pessoa passando por exame de ultrassom abdominal

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Há 23 minutos

Apesar do gesto histórico, especialistas alertam que a ação não deve voltar rapidamente à pauta, pois depende do presidente da Corte para ser retomada e do contexto político e até religioso dos ministros.

Na noite da última sexta-feira (17/10), Barroso registrou seu voto na ADPF 442 (uma ação usada no STF para avaliar se uma lei ou norma viola princípios constitucionais), argumentando que "ninguém é a favor do aborto em si" e que a discussão central não é ser contra ou a favor, mas decidir se "a mulher que passa por esse infortúnio deve ser presa".

Para o ministro, o aborto deve ser tratado como questão de saúde pública. Ele acrescentou ainda: "Ninguém duvide: se os homens engravidassem, aborto já não seria tratado como crime há muito tempo."

Mais cedo, Barroso havia solicitado formalmente que fosse aberto com urgência o julgamento virtual da ação, mas o processo foi suspenso logo após o voto, após pedido de destaque do ministro Gilmar Mendes, que transferiu a análise para o plenário físico — onde apenas os votos de ministros aposentados são aproveitados.

"Esse movimento de levar a discussão ao Plenário físico busca dar legitimidade para uma decisão sobre um tema tão delicado. Não há prazo para o julgamento", explica Clara Borges, professora do Departamento de Direito Penal e Processual Penal da UFPR.

Mesmo com o voto de Barroso registrado, isso não garante que a ação avance.

Pierpaolo Bottini, advogado e professor de Direito Penal da USP, lembra que quem decide o que será colocado em pauta é o presidente do STF — hoje Edson Fachin.

Desde que a ação foi protocolada pelo PSOL, em 2017, ela nunca foi julgada no plenário físico, refletindo a dificuldade histórica da Corte em avançar em temas polêmicos que envolvem direitos reprodutivos.

"Qualquer voto favorável à descriminalização do aborto é um passo importante. Tem um peso simbólico e dá ao Congresso Nacional um recado de que as conquistas na pauta dos direitos das mulheres avançam, mesmo diante de uma maioria masculina e conservadora que ameaça esses direitos", afirma Borges.

Ela avalia que, para grande parte da sociedade, a questão não é apoiar o aborto, mas evitar que mulheres sejam presas por interromper uma gestação que não é desejada, geralmente por limitações físicas, emocionais ou financeiras.

No entanto, o tema continua polarizado. Quem se opõe à descriminalização argumenta que o direito à vida do embrião começa na concepção e sobrepõe-se à autonomia corporal da mulher.

No STF, ministros como Kássio Nunes Marques e André Mendonça já se declararam contra a ampliação do acesso ao aborto, defendendo que as três hipóteses atualmente permitidas no país são suficientes.

Especialistas lembram que, historicamente, o debate sobre aborto no Brasil é marcado por tensões entre direitos individuais e influências religiosas, com decisões do STF muitas vezes refletindo a complexa composição ideológica da Corte.

"Não há como saber se temos um ambiente institucional favorável para que o STF retome o julgamento. Trata-se de um tema que afronta crenças religiosas e morais. A discussão será apertada e o resultado é imprevisível — não haverá unanimidade", diz Borges.

Ela destaca ainda que, apesar da laicidade do Estado brasileiro, ministros com crenças religiosas mais ortodoxas tendem a se posicionar contra a descriminalização, enquanto movimentos sociais religiosos, como as Católicas pelo Direito de Decidir, são exceções favoráveis.

A descriminalização do aborto é rejeitada por 75% dos brasileiros, segundo pesquisa Ipsos-Ipec de julho de 2025, enquanto 16% apoiam. Em comparação com outros países da América Latina, o Brasil segue com uma das legislações mais restritivas sobre o tema, o que coloca o país em destaque nas discussões internacionais sobre direitos reprodutivos.

Com os votos de Barroso e da ex-ministra Rosa Weber, que também deixou registrado seu voto favorável antes de se aposentar em 2023, já são dois votos no STF a favor da descriminalização, embora a ação continue sem previsão de julgamento.

mulher com teste de gravidez positivo encostado em sua barriga

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Legenda da foto, No Brasil, atualmente o aborto é permitido apenas em casos de risco de vida da gestante, gravidez por estupro ou fetos anencéfalos

Outras ações sobre aborto

O voto de Barroso atendia à expectativa de 61 entidades e mais de 200 pessoas que enviaram uma carta ao gabinete do ministro na quarta-feira (15/10), pedindo que ele registrasse seu voto na ADPF 442 e em outras duas ações relacionadas ao aborto. Na noite de sexta-feira, o ministro votou favoravelmente, com liminar, em todas essas ações.

A ADPF 1207 prevê que outros profissionais de saúde, como enfermeiros e técnicos de enfermagem, possam participar de procedimentos de aborto legal, medida aprovada por Barroso em caráter cautelar. Já a ADPF 989 solicita que o STF crie mecanismos para assegurar o direito à interrupção da gestação nas hipóteses já permitidas pelo Código Penal (risco à vida da gestante e gravidez por estupro) e em casos de fetos anencéfalos. A liminar determina que órgãos públicos de saúde não podem dificultar a realização do aborto legal.

Barroso já havia atuado como advogado, em 2012, na ação que liberou o aborto em casos de anencefalia, e desde então defende a descriminalização do aborto. Em seminário no STJ, em 2017, disse que a criminalização "viola a autonomia e a igualdade, porque se os homens engravidassem isso já teria sido resolvido há muito tempo". No ano seguinte, em palestra no Congresso Internacional de Direito e Gênero, no FGV, reforçou que a discussão deve ser tratada pelo Judiciário, não pelo Legislativo, afirmando: "A mulher não é um útero a serviço da sociedade. Se os homens engravidassem, esse problema já teria sido resolvido."

A expectativa pelo voto de Barroso nos últimos dias era alta.

"Estamos em contagem regressiva para o último dia do ministro Barroso no STF", disse à BBC News Brasil a antropóloga Débora Diniz, pesquisadora da UnB e referência internacional na defesa dos direitos das mulheres.

Ela destacou que a história política recente da Corte atravessou grandes questões constitucionais que ele esperava enfrentar, como essas ações sobre aborto.

Antes do voto, Mauricio Dieter, professor de criminologia da USP e advogado na ação pela descriminalização do aborto, avaliava que Barroso provavelmente se manifestaria favoravelmente aos direitos reprodutivos das mulheres, coerente com sua atuação e ideologia. Apesar disso, o ministro também reconheceu que o país não está totalmente preparado para o debate, afirmando que a pauta não deve ser julgada proximamente, mas que o tema não pode ser adiado indefinidamente e que a decisão poderia ser apertada.

*Com reportagem de Marina Rossi