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- Author, Edison Veiga
- Role, De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil
Há 3 minutos
Quando o imperador romano Marco Aurélio (121-180) escreveu suas Meditações, ele jamais imaginava que seus pensamentos um dia se tornariam ferramenta pop de discursos de autoajuda. Era a segunda metade do século 2º e o líder romano estava, em boa parte do tempo, em Sírmio, hoje Sremska Mitrovica, na Sérvia, local que foi base para planejamento de campanhas militares naquela época.
Suas anotações, em princípio, não guardavam nem a ambição de publicação. Serviam para o imperador como referências pessoais, como se fossem autoconselhos que ele registrava depois de reflexão. Marco Aurélio, vale ressaltar, além de líder de um gigantesco e poderoso império, era filósofo — e sua escola de pensamento entrou para a história universal com o nome de estoicismo.
Para os estoicos, a prática da virtude era o caminho para se chegar à eudaimonia — um estado de plenitude correspondente à felicidade de uma vida bem-vivida. Essas virtudes eram resumidas em sabedoria, coragem, temperança ou moderação e justiça, de forma harmônica com a natureza.
Entre seus principais expoentes, destacam-se Sêneca (4 a.C. - 65), Epicteto (50-138) e Zenão (333 a.C. - 263 a.C.), considerado este o fundador da escola de pensamento.
"Aquilo que a natureza traz para cada homem e para cada coisa é para seu bem; mais ainda, é para o seu bem no preciso momento em que chega", escreveu ele, consolidando o pensamento conhecido como "amor fati", ou seja, a aceitação do destino.
"Se estás perturbado por qualquer coisa exterior, o sofrimento não se deve à coisa em si mesma, mas à avaliação que fazes dela; e isto está em teu poder anular em qualquer momento. Se a causa do problema está no teu próprio caráter, trata de alterar os teus princípios", enfatizou.
Ele também refletiu sobre a brevidade da vida e escreveu que o fim de um gigante como Alexandre da Macedônia "não foi minimamente diferente" daquele "do seu moço da estrebaria" — e ambos "foram recebidos no mesmo princípio generativo do universo […], dispersos em átomos". Era o pensamento conhecido como "memento mori", ou seja, a importância de viver se lembrando que uma hora a morte chega.
Marco Aurélio ainda argumentou que o obstáculo é o caminho, no sentido de que a ação avança a partir dos impedimentos que se lhe apresentam. "O espírito pode vencer todos os obstáculos com vista à ação, e convertê-los em avanço no sentido do seu principal objetivo, de modo que qualquer impedimento ao seu trabalho se torna, ao contrário, um auxiliar, e as barreiras no seu caminho se tornam uma ajuda ao progresso."
Para o filósofo e educador Marcos da Silva e Silva, professor na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), a busca da resiliência, do equilíbrio e do autocontrole por meio de um método filosófico fazia sentido porque era um contexto de adversidades e situações trágicas.
"O estoicismo não era apenas uma filosofia acadêmica. Era um estilo de vida, adotado por Marco Aurélio", afirma ele, à BBC News Brasil.
O estoicismo ficou pop
Todo esse caldo se tornou fértil para inspirar releituras pop e viralizantes de conselhos de autoajuda, literatura de coaching e até mesmo obras de filosofia mais palatáveis à contemporaneidade. Um grande expoente desse nicho é o empresário, marqueteiro e podcaster americano Ryan Holiday, autor de best-sellers como O Obstáculo é o Caminho, O Ego é Seu Inimigo, Disciplina é Destino e Faça o Certo, Faça Agora.
Holiday é visto como um dos principais nomes da tendência contemporânea de reler o estoicismo como uma filosofia-receita para a produtividade e o sucesso.
