Retrato de Carlos Eduardo Brandt

Crédito, Reprodução/LinkedIn

Legenda da foto, Ex-funcionário de carreira do Banco Central, Carlos Eduardo Brandt liderou time que desenvolveu o Pix
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Depois de 23 anos no Banco Central (BC), Carlos Eduardo Brandt, que liderou o time que desenvolveu o Pix, resolveu há três meses deixar a instituição — e o Brasil. Trocou Brasília por Washington.

A carreira no BC era coisa de família. O pai e o avô de Brandt também foram servidores da instituição. Mas, nessas duas décadas em que ele esteve na autarquia, criada em 1964, o Banco Central do Brasil assumiu um protagonismo inédito.

E Brandt também. Em 2021, foi o único brasileiro na lista da Bloomberg das 50 pessoas que definiram os rumos dos negócios globais naquele ano. O Pix havia acabado de completar um ano e tinha dobrado a base de usuários, de 56 milhões para 113 milhões de pessoas, chamando atenção do mundo.

Desde então, o modelo de pagamentos instantâneo brasileiro, que completa cinco anos em funcionamento neste domingo (16/11), se tornou referência internacional e, hoje, é o elemento mais visível de um grande ecossistema que o país desenvolveu no segmento de pagamentos digitais.

Hoje, o Pix tem 161,7 milhões de usuários pessoas físicas e 16,3 milhões de pessoas jurídicas. Nestes cinco anos, movimentou R$ 85 trilhões, ou sete vezes o Produto Interno Bruto brasileiro, mostra estudo da fintech Ebanx com base em dados públicos.

A análise aponta que o sistema de pagamento já é mais popular que o cartão de crédito e é usado por 93% da população adulta do país.

A estimativa é que o sistema atinja ainda neste ano 7,9 bilhões de transações por mês ainda neste ano e que o valor total movimentado por ano chegue a R$ 35,3 trilhões, um aumento de 34% em relação a 2024.

Os números que atestam o sucesso estrondoso do Pix e a onda de inovação brasileira que que ele representa levaram o Fundo Monetário Internacional (FMI) a oferecer uma vaga para Brandt na área de pagamentos e infraestruturas de mercados, onde ele atua desde agosto.

Fachada do prédio do FMI

Crédito, Reuters

Legenda da foto, Brandt trocou o BC pelo FMI em agosto

Pix como referência internacional

O FMI é uma organização global com 191 países, mais conhecido na América Latina pelos empréstimos com contrapartidas amargas, como cortes de gastos públicos, feitos no passado a países em apuros financeiros.

Mas ele também tem entre as atribuições oferecer assistência técnica aos membros e promover cooperação entre eles. E foi com essa perspectiva em mente que Brandt considerou a proposta interessante.

"A minha percepção foi de que eu poderia contribuir com outros países e numa escala global", diz ele à BBC News Brasil.

A ideia era usar o conhecimento acumulado com a experiência brasileira para ajudar a melhorar o sistema financeiro internacional — por exemplo, buscando soluções para simplificar a realização de pagamentos instantâneos entre países, assunto sobre o qual o brasileiro tem se debruçado desde que assumiu o novo trabalho.

Esse é um mundo labiríntico, com obstáculos que vão desde a operação com moedas diferentes até as particularidades da regulamentação financeira de cada país e questões de segurança internacional.

"Cada país tem sua legislação, mas também existem os padrões internacionais que todos têm que seguir. É um quebra cabeça um pouco mais complexo", ele ressalta.

Brandt tem observado de perto iniciativas como o projeto de interligação financeira dos 16 países da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC) e o Nexus, do Banco de Compensações Internacionais (BIS, na sigla em inglês), que propõe interligar sistemas de pagamentos de diversos países e permitir transações entre eles de forma instantânea.

O Nexus já foi apelidado de "Pix internacional" e está sendo implementado inicialmente em cinco nações asiáticas: Índia, Malásia, Filipinas, Singapura e Tailândia.

O objetivo, segundo ele, é "tentar apoiar na medida que for possível essa agenda de pagamentos entre países", para facilitar tanto as trocas entre pessoas quanto as trocas comerciais.

Nessa seara, também está incluída a nova fronteira das finanças globais, as chamadas Central Bank Digital Currencies (CBDC), ou moedas digitais dos Bancos Centrais, que estão sendo desenvolvidas em dezenas países com tecnologia semelhante à das criptomoedas com a promessa de simplificar ainda mais as transações financeiras.

Tela de celular com logo do Pix

Crédito, Marcello Casal Jr/Agência Brasil/Arquivo

Legenda da foto, Pix se tornou referência internacional de sistema de pagamento digital

Big techs vs. Pix

Os efeitos de iniciativas como essas seriam parecidos com os do Pix, mas em escala maior: redução de custo para consumidores, desburocratização, aumento de eficiência.

Em uma fala recente sobre as CBDCs, o diretor do departamento de mercados monetários e de capitais do FMI, Tobias Adrian, comentou que imigrantes que enviam dinheiro para a família em seus respectivos países hoje pagam tarifas altas às empresas que fazem remessas de recursos entre países, desembolsando em média 6,5% do valor enviado em taxas.

