Soldados ucranianos em uniforme de batalha completo, sentados sobre um canhão em um campo lamacento

Crédito, Reuters

Legenda da foto, Parte dos soldados se resignou às propostas, mas muitos estão irritados e seguem questionando o plano apresentado pelos Estados Unidos
    • Author, Jonathan Beale, Anastasiia Levchenko e Volodymyr Lozhko
    • Role, De Kiev para a BBC News
  • Há 7 minutos

A BBC conversou com meia dúzia de soldados, que enviaram suas opiniões pelas redes sociais e por e-mail, em resposta ao plano americano original, cujos detalhes vazaram na semana passada.

Desde então, negociadores americanos e ucranianos vêm discutindo alterações das propostas e devem prosseguir com as conversações sobre a "estrutura da paz".

Sobre o plano americano original, o soldado Yaroslav, no leste da Ucrânia, afirma que é "péssimo... ninguém irá apoiar".

Já um médico do Exército com codinome Shtutser rejeitou o plano como uma "proposta absolutamente vergonhosa de um plano de paz, que não merece nossa atenção".

Mas um soldado, com codinome Snake, declarou que "está na hora de concordarmos, pelo menos, em alguma coisa".

Aqui estão as diferentes opiniões dos soldados que conversaram com a BBC sobre os principais pontos do plano de paz proposto pelos Estados Unidos para a guerra entre a Rússia e a Ucrânia.

Entregar território

Os Estados Unidos apresentaram uma proposta de paz em um momento em que a Rússia fez avanços significativos no campo de batalha. Só no mês passado, a Ucrânia perdeu para a Rússia 450 km² de terras.

Kiev ainda controla cerca de 15% da região de Donbas, no leste da Ucrânia, que engloba os oblasts (divisões administrativas) de Luhansk e Donetsk e forma um dos principais objetivos de guerra da Rússia.

Mas o plano americano original propõe que a Ucrânia entregue toda a região, incluindo até as partes defendidas com sucesso em cerca de quatro anos de guerra.

"Deixe que eles peguem", declarou Snake à BBC.

"Praticamente não sobrou ninguém nas cidades e aldeias... Não estamos lutando pelas pessoas, mas pela terra, enquanto perdemos mais pessoas."

Andrii é oficial do Estado-maior da Ucrânia. Para ele, o que está sendo proposto para Luhansk e Donetsk é "difícil e doloroso", mas ele indica que o país pode não ter outra opção.

Mapa mostrando as áreas de controle militar russo na Ucrânia

A Ucrânia vem defendendo a região desde 2014, quando a Rússia anexou a Crimeia e seus aliados conquistaram partes de Donbas.

"Podemos não querer entregar a região, mas não conseguiremos mantê-la com recursos e força militar", explica Andrii.

O leste da Ucrânia foi o cenário dos combates mais intensos desta guerra e a Ucrânia perdeu dezenas de milhares de soldados na sua defesa.

Matros luta desde 2018. Ele nos disse que entregar Donbas "anularia tudo — todos os esforços das forças armadas".

"Isso desconsidera as vidas dos soldados e civis mortos", segundo ele.

Reduzir o contingente militar ucraniano

O plano de paz proposto pelos Estados Unidos prevê reduzir o tamanho das forças armadas da Ucrânia para 600 mil soldados.

Este número ainda é significativamente maior do que antes da invasão, quando o número de soldados em tempo integral era de cerca de 250 mil. Mas é menor que o seu tamanho atual.

As estimativas mais recentes indicam que o contingente militar ucraniano, atualmente, é de mais de 800 mil soldados.

Snake acredita que o país precisará de muitos dos soldados atuais para ajudar a reconstruir a Ucrânia após o fim da guerra.

"De que adianta ter tantas pessoas no Exército, se haverá garantias de segurança?", questiona ele.

Andrii concorda. Para ele, "se houver garantias de segurança, é claro que não há razão para manter um exército tão grande".