"O pensamento estoico vem sendo resgatado tendo como pano de fundo o neoliberalismo individualista de nossa sociedade ocidental atual", contextualiza à BBC News Brasil o filósofo Aldo Dinucci, professor na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e tradutor das Meditações para o português. "Entretanto, o estoicismo enquanto tal, na Antiguidade, buscava fundamentalmente uma reintegração do humano com a natureza."
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"Na contemporaneidade, tem sido compreendido essencialmente no nível do conflito do indivíduo com a sociedade, visto como um meio para ajudar indivíduos a sobreviver em ambientes hostis, tais como os do trabalho e da família. Daí serem frequentes, nesse contexto, as referências à resiliência, à perseverança, à resistência frente às adversidades", complementa Dinucci.
Ele ressalta que isso não significa dizer que a releitura pop seja, por si só, uma coleção de "interpretações equivocadas", uma vez que "essas questões realmente são tratadas pelos antigos estoicos". Para o professor, o que ocorre é que são interpretações limitadas da filosofia de Marco Aurélio. "Pois ignoram uma série de pontos fundamentais do estoicismo, entre eles a já citada reintegração do humano ao cosmos, que podemos seguramente dizer ser o próprio coração do estoicismo, e a noção de fraternidade humana", esclarece.
"Essa relação entre estoicismo e coaching me chama muita atenção", diz à BBC News Brasil o psicólogo Rodrigo Barbosa Nascimento, pesquisador na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e co-autor do artigo científico 'Empreender-se a Si Mesmo e Cuidado de Si: como o coaching desvirtua a filosofia estoica ao bel-prazer do neoliberalismo'.
"O estoicismo, na sua origem, é uma filosofia de vida que convida o sujeito a aceitar o que não se pode controlar e a cultivar a virtude com responsabilidade diante de si e do mundo", explana ele. "Só que muita gente no coaching, nesse caso, os coaches, têm usado isso pra falar de produtividade, alta performance, controle emocional, como se fosse um manual rápido de sucesso pessoal."
Nascimento acredita que o problema é que, "no fim, o que era prática ética e crítica acaba virando técnica de autoajuda". "E aí se perde justamente o que tornava o estoicismo tão potente", avalia.
Reflexões sobre dever, resiliência e virtude eram a tônica dos textos escritos por Marco Aurélio 1800 anos atrás. Aos olhos de hoje, são escritos de linguagem simples que facilmente conseguem ser aplicados a temas universais, como ansiedade, frustração e fracasso — por isso, funcionam.
Mas é preciso contextualizar. O estoicismo, que havia nascido na Grécia 400 anos antes de sua época, era a filosofia que fazia a cabeça das elites políticas e militares de Roma nos primeiros dois séculos da Era Cristã.
"Naqueles tempos, muitas obras que se perderam durante a Idade Média ainda circulavam, e eles tinham acesso a elas, não somente as dos estoicos, mas de muitos outros autores antigos. Nesse sentido, o acesso que tinham à produção filosófica clássica é muito maior do que jamais teremos", avalia Dinucci.
Assim, em um contexto de guerras, epidemias e muita instabilidade, uma pessoa letrada como Marco Aurélio fazia desses princípios seu norte para conseguir se manter firme, racional e ético, equilibrando-se diante das pressões da vida pública e suas adversidades pessoais.
"O pensamento [estoico] se tornou recorrente nas redes sociais, recuperado pelos coaches que dão interpretações muitas vezes descontextualizadas", critica o professor Silva e Silva. Para ele, o principal problema é a "simplificação excessiva". "O estoicismo é reduzido a um conjunto de produtividade, de frases motivacionais. E não é. Não era. De motivacional, no contexto de Marco Aurélio, não tinha nada."
Um dos problemas apontados por ele é na interpretação de que o "amor fati" seria uma aceitação passiva de tudo. "No estoicismo, na realidade, isso implicava no engajamento ativo com a realidade, por meio da virtude, em busca da justiça, uma justiça que só se atinge se for pensada coletivamente", analisa Silva e Silva.
