Colagem mostra a silhueta de uma mulher, com uma mão aberta atrás dela. Ao fundo, aparecem mulheres à distância (ao centro), árvores e prédios altos de uma cidade.

Crédito, Klawe Rzeczy

Há 20 minutos

Atenção: este texto contém descrições de estupro e violência sexual. Nomes e informações que possam identificar as vítimas foram alterados ou omitidos.

Enat conta que estava em casa com a sobrinha de oito anos quando soldados chegaram em uma manhã de domingo.

Naquele dia, 5 de janeiro, o Exército etíope fazia buscas domiciliares na região de Amhara, a cerca de 400 km de Addis Ababa, capital da Etiópia, em uma ação contra a crescente rebelião iniciada por milícias locais conhecidas como Fano.

Três homens, vestidos com uniformes do Exército, entraram na casa de Enat, em South Gondar, e começaram a perguntar sobre sua família e se combatentes Fano haviam visitado o bar onde ela trabalhava.

Enat, 21, respondeu que sim.

"Como poderíamos mentir? Como esconder a verdade?", diz.

Ela lembra que Fano — palavra etíope que pode ser traduzida livremente como combatentes voluntários — é formado por moradores locais.

A situação rapidamente se agravou.

Depois das perguntas sobre seu histórico familiar, Enat conta que os soldados a insultaram e ameaçaram sua sobrinha com uma arma quando a menina começou a chorar.

Em seguida, Enat conta que um dos soldados a estuprou diante da criança, enquanto os outros mantinham a guarda.

"Implorei para que não me machucassem. Clamei aos santos, implorei. Mas eles não tiveram piedade. Eles me violentaram."

Milhares de relatos de estupro e agressão

Enat, do grupo étnico Amhara, o segundo maior da Etiópia, está entre as milhares de mulheres que se acredita terem sido agredidas sexualmente desde o início do conflito entre o Exército e Fano, em agosto de 2023.

A violência sexual na região é pouco documentada, mas dados reunidos pela BBC indicam milhares de relatos de estupro entre julho de 2023 e maio de 2025, envolvendo vítimas de oito a 65 anos.

Com a entrada de jornalistas barrada em Amhara, a equipe da BBC em Nairóbi, no Quênia, país vizinho, conseguiu falar com mulheres e médicos locais, oferecendo um raro retrato do impacto humano da crise.

O conflito começou quando o governo tentou dissolver grupos militares regionais, incluindo os de Amhara, que haviam lutado ao lado do Exército na guerra civil de 2020–2022 em Tigray, região vizinha.

Segundo organizações de direitos humanos, as milícias Fano se sentiram traídas e temiam ficar vulneráveis a ataques vindos de Tigray e de outras regiões, especialmente diante do aumento da violência contra a comunidade Amhara.

Fano reagiu lançando uma rebelião e tomando cidades importantes. O grupo afirma lutar por autonomia regional e pela proteção das comunidades locais.

A ofensiva levou o Exército a uma resposta violenta, chamando o Fano de "nacionalistas étnicos radicais".

Colagem de imagens mostra uma mão sobre um fuzil AK-47 e duas mulheres com rostos não visíveis, ambas usando lenços brancos que cobrem cabeça e ombros.

Crédito, Klawe Rzeczy

Desde então, os dois lados são acusados de violações de direitos humanos, como execuções extrajudiciais, detenções arbitrárias, deslocamentos forçados, destruição de bens, saques e casos generalizados de violência sexual, incluindo estupro.

Organizações de direitos humanos como a Anistia Internacional afirmam haver indícios de que o Exército é desproporcionalmente responsável por grande parte dos abusos. Também afirmam que o povo Amhara vivendo em outras regiões do país têm sido alvo deliberado de forças de segurança e de outros grupos armados.

Antes de ser atacada, Enat nunca havia tido relações sexuais e planejava se casar na igreja local, em cerimônia conforme os ritos da Igreja Ortodoxa Etíope, assim como outras mulheres de sua família.

Esses casamentos são reverenciados pelo povo Amhara, cristão ortodoxo, que exige que os casais permaneçam "puros" até a cerimônia.

