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O Brasil finge que não vê o risco do excesso de energia solar

Citaram também o mercado nórdico de energia, o Nord Pool, onde alguns deles moram e os preços se tornaram extremamente voláteis, com tarifas negativas durante o dia e picos à noite.

O mais curioso é que essas perguntas não vieram de engenheiros nem de especialistas. Eram turistas comuns, mas conscientes de que o excesso de energia solar já é um tema do cotidiano.

Na Europa, o debate deixou de ser sobre como gerar energia limpa e passou a ser sobre como usá-la sem comprometer a estabilidade do sistema elétrico. No Brasil, essa discussão ainda está restrita a quem trabalha no setor. Fora dessa bolha, há um esforço crescente de ampliar a discussão na sociedade, mas ainda prevalece a percepção de que quanto mais geração solar, melhor.

Acredito que o motivo não seja falta de conhecimento, mas o fato de que nosso setor elétrico é muito complexo até mesmo para quem trabalha nele, as informações são difíceis de encontrar (alguém entende a própria conta de luz? Eu confesso que tenho dificuldade) e não temos sinal de preço que mostre esses problemas.

Nós, nas nossas casas, pagamos o mesmo preço por kWh, não importa a hora do dia, se há sobra de geração ou não. Os turistas europeus com quem conversei enxergam os impactos do excesso de geração solar nas suas faturas.

A realidade é mais complexa

E há muita sobra de geração, mas não o tempo todo. O avanço acelerado da micro e minigeração distribuída (os painéis solares nas residências e pequenas usinas solares que abastecem comércios) tem criado horários em que a oferta de energia é muito maior do que o consumo. Isso pressiona a rede e reduz a previsibilidade do sistema.

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Quando o sol se põe, porém, falta geração e são acionadas usinas termelétricas, que são mais "caras" por causa do combustível que usam, seja gás, carvão, ou óleo, mas garantem que não falte eletricidade para aquele banho quente no fim do dia.

O Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) já reconhece que os cortes de geração por excesso de oferta devem aumentar, mas o assunto ainda é tratado como algo técnico demais para virar tema público.

O termo técnico importado usado para os cortes, "curtailment", não ajuda nesse sentido. Basicamente, o ONS, que é o responsável por toda a rede que transporta eletricidade de um canto a outro do Brasil até as nossas casas, tem mandado cada vez mais grandes parques de geração eólica e solar desligarem as máquinas, porque o consumo não consegue absorver toda a energia produzida.

Como o ONS não consegue mandar nos painéis das casas das pessoas, há ainda risco de apagões por excesso de geração, já que o sistema depende de equilíbrio entre a energia gerada e a energia consumida a cada instante.

Longe de solução

Enquanto na Europa o problema já preocupa o cidadão comum, aqui o país perdeu mais uma chance de enfrentá-lo, e falo daqueles que têm informação disponível para lidar com isso: os deputados e senadores.

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A Medida Provisória 1.304, aprovada na semana passada pelo Congresso, poderia ter tratado dos efeitos da sobreoferta de energia, ao retirar ou reduzir os subsídios que incentivam a expansão da MMGD e também os subsídios dos grandes parques de geração eólica e solar, que custam dezenas de bilhões de reais por ano pagos principalmente pelos consumidores pequenos.

O resultado foi o oposto. O texto final ampliou subsídios, manteve distorções e repassou novos custos para o consumidor.

A nova lei permite que parte dos custos do "curtailment", quando o operador precisa reduzir a geração por excesso de energia, sejam repassados às tarifas. Isso significa que o consumidor pagará por uma energia que não foi entregue. O diretor-geral da Aneel, Sandoval Feitosa, alertou que a medida deve encarecer a conta de luz, porque a redução de risco para os geradores não veio acompanhada de revisão na remuneração.

Durante a tramitação da MP, o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, contou que chegou a receber ameaças de agentes do setor de geração distribuída ao tentar limitar benefícios. Ele lamentou que os lobbies tenham prevalecido sobre o interesse público.

O texto final retirou a obrigatoriedade de contratação de térmicas a gás, emenda que vinha causando muita polêmica porque encareceria ainda mais a nossa já cara conta de luz, mas manteve a prorrogação da operação das usinas a carvão, o que tem amparo em políticas públicas voltadas a regiões que dependem do carvão no Sul do país, mas contrasta com o discurso de transição energética que o governo pretende levar à COP30.

Enquanto isso, a energia solar continua se expandindo em ritmo recorde. O Brasil já ultrapassou 43 gigawatts de potência instalada em geração distribuída, e novos projetos seguem sendo conectados sem mecanismos eficazes de coordenação. O resultado é um sistema mais difícil de operar, com preços cada vez mais voláteis e uma rede que precisa ser desligada justamente no horário em que mais gera energia limpa.

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A discussão sobre o "curtailment" ainda não tem uma solução sustentável, mas já afeta o equilíbrio econômico do setor. É um problema conhecido, mas difícil de resolver, porque todos teriam que perder um pouco. Ninguém aceita, e o prejuízo só cresce.

A MP 1.304 colocou ainda um teto na Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), encargo que todos nós pagamos pela conta de luz, e que já chegou a R$ 50 bilhões neste ano, custeando sempre políticas que não beneficiam aqueles que estão pagando. O problema é que ninguém sabe qual é o teto, já que será o orçamento ainda a ser definido para 2026.

O setor elétrico brasileiro é eficiente em criar boas causas e maus incentivos. Cada fonte de energia, cada elo da cadeia, defende o seu benefício específico em nome da modicidade tarifária ou da transição energética.

No fim, os custos se acumulam, os incentivos se sobrepõem e os problemas se repetem. O excesso de energia solar é um deles. É uma boa notícia que virou desafio, e o Brasil (ou aqueles que têm a caneta na mão e podem fazer algo) parece que ainda finge que não vê.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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