
Crédito, Arquivo pessoal
- Author, Julia Braun
- Role, Da BBC News Brasil em Londres
- X, @juliatbraun
Há 10 minutos
Na semana passada, o caso do menino brasileiro de 9 anos que teve dois dedos mutilados durante um episódio de bullying em Portugal chocou o país. De acordo com o relato feito por José à família, o ferimento ocorreu quando outras crianças o trancaram no banheiro e fecharam a porta em sua mão.
Em entrevista à BBC News Brasil, Nívia Estevam, mãe de José, conta que o incidente que mutilou os dedos do filho não foi o primeiro de bullying relatado pelo menino, e que ela procurou diversas vezes a escola em Cinfães, no norte do país, para alertar sobre o problema: "A minha sensação é de muita impunidade e descaso. Eu expus o caso na internet em um ato de socorro".
Outras duas famílias brasileiras também denunciaram um padrão que inclui agressões, estigmatização por nacionalidade, racismo e negligência em diferentes regiões de Portugal.
"Por conta de tudo que o meu filho passou, ele tem muita dificuldade para dormir e tem que tomar medicamento", diz Michelly Soares, que trocou o filho Miguel de escola após ele ser vítima de perseguição por colegas portugueses e ser insultado com palavras xenofóbicas por uma das mães.
Em um dos episódios de bullying, o menino também teve os dedos da mão presos na porta do banheiro, mas que por sorte não resultou em ferimentos graves. "Tive vontade de pegar meu filho, colocar numa caixinha e nunca mais mandar ele para a escola", desabafa. "Eu me senti uma inútil por não poder proteger mais ele."
Outra mãe conta que o filho quebrou a clavícula após ser empurrado. "Atravessei um oceano para dar uma vida melhor para ele e me frustrei", diz ela, que decidiu mandar o filho de volta para o Brasil para viver com o pai após repetidas agressões e falta de apoio da escola.
"Achava que Portugal era um país muito mais desenvolvido, onde meu filho receberia mais assistência. Mas não, eu percebi que lá no Brasil ele estava muito mais bem assistido".
"Ele gostava de ir para escola no Brasil. E aqui foi um completo pesadelo para ele já nos primeiros meses."
O Ministério da Educação, Ciência e Inovação de Portugal foi contactado pela reportagem para prestar esclarecimentos sobre os casos relatados, mas não respondeu ao pedido de comentário até o momento da publicação.
'Como assim o dedo dele não estava no lugar?'
Os três casos reunidos pela reportagem envolvem meninos brasileiros entre 7 e 9 anos na época dos ocorridos. Dois deles são negros.
"Nós tínhamos acabado de chegar na cidade, somos imigrantes, somos brasileiros, e o meu filho é gordo e preto", diz Nívia, que atribui a forma como José foi tratado pelos colegas e pela própria escola ao preconceito e à xenofobia.
Mãe e filho se mudaram para Portugal em 2017 e 2018, respectivamente. Ao lado do padrasto do menino, eles se fixaram na cidade de Cinfães, no distrito de Viseu, no começo deste ano. Lá, José começou a cursar o 4º ano da Escola Básica de Fonte Coberta.
Em pouco tempo, diz Nívia, começaram os relatos de puxões de cabelo e pontapés.
No dia 5 de novembro, o menino chegou em casa com um hematoma no pescoço e disse que havia sofrido uma tentativa de enforcamento por um colega.
A mãe procurou uma professora em busca de uma solução, mas afirma não ter recebido resposta satisfatória.
"Ela me disse que procuraria os responsáveis dos alunos envolvidos, mas depois descobrimos que ela nunca repassou as informações", diz.
O episódio mais grave aconteceu em 10 de novembro. Nívia recebeu uma ligação da escola e quando chegou ao local encontrou o filho chorando, com a mãe enfaixada e as roupas ensanguentadas.
Ainda sem entender exatamente o que havia acontecido, ela entrou em uma ambulância com o filho para serem transportados ao hospital mais próximo. Foi apenas no caminho que ela entendeu a gravidade dos ferimentos.
Nívia conta que o bombeiro colocou uma embalagem em sua mão e pediu que ela levasse até o médico. Quando perguntou o que era, ouviu que era uma das pontas do dedo do seu filho. "Eu fiquei em choque. Como assim o dedo dele não estava no lugar?".
No hospital, José passou por três horas de cirurgia, mas não foi possível reconstituir as pontas dos dois dedos amputados.
Apenas após acordar, o menino conseguiu relatar à família o que havia acontecido.
