René Shevan sorri para foto

Legenda da foto, René diz que agora está feliz por ser fotografado 'porque a república do medo acabou'
  • Author, Fergal Keane
  • Role, Repórter especial da BBC News
  • Há 7 minutos

Aquele objeto pertencia à sua avó. Algo sólido. Uma coisa para segurar nas mãos, correr os dedos e traçar o caminho da memória. Uma pequena lembrança muito bela, incrustada com um delicado mosaico.

René abre a caixa de música e um som tilintante começa a ser ouvido, a mesma melodia ouvida há muito tempo na sala de estar de sua casa em Damasco, capital da Síria.

"Isso é tudo o que me resta da minha casa", diz ele.

Tudo sobre esse jovem sugere gentileza. René Shevan é baixo, esbelto e fala de forma suave.

Durante os dias de dezembro, suas emoções oscilavam. Alegria pela queda de Bashar al-Assad. Desgosto pelas memórias que isso desencadeou de meses passados em prisões sírias.

"Havia uma mulher. Ainda tenho a imagem dela aqui na minha cabeça. Ela estava parada no canto, e estava implorando... está claro que eles a estupraram."

"Havia um garoto. Ele tinha 15 ou 16 anos. Eles o estavam estuprando, e ele estava chamando sua mãe. Ele estava dizendo, 'Mamãe... minha mãe... mamãe.'"

E houve seu próprio estupro e abuso sexual.

Quando conheci René, ele tinha acabado de escapar da Síria. Isso foi há 12 anos. Ele sentou-se à minha frente, tremendo e chorando, com medo de mostrar o rosto para a câmera.

A polícia secreta o pegou porque ele tinha ido a uma manifestação pró-democracia. Eles também sabiam que ele era gay.

Três deles estupraram René em grupo. Ele implorou por misericórdia, mas eles riram.

"Ninguém me ouviu. Eu estava sozinho", ele lembra do ocorrido em 2012.

Disseram a ele que era isso que ele receberia por exigir liberdade.

Outro oficial abusou dele todos os dias. Por seis meses, ele sofreu esse abuso.

Quando imagens de prisioneiros andando livres em Damasco apareceram na televisão em dezembro, René foi levado de volta às lembranças de suas próprias imagens.

"Não estou na prisão agora, estou aqui. Mas eu me vi nas fotos e nas imagens das pessoas na Síria. Fiquei tão feliz por elas, mas eu me vi lá... Eu vi a minha versão antiga ainda lá. Eu vi quando eles me estupraram e quando me torturaram. Eu vi tudo em flashback."

Ele chora e paramos a entrevista. "Alguns minutos", ele pede.

Olho para a parede da sala de estar dele.

Há uma foto de sua casa em ruínas na Síria, uma de René correndo em uma maratona em Utrecht. Depois, uma imagem do padre jesuíta Frans Van Der Lugt, um psicoterapeuta e ativista ecumênico na Síria que foi assassinado em 2014.

Foi o padre Van Der Lugt quem disse a René — que sofria em um ambiente profundamente conservador — que ele era um ser humano normal, que Jesus o amava, independentemente de sua orientação sexual.

René pega um copo de água e pede para continuarmos a conversa.

Por que ele concordou em mostrar o rosto diante de uma câmera agora?

"Porque a república do medo se foi. Porque eu não tenho mais medo deles. Porque Assad é um refugiado em Moscou. Porque todos os criminosos na Síria fugiram. Porque a Síria retornou para todo o povo sírio", ele responde.

"Espero que possamos viver como um povo em liberdade, em igualdade. Estou muito orgulhoso de mim mesmo como sírio, holandês, como LGBT."

Isso não significa que ele se sinta seguro para viver na Síria como uma pessoa gay ainda.

Sob o regime de Assad, atos homossexuais foram criminalizados.

Os novos governantes do país têm raízes religiosas fundamentalistas e estão envolvidos em violência e perseguição contra gays.

"Há muitos LGBT sírios que lutaram", diz René. "Eles faziam parte da revolução e perderam suas vidas. [O regime sírio] os matou só porque eram LGBT e porque faziam parte da revolução."

René me diz que é "realista" sobre a perspectiva de mudança. Ele também está preocupado que todos os grupos religiosos e étnicos - incluindo os curdos - recebam proteção.

Duas crianças e três adultos caminham ao lado de uma cerca, carregando sacolas e brinquedos

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Alguns refugiados sírios começaram a regressar para casa vindos de países vizinhos

René está entre cerca de 6 milhões de sírios que fugiram do país e encontraram segurança em países vizinhos, como Líbano, Jordânia e Turquia, ou em outros lugares da Europa.