"Antes daquele dia, eu nunca tinha conhecido um homem", disse. "Teria sido melhor se tivessem me matado."

'Minha família me encontrou inconsciente'

Tigist, de 18 anos, de West Gojjam, também na região de Amhara, trabalhava na pequena casa de chá da família antes de ser atacada.

Ela relata que, em janeiro de 2024, um soldado cliente habitual a apalpou. Tigist disse que o repeliu, atitude que acredita ter motivado o ataque.

Naquela noite, ao voltar do trabalho para casa, três soldados, incluindo o agressor inicial, a emboscaram na rua e a estupraram em grupo.

"Minha família me encontrou inconsciente na estrada", recorda. "Eles me levaram para a clínica, onde passei cinco dias."

Desde o ataque, Tigist disse que não consegue sair de casa, paralisada pelo medo de homens e do mundo exterior.

"Meu medo não me deixa trabalhar… Quando vejo soldados ou qualquer homem, fico em pânico e me escondo."

Ela acabou se isolando da própria vida e rompeu o noivado. Ela disse que não contou ao noivo o motivo ou o que aconteceu.

Chegou a tentar tirar a própria vida, mas foi impedida pela família, que a salvou. Ela disse que, embora tenha pensado em suicídio desde então, prometeu que não fará outra tentativa.

'É repulsivo ter nascido mulher'

A BBC reuniu dados de 43 unidades de saúde em Amhara — cerca de 4% de todas as unidades de saúde da região — e de outras fontes médicas para obter um retrato do que ocorre ali.

Nesses locais, houve 2.697 relatos de estupro entre 18 de julho de 2023 e maio de 2025. Menores de 18 anos representam 45% dos casos. Pouco mais da metade das vítimas testou positivo para infecções sexualmente transmissíveis (ISTs). Muitas ficaram grávidas e sofreram traumas psicológicos graves.

A subnotificação é ampla: muitas vítimas de violência sexual não registram o crime nem procuram atendimento, com medo do estigma ou de descobrir que contraíram uma IST ou ficaram grávidas.

Por isso, uma especialista sênior em saúde, que falou à BBC sob condição de anonimato por segurança, afirmou que as vítimas que chegam às unidades de Amhara são apenas "a ponta do iceberg".

Lemlem, de 23 anos, de South Gondar, está entre as mulheres que nunca denunciaram o estupro nem buscaram atendimento, aterrorizada com a possibilidade de ter uma infecção sexualmente transmissível, como o HIV.

Disse que soldados entraram em sua casa em 6 de janeiro para pedir informações — prática comum do Exército — e que, ao não fornecer o que queriam, um deles a estuprou.

"Ele me ameaçou: 'Se você gritar, uma bala basta para você'", disse.

"Chorei sem parar durante um mês inteiro. Não conseguia comer. Só chorava. Não conseguia andar. E fiquei gravemente doente."

Ela se afastou da igreja por medo de fofocas.

"É repulsivo ter nascido mulher. Se eu fosse homem, talvez me batessem e fossem embora — não teriam destruído minha vida dessa forma", disse Lemlem, explicando como o trauma do ataque a fez se sentir em relação ao fato de ser mulher.

Imagem mostra uma colagem com um rosto de uma mulher em silhueta, vestindo um lenço branco que cobre cabeça e ombros. Abaixo dela, há uma estrada sinuosa, algumas árvores e a imagem menor de outra mulher com traje semelhante.

Crédito, Klawe Rzeczy

Médicos ouvidos pela BBC dizem que, desde o início do conflito, houve um forte aumento no número de vítimas de violência sexual que têm atendido.

"Elas chegam tremendo, intimidadas a ponto de não conseguir falar", relata um deles.

Mesmo assim, as que procuram ajuda relutam em identificar os agressores e raramente buscam justiça, em parte porque o conflito levou à ruptura da lei e da ordem. A maioria procura atendimento médico por medo de gravidez.

Outras chegam muito tempo depois do ataque, quando certos medicamentos para as ISTs contraídas, como o HIV, já não são eficazes. O HIV pode ser prevenido com profilaxia pós-exposição, mas só é eficiente se administrado logo após o contato sexual com alguém infectado.