Segundo José, duas crianças o encurralaram no banheiro e fecharam a porta de uma das cabines em sua mão. Preso, ele teve que passar pelo vão abaixo da porta para pedir socorro.
Quando chegou à escola para socorrer o filho, Nívia encontrou o local do incidente já limpo, sem nenhum sinal de sangue.
Segundo ela, os funcionários da escola afirmaram que os alunos estavam apenas brincando quando tudo aconteceu e que José não havia sangrado muito. A mãe disse não saber a nacionalidade das crianças que agrediram o filho.
"Eu não consigo explicação quando as pessoas me perguntam: 'Você acha que isso foi xenofobia, foi racismo?' Eu não consigo outra explicação", diz ela, que afirma que o caso foi minimizado pelos professores.

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Nívia está grávida e tem dupla cidadania brasileira e portuguesa. Ela está no processo para que José também se torne cidadão de Portugal.
"O país também é meu, porque eu também sou portuguesa. Mas nós nunca vamos ser bem-vindos aqui", lamenta.
Com receio após a repercussão do caso, a família decidiu se mudar de casa e de cidade. Ela agora considera voltar a morar no Brasil. "Eu quero me sentir em casa. Não quero me sentir coagida, sabe?"
José, que completou 10 anos na última quinta-feira (20/11), está recebendo ajuda psicológica voluntária de pessoas que se solidarizaram com o caso. A família também recebeu a assistência jurídica de um grupo de advogados, que acionou o Ministério Público.
A Inspeção-Geral da Educação confirmou a abertura de um processo formal para apurar o que aconteceu no dia 10 de novembro. O Agrupamento de Escolas de Souselo, do qual a escola em que José estudava faz parte, também instaurou um inquérito interno.
O departamento de educação do município de Cinfães e o agrupamento não responderam aos pedidos de comentário enviados pela reportagem.
'Prefiro viver na pobreza no Brasil'
Em Mira, no centro do país, Michelly relata que seu filho Miguel, hoje com 9 anos, sofreu agressões físicas, também foi trancado no banheiro por colegas e chegou a ter o rosto apertado pela professora.
O menino, que recebeu um diagnóstico de Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) no Brasil, estava no 2º ano da Escola Básica de Portomar quando os fatos aconteceram.
A criança tem cicatrizes nos braços que foram consequência, segundo a mãe, de um empurrão que o fez cair em uma cerca.
Michelly também foi chamada a escola depois que Miguel machucou os dedos da mão. Segundo o relato da criança, os colegas tentaram prendê-lo no banheiro e acabaram prendendo sua mão na porta.
"No centro de saúde, o médico falou: 'Mãe, foi por pouco'. Foi por pouco porque pegou no ossinho dele, mas não quebrou", conta a brasileira que vive deixou Natal, no Rio Grande no Norte, para viver em Portugal em 2022.
O episódio mais traumático, porém, envolveu outras mães portuguesas. Numa apresentação escolar, uma delas se aproximou de Miguel e sussurrou: "Volta para a tua terra".
Quando Michelly tentou tirar satisfação sobre o ocorrido, ela afirma que outros pais se juntaram para apoiar a agressora e repetiram os insultos xenofóbicos para mãe e filho.
"A professora estava do meu lado, eu olhei para ela pedindo socorro, para me tirar dali, mas em nenhum momento fez nada", conta, chorando.

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Ainda segundo a mãe, os funcionários da escola nunca prestaram a assistência que Miguel necessitava e não sabiam lidar com o transtorno diagnosticado.
O menino diz ter passado a maior parte do ano letivo isolado, sendo repetidamente retirado da sala para "não atrapalhar os colegas". Em vez de acompanhar aulas, ele era enviado para ajudar os auxiliares em atividades da escola, afirma a mãe.
Um dia, a criança chegou em casa com um arranhão na bochecha, que disse ter sido causado pela própria professora.
"Quando eu vi perguntei o que tinha acontecido e ele falou que a professora apertou a bochecha dele para ele parar de conversar e tirar a atenção dos outros alunos", relata Michelly.
"Mandei mensagem para a professora na hora e ela me pediu desculpa. Disse 'Me desculpa, mas eu tô sem paciência com o Miguel'."
Segundo a brasileira, esse foi o episódio que a fez querer parar de mandar o filho para escola. "Eu me senti uma inútil, porque eu não fiz nada. Eu não pude proteger ele", diz a mãe, se culpando.
O impacto emocional também levou o menino a pedir para voltar ao Brasil. A mãe ainda considera a possibilidade de se mudar novamente, mas diz que por enquanto vai insistir no sonho português.
