Em 2023, a Anistia Internacional Brasil listou as 32 principais violações de direitos humanos cometidas pelo desgoverno do ex-presidente —e agora presidiário— Jair Bolsonaro.
Entre elas, destacam-se:
- as declarações que minimizaram o impacto da pandemia e deslegitimaram medidas de prevenção à covida-19;
- as sucessivas trocas de ministros da Saúde e da Educação, que resultaram em ações erráticas e ineficientes;
- a demora na compra e distribuição de vacinas;
- o descaso com a população indígena;
- a violação do direito das crianças à educação sexual;
- a negligência com a população carcerária na pandemia, marcada pela falta de testagem e quase inexistência de tratamento;
- os discursos de ódio, amplamente disseminados nas redes, que incentivaram práticas machistas, homofóbicas e misóginas em todo o país;
- o desmonte de órgãos de proteção ambiental, como o Ibama e o ICMBio.
Entre outras atrocidades, das quais ainda sofremos as consequências...
É sobre o impacto desses crimes que gostaria de falar. Não sem alguma decepção: a gente esperava transformações e repúdio quando tudo isso viesse à tona.
A revisão política e social foi menos radical e mais gradual do que se esperava.
Mesmo diante de situações de afronta explícita, como a chantagem do governo americano com altas taxas de importação, persiste uma espécie de complacência moral. E essa passividade revela a surpreendente força do autoritarismo.
Freud falava da "complacência somática", a predisposição de um órgão antes de receber a libido das fantasias recalcadas. Ou seja, antes da verdadeira conversão, temos um evento corporal real e muitas vezes traumático que prepara o terreno para que aquela parte do corpo vire destino preferencial de um novo sintoma.
Em outras palavras, o trauma não nos imuniza contra novas violações. Ao contrário, pode nos tornar mais vulneráveis a elas.
Vemos isso na necropolítica, onde tecnologias de morte são testadas, sempre em regiões periféricas, e expandem os limites para o intolerável.
Esse laboratório de baixo custo político aconteceu no extermínio armênio, no genocídio de Ruanda e nos "currais" no Brasil, quando milhares de cearenses foram submetidos a trabalho forçado e exaustivo em nome da política Varga contra a seca.
O massacre de quase 40 mil pessoas da Namíbia, colônia alemã no leste da África, na década de 1930, funcionou como ensaio para os campos de extermínio nazistas.
Por que tantas experiências historicamente traumáticas, cujo consenso é de que "jamais deve se repetir", continuam como se fossem inéditas?
É como se entrassem na "zona branca da lei" — expressão inspirada na série argentina O Eternauta —, em que a lei torna-se indiferente e impotente diante da tentação da violência.
O paradoxo das leis universais
Foram as atrocidades da Segunda Guerra que pautaram a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que fundamentou as Nações Unidas e deu origem a uma série de acordos. Mas seu universalismo já foi alvo de críticas sistemáticas, primeiro por parte dos países socialistas e, posteriormente, das teocracias islâmicas.
Chegamos, assim, a uma espécie de patologia da universalização cultural. A proteção jurídica criada para evitar um trauma acaba, paradoxalmente, servindo para repeti-lo. Isso mostra como a violência política pode se tornar invisível, mesmo em regimes democráticos.
É como se as discussões sobre direitos sempre esbarrasse no mesmo obstáculo: a relação entre o universal e seus casos particulares. Se o universal não tem força de coerção sobre quem o nega, é fraco e pouco transformador. Mas se é uniforme e invisível, temos uma corrupção inversa.
François Julien comparou diferentes versões da Declaração dos Direitos do Homem, produzidas entre 1789 e 1946-1948, e identificou nelas o mesmo tipo de paradoxo.
Enrique Dussel identificou esse problema em seus últimos escritos: a filosofia da libertação tem premissas corretas, mas de consequências potencialmente desastrosas:
- Política da incomensurabilidade entre discursos e culturas: diz que que os sofrimentos são únicos e incomparáveis, e que só quem os vive pode falar sobre eles, sem substituição possível.
