80% dos pacientes apresentam as formas mais leves da doença ocular da tireoide, que são marcadas por irritação ou vermelhidão dos olhos — como se tivesse uma areia na superfície deles — e uma leve projeção dos órgãos da visão.

"Em torno de 15% têm quadros moderados e uma minoria, ao redor de 5%, desenvolve o tipo mais severo, com risco de cegueira", estima o médico.

Nessas situações, o acúmulo de células na traseira da órbita ocular é tão intensa que esmaga — e pode até lesar — o nervo óptico, a estrutura responsável por transmitir para o cérebro os estímulos luminosos que chegam pelos olhos.

O endocrinologista José Augusto Sgarbi, professor da Faculdade de Medicina de Marília (Famema), no interior paulista, explica que existem ferramentas para classificar a gravidade da doença, que levam em conta uma série de fatores — desde quanto os olhos estão saltados até o impacto disso na qualidade de vida do paciente.

Mas como evitar que um problema desses chegue num estágio mais extremo?

Modelo anatômico da cavidade ocular

Crédito, Getty Images

Legenda da foto,

A cavidade onde o olho se encaixa é relativamente pequena — e fica com edemas e cicatrizes em indivíduos acometidos pela doença ocular da tireoide

Diagnóstico precoce

Diniz destaca que a doença ocular da tireoide é dividida em duas fases distintas: a ativa e a crônica.

Na ativa, que costuma demorar entre 6 e 18 meses, aquele processo inflamatório está em andamento e os incômodos progridem aos poucos. Já na crônica, os tecidos acumulados começam a formar cicatrizes.

"A fase crônica, ou cicatricial, é muito mais difícil de tratar. Portanto, quanto antes a doença é detectada, melhor", diz ela.

A oftalmologista também aponta que o diagnóstico pode ser feito no próprio consultório, por meio da análise dos sintomas e do relato do paciente — em alguns casos, os especialistas pedem exames laboratoriais ou de imagem para descartar outras possíveis causas de problema na região, como tumores.

Assim que a doença ocular da tireoide é detectada, é possível iniciar o tratamento — que vai variar segundo a gravidade da situação.

Sgarbi e Villagelin lembram que o primeiro passo é estabilizar o hipertireoidismo por meio de medicações que ajudam a regular a produção dos hormônios da tireoide.

"A segunda orientação é pedir que o paciente deixe de fumar, se for o caso", acrescenta Villagelin.

Estudos publicados nas últimas décadas observaram que o prognóstico da doença ocular da tireoide é bem pior entre os tabagistas. Ainda não se sabe ao certo os motivos disso, mas os médicos suspeitam que os cigarros agravam o estado inflamatório do organismo, o que gera repercussões na órbita dos olhos.

Há também tratamentos específicos para lidar com a orbitopatia em si. Alguns colírios e pomadas ajudam a lubrificar os olhos e aliviar os incômodos imediatos, como a irritação pela dificuldade em fechar as pálpebras.

"A depender da gravidade, podemos usar medicações antiinflamatórias, fazer sessões de radioterapia ou partir para as cirurgias", conta Diniz.

A meta é justamente frear o crescimento do edema e daquele material orgânico que se acumula na cavidade dos olhos. No caso da intervenção cirúrgica, os tecidos acumulados são removidos para aliviar a pressão e corrigir possíveis disfunções oculares.

Os remédios mais utilizados nesse contexto pertencem à classe dos corticoides. Eles estão amplamente disponíveis há muitos anos e são indicados como a primeira linha de tratamento, segundo um consenso científico sobre a doença que foi publicado em dezembro do ano passado pelas associações de especialistas em tireoide dos Estados Unidos e da Europa.

Esse mesmo documento já aborda uma novidade terapêutica: o remédio teprotumumabe, da farmacêutica Horizon, que foi aprovado pelas agências regulatórias dos Estados Unidos e do Brasil recentemente.

Indicado especificamente para tratar a doença ocular da tireoide, essa substância é um anticorpo monoclonal aplicada por meio de infusões na veia. Ela foi projetada em laboratório para se encaixar naqueles mesmos receptores que aparecem na superfície de algumas células — e, assim, impedir a ação dos anticorpos produzidos pelo organismo que provocam a enfermidade.

Para Diniz, essa é uma medicação que veio para "mudar paradigmas".

"Ela não apenas controla a inflamação. A partir do momento que bloqueia os receptores, o teprotumumabe ajuda a evitar o remodelamento de tecidos de músculo e gordura na órbita", resume a médica, que teve a oportunidade de acompanhar alguns pacientes tratados com a medicação quando morou por dois anos na cidade de Los Angeles, nos EUA.

Villagelin concorda. "É um remédio que promete mudar o jogo e ajudar pacientes que não respondem bem aos corticoides ou às outras opções terapêuticas", diz ele.

Mulher sendo examinada por profissional da saúde

Crédito, Getty Images

Legenda da foto,

A doença ocular da tireoide pode ser diagnosticada no próprio consultório, mas por vezes exige alguns exames complementares

Sgarbi traz uma preocupação em relação à novidade farmacêutica. "Ela deve chegar ao mercado com um preço bem elevado", aponta o endocrinologista.

Nos Estados Unidos, o tratamento com o teprotumumabe está na casa das centenas de milhares de dólares — e, embora o valor do remédio no Brasil ainda não tenha sido oficialmente divulgado, os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil esperam que o custo possa ultrapassar a casa do milhão de reais.

No próprio consenso americano e europeu sobre a doença, os autores já se mostravam preocupados com o preço do fármaco. Eles calculam que o custo final do teprotumumabe, considerando a realidade dos EUA, chega a ser 2 mil vezes superior ao que é gasto com os corticoides.

Procurada pela reportagem, a Horizon (a farmacêutica responsável pelo novo anticorpo monoclonal) afirmou em nota que o remédio é o "único tratamento aprovado no Brasil e no mundo que modifica a história natural da doença ocular da tireoide, diferentemente outras opções terapêuticas disponíveis, cujo tratamento se baseia no controle dos fatores relacionados ao processo autoimune".

Especificamente sobre o preço, o laboratório detalhou que a decisão se baseia "em fatores que extrapolam a observação pura de custos, como os investimentos em pesquisa e desenvolvimento, as necessidades médica e social não atendidas, o grau de inovação e transformação para a qualidade de vida dos pacientes, entre outros".

"Trabalharemos em conjunto com os governos federal e estaduais, operadoras de saúde, comunidades médicas e de pacientes, seguindo os padrões éticos e a legislação vigente no país, com o objetivo de desenvolver uma rota de acesso sustentável, conforme a bula do teprotumumabe", finaliza o texto.

Diniz destaca que a disponibilidade de mais recursos terapêuticos permite individualizar o tratamento e utilizar a melhor ferramenta de acordo com as particularidades de cada indivíduo com a condição.

"Podemos conversar com o paciente, apresentar os possíveis caminhos para tratar a doença e decidir juntos a melhor opção", acredita ela.

"Muitas vezes, a pessoa com doença ocular da tireoide chega para nós com alterações muito estigmatizantes, que afetam o bem-estar e a qualidade de vida."

"Precisamos, portanto, conscientizar a população sobre o quadro e a forma adequada de diagnosticá-lo e tratá-lo", conclui a médica.