"Por eles eu abri mão de muita coisa e vim para cá. Mas por eles eu volto também, sem pensar duas vezes", diz sobre Miguel e o filho mais novo, de 4 anos.
"É difícil a nossa vida lá [no Brasil]? É difícil, mas lá ele não sofreu o que ele sofreu aqui. [...] Vim para Portugal para dar uma qualidade de vida melhor para eles. Mas eu prefiro viver na pobreza lá do que ver meu filho passando por tudo isso de novo."
Desde o ano passado, Miguel estuda em outra escola em Mira e faz acompanhamento psicológico particular. A mãe o matriculou em um treino de futebol, que diz estar ajudando na sua adaptação ao novo país.
"Quando vi a reportagem sobre o que aconteceu com o José, foi a mesma coisa de ver meu filho", diz Michelly emocionada. "Eu queria abraçar aquele menino, abraçar aquela mãe, para falar que ela não está sozinha."
"Eu achava que era uma situação que só tinha acontecido comigo, eu não sabia que tinha mais casos desse".
A reportagem procurou a Escola Básica de Portomar e o Agrupamento de Escolas de Mira para esclarecimentos, mas não obteve resposta.
'País não está preparado para receber uma criança imigrante'
*Mariana também acreditava que a mudança para Portugal representaria uma vida melhor para o filho, Lucas*. Mas em poucos meses, os relatos de agressão trazidos pelo menino da escola a fizeram desistir da ideia a ponto de enviar a criança de volta para o Brasil, para viver com o pai.
*Os nomes foram alterados pela reportagem, por motivos de segurança não relacionados aos episódios de bullying.
Eles se instalaram em uma cidade próxima a Lisboa, onde passaram a viver com a mãe de Mariana, que já morava em Portugal. Lucas foi matriculado no 1º ano da Escola Básica (corresponde ao Ensino Fundamental no Brasil). Com o tempo, o menino passou a relatar perseguições de colegas.
A mãe diz que os episódios envolviam sempre os mesmos alunos portugueses. Lucas é negro e Mariana afirma que esse foi um marcador para o preconceito: "Foi dali que começou com o meu filho", contou.
Ela lembra que, no grupo de pais da escola, crianças eram frequentemente identificadas não pelos nomes, mas pelas nacionalidades: "a venezuelana", "o indiano", "o brasileiro".

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O momento crítico veio quando Lucas fraturou a clavícula. Segundo ele, um colega o empurrou. Nas semanas após o incidente, o menino precisou de auxílio da família para se levantar da cama, ir ao banheiro e comer.
"Na escola ninguém me explicou nada direito. Falaram: 'Foi só brincadeira de criança.' A palavra-chave deles para isso é brincadeira de criança", queixa-se a mãe.
Mariana chegou a procurar os pais dos alunos responsáveis pelas agressões, mas suas alegações foram descartadas. Segundo ela, todas as crianças envolvidas nos episódios de bullying eram portuguesas.
Quando o menino finalmente retornou à escola, a situação continuou, com insultos e palavrões vindos dos colegas. "Eu passei semanas indo na porta da escola, pedindo uma reunião com a professora ou com a diretora, e ninguém me atendia", relata a mãe.
Quando finalmente foi atendida, Mariana diz ter ouvido de uma professora que o próprio filho seria culpado pelo que vivia: era "calado demais", "não se enturmava" e "não dava abertura para os colegas". Segundo ela, a educadora sugeriu que a família procurasse diagnóstico para um possível transtorno do espectro autista.
Temendo danos irreversíveis à saúde emocional do menino — que passou a falar em "muita raiva" —, Mariana e o pai de Lucas decidiram enviá-lo de volta ao Brasil. A mãe diz que tomou a decisão também por preocupação com o futuro do filho em um país que não o aceita como ele é.
"Eu sabia que a minha vida não ia ser fácil como imigrante, mas eu pensei que enquanto eu tivesse trabalhando para conquistar um futuro para o meu filho, ele estaria seguro na escola", diz. "O país não está preparado para receber uma criança imigrante."

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Hoje Lucas foi reintroduzido na antiga escola e, segundo a família, está melhor. Mas Juliana lamenta a distância do filho.
"Quando aqui para mim é horário do almoço, ele está acabando de acordar [no Brasil]. Eu consigo falar com ele por volta de 1 hora por dia", conta.