- Política da comunicabilidade universal possível: que aparece na formalização dos direitos humanos, diz que é preciso negar as particularidades das pessoas para ter um corpo político.
Juntas, essas políticas fazem a liberdade do primeiro caso parecer uma exceção, e não parte da lógica do liberalismo econômico — a "moralidade egoísta" de Adam Smith. O efeito colateral é o ressentimento: a percepção de que o capitalismo apenas troca o "menos sofrimento" de alguns pelo "mais sofrimento" de todos, algo facilmente manipulável.
Já a liberdade genérica do segundo caso projeta uma democracia plena que nunca existiu, e a promessa de que ela surgirá com novos casos de proteção jurídica soa falsa, gerando indignação com leis lentas e impotentes, além do desejo por uma democracia mais direta. É a oportunidade para a tirania e o populismo personalista.
Um caso bem-sucedido de combinação entre os dois pontos foi a revolução haitiana de 1801. Após expulsar os franceses, a colônia de São Domingos declarou-se livre da escravidão e, por meio de uma constituição extremamente original, determinou que apenas negros poderiam ser proprietários de terras.
Mas, soldados alemães e poloneses contratados como mercenários pelo exército de Napoleão depuseram as armas e se juntaram às forças haitianas na guerra da independência. Como reconhecimento, a constituição teve um adendo inusitado: eles seriam considerados, juridicamente, negros.
De um lado, incluir e dar voz aos invisíveis, desmontando culturas eurocêntricas (sociologia das ausências). Do outro, transformar insurreições e lutas sociais em modelos de mudança para o anti-colonialismo, anti-capitalismo e anti-patriarcado (sociologia das emergências).
O ódio ao universal e a política da chantagem
Esse paradoxo dos direitos humanos ajuda a entender a mudança da expressão "sul global", que substituiu "terceiro mundo" (da Guerra Fria), "desenvolvimento" (do capitalismo liberal) e "periferia" (da tradição crítica).
A marca do capitalismo neoliberal chantagista é oferecer benefícios protetivos parciais em troca da tolerância a violações dos direitos e intensificar a insatisfação com os sistemas responsáveis por sua execução.
As redes de proteção sob o neoliberalismo conciliador oscilam entre dois polos. De um lado, inclusão escolar sem mediação, cotas sem políticas de permanência, saúde mental sem recursos e saúde geral meramente nominal. Do outro, o brutalismo político, com Gaza como paradigma — parte do sul global, mesmo acima da linha do equador.
Nessa aplicação desigual da lei, surge o ódio ao universal como afeto fundamental.
Chantagem não é extorsão, barganha ou mentira. Ela opera "dentro da lei", combinando o moralmente aceitável ainda que antiético. Sua eficácia depende de quem tem algo a perder, e nos acostumamos com negociações desiguais.
Nas lutas por direitos humanos, a defesa do social e da lei formal é limitada, enquanto a chantagem avança. O centrão, o Trump e as perdas de direitos dos trabalhadores, a apropriação dos "direitos humanos" pelos neoconservadores mostram isso.
Gradualmente estamos descriminalizando a chantagem.
Superar isso exige sobrepor o universal formal ao consenso empírico. Mas como distinguir um verdadeiro universal de um falso?
Nossa hipótese inicial é que o universal hoje está mais para uniforme, que, em vez de aceitar a polifonia desejante e democrática, propõe uma espécie ruim de esperanto que amarra a todos.
Gaza é o ponto máximo desse laboratório mundial da chantagem política. Foi assim que Netanyahu e o Likud se mantiveram no poder. A ameaça real de Hamas, Hezbollah e Irã é manipulada para justificar o genocídio, a ocupação e os ataques a outros países.
É o ponto de virada que temos que criar no horizonte.
Opinião
Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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4 meses atrás
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