"As pessoas estão cansadas e querem retornar para suas famílias. Não há motivo para mantê-los em um exército em tempo de paz após a guerra."

Ele acredita que a economia da Ucrânia seria incapaz de sustentar esse grande contingente militar em tempos de paz.

Soldados ucranianos em uniforme completo de batalha, sentados sobre um canhão em um campo enlameado

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Acredita-se que as forças armadas ucranianas contem hoje com mais de 800 mil soldados

Já Shtutser, o médico do Exército, discorda. Para ele, o Exército ucraniano "é só o que nos separa da derrota e da escravidão".

Matros considera que a proposta de reduzir o contingente militar do país é "absurda e manipuladora".

Garantias de segurança

A disposição da Ucrânia de concordar com as propostas dependerá das suas futuras garantias de segurança.

O plano de paz dos Estados Unidos descarta a entrada da Ucrânia na Otan, mas não na União Europeia.

Existe a promessa de garantias de segurança dos Estados Unidos se a Rússia atacar novamente, mas as propostas não detalham o alcance desse apoio. O plano também descarta a presença de forças da Otan na Ucrânia, em caso de acordo.

Mas Yevhen, operador de drones no leste da Ucrânia, acredita que a presença de tropas estrangeiras no país é uma importante garantia da segurança.

O Reino Unido e a França vêm liderando os esforços para fornecer uma "força de garantia" no caso de cessar-fogo, através de uma "coalizão dos dispostos".

"Gosto do plano britânico de colocar tropas na Ucrânia" através da coalizão, afirma ele. "Este é o único plano que nos ajudará a vencer: introduzir tropas aliadas."

Homem de óculos vestindo terno azul, camisa branca e gravata roxa toca no ombro de um homem de barba, de camisa e casaco preto, na entrada de uma casa

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Legenda da foto, O Reino Unido é um dos países que planejam enviar forças militares para a Ucrânia, no caso de haver um cessar-fogo

Mas Andrii não acredita que a Europa possa oferecer muitas garantias de segurança.

"A Europa se mostrou totalmente covarde e dividida", segundo ele. "Parece que toda a esperança está apenas nos Estados Unidos."

Já outros soldados indicam não terem também muita fé nos Estados Unidos. Para Schtutser, por exemplo, "as garantias de segurança americanas com o governo atual não representam nenhuma garantia".

Novas eleições

O plano de paz proposto pelos Estados Unidos dispõe que a Ucrânia realize novas eleições em até 100 dias após o final do conflito. A Constituição ucraniana impede a realização de eleições em tempos de guerra.

O Escritório Nacional Anticorrupção da Ucrânia investiga atualmente acusações de indivíduos que lucraram com contratos no setor de energia, em valores que somam US$ 100 milhões (cerca de R$ 540 milhões).

O presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, já foi obrigado a demitir dois dos seus ministros, que negam as acusações. Um ex-primeiro-ministro e um parceiro comercial também estão sob investigação.

O escândalo gerou conflitos políticos internos, vem dominando as manchetes no país e é outro tema importante no front de batalha.

Os soldados com quem conversamos apoiam as novas eleições.

"É claro que são necessárias", afirma Snake. "Os que estão agora no poder não são confiáveis."

A soldada Marin também é a favor das eleições. Para ela, é "preciso eliminar a corrupção" do governo atual.

Já Andrii concorda que "é necessária uma reinicialização completa do governo" com novas eleições, mas não imediatamente.

As novas eleições podem muito bem ser a proposta menos controversa do plano de paz. Mas, de forma geral, existem sérias preocupações em relação às propostas americanas.

Yaroslav afirma que simplesmente "não irá funcionar", enquanto Oleksandr rejeita a proposta com um palavrão.

A mensagem clara das pessoas com quem conversamos é que muitas delas estão cansadas de lutar. Andrii, por exemplo, está preocupado com algumas das propostas, mas conclui: "Se puser fim à guerra, está bom para mim".