Vários países europeus já suspenderam pedidos de asilo de sírios após a derrubada do regime de Assad. Grupos internacionais de direitos humanos criticaram a medida como prematura.

Estima-se que haja um milhão de sírios na Alemanha. Entre eles, uma notável garota curda deficiente que conheci em agosto de 2015, quando ela se juntou a um grande grupo de pessoas que desembarcaram na ilha grega de Lesbos.

Ela viajou pela Sérvia, Croácia, Eslovênia e Áustria em seu caminho para o norte.

Para chegar à Europa a partir do norte da Síria, Nujeen cruzou montanhas, rios e o mar — sua irmã, Nisreen, empurrou a cadeira de rodas.

"Quero ser astronauta e talvez conhecer um alienígena. E quero conhecer a rainha", ela disse.

Agachei-me ao lado dela em uma estrada empoeirada, onde milhares de requerentes de asilo jaziam exaustos no calor do meio-dia. Seu bom humor e esperança eram contagiantes.

Esta era uma garota que aprendeu a falar inglês fluente assistindo a programas de televisão americanos.

Nujeen cresceu em Aleppo e, conforme a guerra se intensificou, ela foi para a cidade natal de sua família, Kobane, um reduto curdo que posteriormente foi atacado pelo grupo Estado Islâmico.

Eu a encontro agora na movimentada Praça Neumarkt, em Colônia, Alemanha, cercada por barracas da feirinha de Natal, onde os moradores comem salsicha e bebem vinho quente, e os dramas da Síria parecem distantes.

Mas não para Nujeen.

Ela ficou acordada até tarde a semana toda assistindo televisão, muito depois de o resto da família ter ido dormir. Não importa que ela tenha uma prova para o curso de Administração de Empresas. Ela vai dar um jeito.

Nujeen entende que nunca mais haverá um momento como a queda de Assad, um momento de esperança tão singular para ela.

Nujeen, uma garota de óculos, cabelo liso e preto, sorri olhando para a câmera. Ela veste um casaco amarelo e um cachecol branco

Legenda da foto, Nujeen era adolescente quando fugiu com a família do norte da Síria para a Alemanha

"Nada dura para sempre. A escuridão é seguida pelo amanhecer", ela diz.

"Eu sabia que nunca voltaria para uma Síria que tivesse Assad como presidente, e que nunca teríamos a chance de ser uma nação melhor com aquele homem no comando. Sabíamos que nunca encontraríamos paz a menos que ele se fosse. E agora, com esse capítulo encerrado, acho que o verdadeiro desafio começa."

Assim como René, ela quer um país que seja tolerante à diversidade e que se importe com as pessoas com deficiência.

"Não quero voltar para um lugar onde não há elevador e só há escadas para chegar a um apartamento no quarto andar."

Como curda, ela conhece bem a experiência de sofrimento do seu povo na região.

Agora, enquanto as forças curdas são forçadas a se retirar das cidades no norte, Nujeen vê o perigo representado por um novo regime apoiado pela Turquia.

"Conhecemos essas pessoas que chegaram ao poder agora. Conhecemos os países e as potências que os apoiam, e eles não são exatamente fãs dos curdos. Eles não nos amam exatamente. Essa é nossa maior preocupação agora."

Há também o medo de um possível reagrupamento do Estado Islâmico se os novos líderes da Síria não conseguirem alcançar a estabilidade no país.

Há constantes ligações para familiares que ainda vivem nas áreas curdas.

"Eles estão ansiosos e preocupados com o futuro, assim como todos nós", diz Nujeen.

"Nós nunca paramos de ligar, e sempre ficamos preocupados se eles não atendem depois do primeiro toque. Há muita incerteza sobre o que vai acontecer."

A incerteza é ampliada pela mudança na política de asilo na Europa.

Ainda assim, esta é uma jovem mulher cuja experiência de vida — a experiência de viver com uma deficiência grave desde o nascimento, testemunhar os terrores da guerra, viajar pelo Oriente Médio e pela Europa em busca de segurança — criou uma capacidade de esperança.

Nos dez anos desde que a conheço, ela permanece firme. A queda de Assad só aprofundou sua fé na Síria e em seu povo.

"Há muitas pessoas esperando ver a Síria cair em algum tipo de abismo", diz ela.

"Não somos pessoas que odeiam, invejam ou querem eliminar uns aos outros. Somos pessoas que foram criadas para ter medo uns dos outros. Mas nossa configuração padrão é que amamos e aceitamos quem somos."

"Podemos e seremos uma nação melhor - uma nação de amor, aceitação e paz, não uma nação de caos, medo e destruição."

Há muitos corações na Síria e em outros lugares que esperam que ela esteja certa.