Ilustração de uma pessoa sendo feita de marionete por meio de um celular

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Precisamos repensar o significado de 'ameaças' nos conflitos modernos, segundo pesquisadores
    • Author, David Gisselsson Nord e Alberto Rinaldi
    • Role, The Conversation*
  • Há 27 minutos

Imagina acordar com a notícia de que uma nova cepa mortal de gripe surgiu na sua cidade. As autoridades de saúde estão minimizando o problema, mas as redes sociais estão repletas de afirmações contraditórias de "especialistas médicos" debatendo sua origem e gravidade.

Os hospitais estão lotados de pacientes com sintomas semelhantes aos da gripe, impedindo que outros pacientes tenham acesso a atendimento e, consequentemente, levando a mortes. Aos poucos, descobre-se que um adversário estrangeiro orquestrou esse pânico plantando informações falsas — como a de que a cepa tinha uma taxa de mortalidade muito alta. No entanto, apesar das mortes, nenhuma regra define isso como um ato de guerra.

Essa é a guerra cognitiva, na qual o domínio cognitivo é usado em campos de batalha ou em ataques hostis abaixo do limiar da guerra.

Um exemplo clássico de guerra cognitiva é um conceito chamado "controle reflexivo" — uma arte aprimorada pela Rússia ao longo de muitas décadas. Envolve moldar as percepções do adversário em benefício próprio, sem que ele perceba que foi manipulado.

No contexto do conflito na Ucrânia, isso incluiu narrativas sobre reivindicações históricas de terras ucranianas e a representação do Ocidente como moralmente corrupto.

A guerra cognitiva serve para obter vantagem sobre um adversário, visando atitudes e comportamentos a nível individual, de grupo ou populacional. Ela é projetada para modificar as percepções da realidade, transformando a "configuração da cognição humana" em um domínio crucial da guerra. Trata-se, portanto, de uma arma em uma batalha geopolítica que se desenrola por meio de interações entre mentes humanas, em vez de em domínios físicos.

Como a guerra cognitiva pode ser travada sem os danos físicos regulamentados pelas leis de guerra atuais, ela existe em um vácuo legal. Mas isso não significa que não possa, em última instância, incitar a violência com base em informações falsas ou causar ferimentos e morte por efeitos secundários.

Batalha de mentes, danos corporais

A noção de que a guerra é essencialmente uma disputa mental, em que a manipulação cognitiva é fundamental, remonta ao estrategista Sun Tzu (século 5 a.C.), autor de A Arte da Guerra. Atualmente, o domínio online é a principal arena para essas operações.

A revolução digital permitiu que um conteúdo cada vez mais personalizado explorasse ângulos mapeados por meio da nossa pegada digital, o que é chamado de "microssegmentação". A inteligência artificial pode até nos fornecer conteúdo direcionado sem nunca tirar uma foto ou gravar um vídeo. Basta um prompt bem elaborado, que apoie a narrativa e os objetivos predefinidos de agentes mal intencionados, enquanto engana disfarçadamente o público.

Essas campanhas de desinformação atingem cada vez mais o domínio físico do corpo humano.

Na guerra na Ucrânia, vemos narrativas contínuas de guerra cognitiva. Isso inclui alegações de que as autoridades ucranianas estavam ocultando ou incitando propositalmente surtos de cólera.

Alegações de laboratórios de armas biológicas apoiados pelos EUA também fizeram parte das operações de bandeira falsa (ação política ou militar realizada com a intenção de culpar um oponente pelo ocorrido) para a invasão em grande escala da Rússia.

Durante a pandemia de covid-19, informações falsas levaram a mortes quando as pessoas recusaram medidas de proteção ou usaram remédios nocivos para tratar a doença.

Algumas narrativas durante a pandemia foram conduzidas como parte de uma batalha geopolítica.

Enquanto os EUA se envolviam em operações de informações secretas, agentes russos e chineses ligados ao Estado coordenavam campanhas que usavam personas de mídia social geradas por inteligência artificial e microssegmentação para moldar opiniões a nível comunitário e individual.

Ilustração de cabo de guerra dentro da cabeça de uma pessoa

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Legenda da foto, O dano psicológico é um dano real

A capacidade de microssegmentação pode evoluir rapidamente à medida que os métodos de acoplamento entre cérebro e máquina se tornam mais eficientes na coleta de dados sobre padrões de cognição.