Outro médico observa que muitas vítimas dizem não conseguir atendimento rápido por causa da interrupção do transporte e dos bloqueios de estradas provocados pelo conflito.

Um médico sênior alerta que teme o surgimento de uma crise de saúde pública e social, citando sinais de aumento de infecções por HIV e de problemas de saúde mental.

Com base nas informações coletadas pelos centros de saúde, eles afirmam ter "identificado sinais de que as infecções por HIV podem aumentar e que problemas de saúde mental e psicológicos podem atingir níveis catastróficos", observando que algumas vítimas chegaram a tentar suicídio.

Dados do Ministério da Saúde da Etiópia mostram que, em 2022, a taxa de HIV na região era de cerca de 1,1 por 100 pessoas — acima da média nacional.

Embora os ataques tenham sido praticados por ambos os lados do conflito, funcionários de saúde relatam ver mais casos envolvendo soldados do Exército etíope do que milicianos Fano. Um funcionário do governo com acesso a informações relevantes, que concordou em falar sob condição de anonimato, também confirmou esse cenário.

A maioria dos casos de estupro foi registrada em áreas urbanas, onde o Exército mantém bases e exerce controle; especialistas, porém, destacam que moradores de cidades têm melhor acesso a tratamento e, portanto, são mais propensos a buscar ajuda e denunciar agressões.

A BBC não conseguiu entrevistar vítimas de ataques por combatentes Fano devido à falta de acesso aos locais onde a milícia está baseada.

 Eritreia, ao norte, e Sudão e Sudão do Sul, a oeste.

Em junho de 2024, o Escritório do Alto Comissariado da Organização das Nações Unidas (ONU) para os Direitos Humanos relatou que o Força de Defesa Nacional da Etiópia cometeu violência sexual, inclusive contra menores, na região de Amhara durante o conflito com a milícia Fano.

A BBC enviou perguntas ao Ministério da Defesa etíope mas, apesar de meses de espera, não obteve resposta. Pedidos repetidos de informações detalhadas às autoridades regionais também não tiveram sucesso.

Um líder do grupo Fano, Asres Mare Damtie, disse à BBC que o grupo não tinha conhecimento de envolvimento de seus combatentes, afirmando que nenhuma acusação foi feita contra eles e que a milícia aplica punição severa, incluindo a pena de morte, a infratores.

A BBC apurou que uma investigação encomendada pelo governo e conduzida pela Universidade Bahir Dar sobre violência sexual relacionada ao conflito contra mulheres em Amhara foi iniciada, e os resultados devem ser divulgados publicamente nos próximos meses.

Em 2021, quando o Exército e seus aliados, que então incluíam o Fano, enfrentaram acusações semelhantes sobre sua atuação no conflito de Tigray, o governo condenou o uso do estupro, mas considerou as denúncias "parciais e falhas".

Até hoje, nenhuma ação oficial contra os responsáveis foi divulgada publicamente.

A Anistia Internacional expressou preocupação com o que considera um padrão persistente de impunidade no Exército etíope. "Não há esforço significativo para levar os responsáveis à Justiça", afirmou a pesquisadora regional da organização, Haimanot Ashenafi.

"Eles continuam lutando, continuam aí, sem consequências pelo que fizeram… sobreviventes que passaram por uma experiência que muda a vida merecem justiça."

Para Enat, as consequências do ataque são profundas.

Um mês após a agressão, ela deixou sua aldeia para fugir do trauma. Foi então que descobriu que estava grávida em decorrência do estupro.

"Comecei a vomitar", lembra.

Ela pensou em fazer um aborto, permitido por lei na Etiópia até a 12ª semana de gestação quando a mulher é estuprada, mas teve medo.

"Temi a Deus e temi por minha mãe. O que seria dela se eu morresse no aborto?"

Ela deu à luz uma menina no início de setembro, após três dias de trabalho de parto.

Apesar do que aconteceu, Enat considera a bebê um "presente de Deus".

Hoje vive com um parente e não consegue trabalhar porque precisa cuidar da filha. Ela teme o futuro e como vai sustentar a criança e a si mesma.

"Se isso é considerado viver, então sim, estou vivendo", disse.