"Outro ponto é o foco no individualismo, muito característico do mundo liberal. Muitos interpretam o estoicismo com uma mentalidade capitalista, enfatizando o sucesso pessoal e financeiro. Isso não tem justificativa. O estoicismo clássico valorizava a comunidade e a justiça social", acrescenta o professor.
Ele ressalta que as Meditações não podem ser tratadas como livro de autoajuda, já que se trata de "um livro de autorreflexão a partir de um contexto de guerra". "São as reflexões pessoais de um imperador em tempos de crise", comenta.
"Ao falar de Marco Aurélio é preciso considerar o contexto histórico para não deturpar nem a sua vida nem suas próprias Meditações. É preciso também pensar no legado do estoicismo do qual Marco Aurélio fazia parte e fazer uma leitura cuidadosa", diz Silva e Silva. "Esse personagem estava em um contexto de guerra e não fazendo palestra para se vangloriar da própria macheza ou da macheza individual."
De órfão a imperador
A biografia de Marco Aurélio é relativamente bem-documentada. "A história de sua vida nos foi transmitida com riqueza de detalhes por alguns historiadores antigos", diz Dinucci.
Filho de família aristocrática, ficou órfão de pai aos 3 anos de idade. Mais tarde, sua mãe também morreu. Foi adotado por Antonino Pio (86-161), imperador romano, como futuro herdeiro do trono.
"Teve acesso aos melhores tutores da época, e alguns destes o introduziram ao estoicismo", comenta o professor Dinucci. Foi nessa época que Marco Aurélio tomou contato pela primeira vez com os ensinamentos de Epicteto. "Desde a tenra infância manifestou interesse pelo cinismo e sua disciplina física austera."
"Sua formação filosófica foi bastante densa, forte", diz Silva e Silva.
Dinucci afirma que primeiro Marco Aurélio se viu inspirado pela filosofia cínica, "que se constitui, por assim dizer, o primeiro patamar do estoicismo".
"Mais tarde, seu tutor Júnio Rústico, o maior filósofo estoico de sua época, o presenteou com um volume das Diatribes de Epicteto", narra o professor. "O estoicismo era, então, uma entre as diversas correntes filosóficas que influenciavam os romanos, sendo as demais o epicurismo, o aristotelismo, o cinismo e o platonismo."
Silva e Silva lembra que "essa busca por temperança, por sabedoria, ressoava na elite romana que procurava justificar o seu poder com valores morais".
"Em Roma, o estoicismo teve grande influência em alguns círculos senatoriais, notadamente aqueles de inspiração republicana, que chegaram a se opor a imperadores que consideravam tiranos, como Nero, Vespasiano e Domiciano", contextualiza Dinucci. "No entanto, é um erro considerar que o estoicismo tenha influenciado grandemente o mundo antigo. Mesmo Marco Aurélio, como imperador, pouco pode fazer e se via imensamente só, em seu tempo, como testemunham várias passagens de suas Meditações."
Quando esteve à frente do império — assumiu em conjunto com Lúcio Vero (130-169), na primeira vez que Roma teve dois imperadores —, teve de lidar com uma série de conflitos militares, entre eles as chamadas Guerras Marcomanas.
Ao mesmo tempo, por volta do ano de 165, a região foi acometida por uma epidemia de varíola que ficou conhecida como peste antonina. Historiadores estimam que de 5 milhões a 10 milhões de romanos morreram, entre eles o coimperador Vero. Essa conjunção de fatores faz com que o período seja visto como um dos mais complicados da história de Roma antiga.
"Como imperador, passou por momentos difíceis", relata Dinucci, lembrando que quase metade do seu reinado ele foi obrigado a passar em fronts de batalha.
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O professor comenta que, se até os 40 anos ele "teve vida confortável", porque era protegido pelo comando do império, uma vez no trono "passou por grandes dificuldades e se viu particularmente só", principalmente depois da morte de seus tutores e amigos íntimos — justamente quando ele começou a escrever as Meditações.