"Eu consigo mandar dinheiro, prover brinquedos, mas estou perdendo muitos momentos. Perdi ele nadando pela primeira vez sem boia, perdi ele andando de bicicleta. Qualquer mãe quer passar por isso do lado do filho".
A BBC Brasil procurou a escola e o departamento de Educação responsável pelo ensino na região onde Lucas morava.
Em nota, subdiretora do agrupamento afirmou que a encarregada de educação do aluno envolvido era a sua avó, e não a mãe, "que poderá não estar na posse de todas as informações relativas ao processo educativo do seu filho".
"No decorrer do ano em que o aluno esteve na nossa escola, não houve qualquer registo de bullying ou xenofobia", disse ainda, acrescentando que o episódio que levou à fratura da clavícula de Lucas foi um acidente, que "ocorreu num brinquedo, sem interferência de qualquer outro aluno, conforme os registos arquivados".
Problema não é novidade
Helena Schmitz, da associação Diáspora, afirma que relatos de violência e bullying envolvendo crianças imigrantes em escolas portuguesas não são novidade para quem trabalha no movimento associativo.
A especialista destaca que o maior problema é a negação por parte das instituições: não reconhecer que há um problema de xenofobia impede qualquer ação efetiva, diz.
E segundo Schmitz, muitos imigrantes se tornam ainda mais afetados diante do contexto de vulnerabilidade. "Muitas famílias ficam sem respostas e sem compreender como é que se dá o processo, tanto de registro, mas também como de investigação e responsabilização [pelos atos]", diz.
Tudo isso em um contexto de crescente sentimento anti-imigração. Para Inês Freire de Andrade, presidente da organização No Bully Portugal, o que acontece nas escolas é um reflexo da sociedade portuguesa como um todo.
"As crianças estão repetindo comportamentos que vem dos pais ou de outras pessoas adultas", aponta.
"Essas violências não estão descoladas de um contexto social e político português marcado pelo aumento da direita populista que diz quem deve ou não viver nesse país, quem pode ou não ser monitorado, quem tem direito ou não de circular na rua sem ter os seus documentos verificados, quem fala ou não corretamente um idioma", diz ainda Helena Schmitz, da associação Diáspora
Segundo relatório do Conselho Europeu, em 2023 foram registradas 347 queixas por crimes de ódio e incitação à violência em Portugal — mais de cinco vezes o número de 2018, quando haviam sido contabilizadas 63.
Uma pesquisa realizada pela Fundação Francisco Manuel dos Santos mostrou ainda que cinco em cada 10 portugueses — 51% — dizem que a presença de brasileiros em Portugal deve diminuir, ainda que reconhecem a importância econômica dos imigrantes para o país
A rejeição aos brasileiros só é menor do que a demonstrada em relação a cidadãos do subcontinente indiano (Índia, Paquistão, Nepal e Bangladesh), que chegou a 60,8%.
A comunidade brasileira é a maior entre os estrangeiros que residem em território português: são mais de 510 mil brasileiros vivendo no país atualmente, segundo o Ministério das Relações Exteriores do Brasil.

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Não há pesquisas que meçam o impacto da rejeição e da xenofobia nas escolas portuguesas.
Sabe-se, porém, que a violência e os crimes estão aumentando nas escolas portuguesas. Segundo dados do Programa Escola Segura (PES), da Polícia de Segurança Pública (PSP), o total de ocorrências registadas subiu de 3.824 no ano letivo de 2022/23, para 4.107 em 2023/24 – um aumento de 7,4%.
Para as especialistas ouvidas pela BBC Brasil, a falta de dados específicos evidencia a seriedade do problema e quanto o país ainda precisa avançar sobre o tema. Elas também apontam para o problema da precarização enfrentada por muitos profissionais da educação em Portugal, com falta de formação adequada para lidar com diversidade, conflitos e discriminação.
Inês Freire de Andrade explica que não existe em Portugal uma legislação específica ou orientação geral sobre como lidar com crimes de bullying. As escolas do país são incentivadas a participar de um programa ligado à Direção-Geral da Educação, que oferece atividades e ferramentas para prevenção do bullying, mas que não é obrigatório.
A presidente da organização No Bully Portugal afirma, porém, que famílias cujos filhos estejam enfrentando bullying ou agressões de qualquer tipo na escola devem sempre dar apoio à criança em casa e contactar a escola, de preferência por e-mail, para que haja registros escritos dos ocorridos. Em casos mais graves, pode-se fazer queixa à polícia ou ao Ministério Público.
Arte por Caroline Souza, da Equipe de Jornalismo visual da BBC News Brasil

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