"Para fazer o sistema financeiro global dar certo, precisamos nos unir e fazer os pagamentos globais darem certo. Parte dos US$ 45 bilhões de dólares pagos anualmente aos provedores de remessas poderiam voltar para os bolsos dos pobres", afirmou na ocasião.

Como no exemplo citado pelo diretor do FMI, a simplificação do sistema global de pagamentos implica na perda de bilhões de dólares por quem hoje ganha com a intermediação financeira, como bancos e, mais recentemente, as grandes empresas de tecnologia.

Esse efeito é potencializado em um cenário de popularização do modelo brasileiro construído em torno do Pix, em que o Banco Central, e não uma empresa privada, desenvolveu, implantou e opera o sistema.

Essa é, aliás, uma das grandes particularidades do sistema de pagamentos brasileiro. Como apontou a BBC News Brasil em reportagem recente, o modelo adotado em países como a Índia, apesar do sucesso, também inspira preocupação.

No exemplo do UPI indiano, a participação de empresas privadas como operadoras do sistema acabou levando à concentração da etapa final da cadeia de pagamentos instantâneos nas mãos de multinacionais como Google e Walmart.

O modelo brasileiro, por outro lado, favoreceu o fortalecimento do mercado doméstico e garantiu autonomia ao país, objetivos que, como contou Brandt à reportagem, já estavam na perspectiva do Banco Central quando a equipe desenhou o Pix.

"Uma das coisas que norteou muito a definição do Banco Central como orquestrador foi a visão de que, para se alcançar um ecossistema de pagamentos que fosse realmente inclusivo, o mais apropriado seria ter um agente neutro", Brandt argumenta.

"E o agente neutro por excelência, no caso brasileiro, é o Banco Central, que é o regulador e não tem nenhum tipo de objetivo de lucro."

É um exemplo prático do que ficou conhecido como "infraestrutura pública digital", a ideia de que algumas soluções na área de tecnologia — como a digitalização da economia — são de interesse público e, por isso, não deveriam ser controladas pela iniciativa privada.

Em 2023, a Organização das Nações Unidas (ONU) lançou uma campanha para impulsionar a adoção dessa infraestrutura em diversos países.

O Brasil aderiu à iniciativa e compartilhou suas experiências, entre elas, a da nova carteira de identidade nacional (CIN), vinculada à plataforma gov.br, e da Rede Nacional de Dados de Saúde, que objetiva reunir e compartilhar os dados do setor de saúde em todo o país.

"O Pix entra como essa infraestrutura pública digital, ou seja, é um bem público de que a sociedade precisa e que não pode estar dependente de uma solução privada", diz Brandt.

"O Brasil é uma referência mundial, mas vários outros países também têm essa visão e incorporaram essa iniciativa [das infraestruturas públicas digitais]", comenta.

A ideia tem ganhado tração internacionalmente, mas parece não agradar o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.

O Pix recentemente entrou na mira do governo americano, que em julho o colocou na lista de assuntos que seriam investigados pelo Escritório do Representante Comercial dos Estados Unidos (USTR, na sigla em inglês) como prática comercial desleal.

Uma das razões apontadas para a investida seria o impacto do sistema de pagamentos brasileiro no bolso das big techs, as grandes empresas de tecnologia, que deixam de ganhar dinheiro por conta da forma como ele foi desenhado.

Questionado sobre o assunto pela reportagem, Brandt evita polêmicas e diz que, em sua visão, "as infraestruturas digitais públicas são um jogo de ganha-ganha".

"Porque, à medida que você tem um processo de digitalização da economia, você tem um processo de digitalização amplo, em diversos segmentos", ele argumenta, emendando que essa dinâmica também pode abrir novas oportunidades de negócios para as empresas de tecnologia.

Sobre a investigação contra o Pix, que ainda está em curso, o brasileiro afirma que "cada governo é livre para tentar identificar e formar sua convicção em relação a cada configuração" no setor de pagamentos.

E completa: "O que eu tenho a dizer é que o Banco Central do Brasil foi muito convicto naquilo que foi feito, sempre foi muito baseado em objetivos públicos que pudessem se traduzir em benefícios à sociedade brasileira".

'Laboratório global' de finanças digitais

O Pix é a ponta mais visível de uma grande rede de inovação na área de finanças digitais construída no decorrer da última década que acabou tornando o Brasil referência internacional no segmento de finanças digitais.

Em um relatório recente, o fundo de investimento em capital de risco Valor Capital Group, que atua nos EUA e na América Latina, se dedicou a analisar a experiência brasileira nesse sentido, destacando que "o Brasil oferece um exemplo concreto de como uma infraestrutura digital coordenada e inclusiva pode acelerar o progresso".

Referindo-se ao país como um "laboratório global de finanças digitais", o texto lista, além do Pix, iniciativas como o Open Finance, o sistema desenvolvido para permitir o compartilhamento seguro de dados financeiros de clientes entre diferentes instituições financeiras e o sistema unificado de identificação digital do governo federal, o gov.br.