Um relato de suas batalhas acabou ganhando contornos de lenda e é registrado como o "milagre da chuva". "Teria ocorrido quando Marco e suas forças se viam sedentos e sitiados por exércitos inimigos e acabaram salvos por uma chuva providencial e por raios que desabaram sobre as posições inimigas", conta Dinucci. "Tais fatos foram, então, interpretados como uma intervenção divina."
Ao contrário da imagem estereotipada de imperadores romanos, vaidosos e hedonistas, Marco Aurélio é visto como um administrador austero. Para ele, o poder era uma espécie de fardo moral, uma missão a ser cumprida. Os estoicos, afinal, acreditavam que a razão era a ferramenta máxima do ser humano e que a felicidade dependia de viver em conformidade com a natureza e a virtude.
Para pesquisadores, Marco Aurélio conseguiu ser exemplo de liderança ética e consciente em meio ao caos de seu momento histórico.
Todo esse contexto explicaria suas meditações fincadas no estoicismo, com uma defesa do poder sobre a mente — e não sobre os eventos externos — como ponto para captar a força. Enfim, tinha a ver com o momento histórico, muito mais do que com posts motivacionais das redes sociais de hoje em dia, esse ímpeto pelo foco pleno, pelo cultivo de virtudes como coragem, justiça e autocontrole e pela aceitação com serenidade daquilo que a vida impõe.
Daí Marco Aurélio acabou transformado em ícone, uma espécie de autoridade intelectual e moral, emprestando seriedade às fórmulas um tanto simplificadas de sucesso e resiliência. "Esse Marco Aurélio mais lendário é retratado, a partir da historiografia moderna, como modelo de virtude. Criou-se uma aura", pontua Silva e Silva.
O problema, segundo pesquisadores, é que tratá-lo como guru significa esvaziar a profundidade do estoicismo. Marco Aurélio, afinal, não estava dando dicas de como vencer na vida — buscava uma ancoragem de dignidade em meio ao sofrimento de sua época.
O psicólogo Nascimento, que vem estudando como o discurso dos coaches acabam "distorcendo as ideias" estoicas para "servir a uma lógica liberal", compreende o fenômeno não apenas como "uma leitura superficial", mas como "tentativa de transformação mais profunda".
"O sujeito vira uma espécie de 'empresa de si', sempre buscando se melhorar, se vender, se ajustar. A ideia de 'cuidar de si', que antes era uma prática de liberdade, vira ferramenta de autogerenciamento", analisa o psicólogo. "E o coach entra como esse agente que captura uma filosofia inteira para moldar a subjetividade às exigências de mercado. No fundo, é isso: um uso do estoicismo que esvazia seu sentido original pra fazer caber nas regras do desempenho."
Por fim, é preciso ressaltar que o próprio imperador-filósofo não escreveu suas Meditações esperando ser lido. Esses textos eram anotações que ele fazia em meio a missões militares e compromissos de governo. Não planejou produzir filosofia, muito menos um manual de autoajuda.
"[Seus textos] Eram um diário pessoal. Ele não era um cara que estava ligado [em fama], que queria publicar. Não queria alarde. E são essas Meditações que são tratadas, por vezes, como um guia de autoajuda", diz Silva e Silva. "Eram, na verdade, guias políticos, compartilhamento de estratégias políticas."
"O estoicismo tem sua ênfase no autocontrole, na aceitação do destino e na virtude como único bem verdadeiro para lidar contra as adversidades. Suas Meditações refletem muito isso: um homem que buscava a serenidade em meio ao caos, à guerra, à violência e à disputa política", afirma.
Ele registrou um espelho. E talvez aí esteja o segredo do sucesso: nessas linhas, cada leitor consegue observar seus próprios dilemas — emoldurados não pela autoridade de um imperador, mas pela humanidade de um filósofo de seu tempo.
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