As formas de proporcionar uma melhor interface entre as máquinas e o cérebro humano vão desde eletrodos avançados que podem ser colocados no couro cabeludo até óculos de realidade virtual com estimulação sensorial para uma experiência mais imersiva.

O programa de Neurotecnologia Não-cirúrgica de Próxima Geração (N3) da Darpa ilustra como esses dispositivos podem se tornar capazes de captar e transmitir informação a vários pontos do cérebro ao mesmo tempo.

No entanto, essas ferramentas também podem ser hackeadas ou abastecidas com dados contaminados como parte de futuras estratégias de manipulação de informações ou de desestabilização psicológica.

Vincular diretamente o cérebro ao mundo digital dessa maneira vai corroer a linha que separa o domínio da informação e o corpo humano de uma forma nunca vista antes.

As leis tradicionais de guerra pressupõem a força física, como bombas e munição, como a principal preocupação, deixando a guerra cognitiva em uma zona cinzenta legal. A manipulação psicológica é um "ataque armado" que justifica a autodefesa de acordo com a Carta da ONU? Atualmente, não existe uma resposta clara. Um agente estatal poderia usar desinformação sobre saúde para causar mortes em massa em outro país sem iniciar formalmente uma guerra.

Existem lacunas semelhantes em situações em que a guerra, como a vemos tradicionalmente, está de fato em andamento. Neste caso, a guerra cognitiva pode borrar a linha que separa a dissimulação militar (ardil de guerra) permitida e a perfídia, que é proibida.

Imagine um programa de vacinação humanitária que coleta DNA secretamente, enquanto é usado de forma encoberta por forças militares para mapear redes de insurgentes baseadas em clãs. Essa exploração da confiança médica constituiria perfídia sob o direito humanitário — mas somente se começarmos a reconhecer essas táticas de manipulação como parte da guerra.

Desenvolvimento de regulamentações

Então, o que pode ser feito para nos proteger nessa nova realidade? Primeiro, precisamos repensar o significado de "ameaças" nos conflitos modernos. A carta da ONU já proíbe "ameaças de uso da força" contra outras nações, mas isso nos deixa presos a uma mentalidade de ameaças físicas.

Quando uma potência estrangeira inunda sua mídia com falsos alertas de saúde destinados a gerar pânico, isso não é uma ameaça ao seu país tão eficaz quanto um bloqueio militar?

Embora essa questão tenha sido reconhecida em 2017 pelos grupos de especialistas que elaboraram o Manual de Tallinn sobre guerra cibernética (Regra 70), nossos arcabouços jurídicos ainda não se atualizaram.

Em segundo lugar, devemos reconhecer que o dano psicológico é um dano real. Quando pensamos em ferimentos de guerra, imaginamos ferimentos físicos. Mas o transtorno de estresse pós-traumático há muito tempo é reconhecido como um dano legítimo de guerra — por que não, então, os efeitos na saúde mental de operações cognitivas direcionadas?

Por fim, as leis tradicionais de guerra podem não ser suficientes — devemos buscar soluções nos arcabouços de direitos humanos. Eles já incluem proteções à liberdade de pensamento, liberdade de opinião e proibições contra propaganda de guerra que poderiam proteger civis de ataques cognitivos. Os Estados têm a obrigação de defender esses direitos tanto em seu território quanto no exterior.

O uso de táticas e tecnologias cada vez mais sofisticadas para manipular a cognição e a emoção representa uma das ameaças mais insidiosas à autonomia humana em nosso tempo. Somente adaptando nossos arcabouços jurídicos a esse desafio é que vamos conseguir promover a resiliência social e capacitar as futuras gerações para enfrentar as crises e os conflitos do amanhã.

* David Gisselsson Nord é professor do departamento de genética clínica da Faculdade de Medicina da Universidade de Lund, na Suécia.

Alberto Rinaldi é pesquisador de pós-doutorado em direitos humanos e direito humanitário na Universidade de Lund.

Este artigo foi publicado originalmente no site de notícias acadêmicas The Conversation e republicado aqui sob uma licença Creative Commons. Leia aqui a versão original (em inglês).