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Congresso teve senadores negros que história apresentou como brancos

Quando Abdias Nascimento (PDT-RJ) tomou posse no Senado, em 1991, políticos e jornalistas afirmaram que enfim surgia o primeiro senador negro do Brasil.

O próprio Abdias, ativista do movimento negro, desmentiu o pioneirismo e apontou a existência antes dele de 22 senadores negros.

"Tive de usar de uma sagacidade de pesquisador, indo a dezenas de fontes, para chegar a esse número. Isso porque aqueles 22 senadores não assumiram a sua condição de afro-brasileiros, muito menos as causas da negritude".

Abdias incluiu na relação Rodrigues Alves (SP) e Nilo Peçanha (RJ), que foram presidentes, e Tancredo Neves (MG), que morreu antes de receber a faixa.

Encontrou senadores negros até no Império, período em que a escravidão vigorava, como o Barão de Cotegipe (BA) e Zacarias de Gois e Vasconcelos (BA), primeiros-ministros do Brasil.

Para Abdias, o equívoco dos políticos e da imprensa era compreensível

"Por um processo de autorrejeição da própria identidade, [os senadores] omitiram-na em seus currículos. Biógrafos e historiadores tentaram mascarar identidades, driblar genealogias. Pintores e fotógrafos europeizaram fisionomias, criaram cabelereiras, procurando esconder o ‘estigma’ africano".

Da lista de 22 senadores, um dos últimos a ser identificado foi Tancredo.

"Seria leviano afirmar que nas veias do mineiro corria o nobre sangue africano?", perguntou. "Creio que não, levando em consideração seus traços fisionômicos, assim como de muitos de seus familiares, conforme testemunha seu primo [negro] dom Lucas Moreira Neves, cardeal primaz do Brasil."

Abdias esteve cara a cara com Tancredo em 1984, quando apresentou ao candidato presidencial as demandas do movimento negro.

No tempo da escravidão, foram seis os senadores negros: os Viscondes de Jequitinhonha (BA) e de Inhomirim (RN), Manuel de Assis Mascarenhas (RN), Francisco Otaviano (RJ) e os já citados Cotegipe e Zacarias.

Segundo Abdias, senadores negros foram decisivos na derrubada da escravidão. "Jequitinhonha foi um dos primeiros a condenar a importação de africanos escravizados e propôs o fim do tráfico negreiro", disse.

"Filho de uma quitandeira, [Inhomirim] condenou a escravidão como sistema desumano, jurídico e anticristão".

Cotegipe, por outro lado, foi descrito como "o maior escravocrata que o Parlamento conheceu":

"Mesmo sendo negro, lutou tenazmente contra a abolição. Insistiu até a sanção da Lei Áurea na indenização aos senhores escravocratas".

A historiadora Ana Flávia Magalhães Pinto, diretora do Arquivo Nacional e professora da Universidade de Brasília (UnB), afirma que o Império tinha mais negros nascidos livres do que se supõe. "O subdimensionamento se deve a uma matriz de memória que reduz a presença negra nesse período à imagem do escravizado".

Ela explica que os negros da elite imperial optavam por silenciar a própria identidade.

"Que vantagem havia em explicitar algo que não era tratado como virtude? Personagens de destaque até tiveram a ascendência apontada em debates, mas como forma de ataque. Por isso, embora todos vissem o óbvio, eles preferiram sustentar um pacto de silêncio".

Na República, foram 16 os senadores negros antes de Abdias, segundo o levantamento. Um dos primeiros foi Rodrigues Alves.

"Os biógrafos de Rodrigues Alves se penduram na nacionalidade portuguesa do pai para ignorar a sua negritude, à qual se referem eufemisticamente como ‘morenice’, legado da mãe afro-brasileira, Nhá Bela", criticou Abdias.

Ele contou que quis escrever um livro sobre "os grandes africanos que ajudaram a construir este país" e procurou um descendente do presidente e senador Nilo Peçanha.

"Fui repreendido por esse membro da família, que não admitia sequer a mestiçagem, considerando tal versão uma infâmia", disse.

"A atitude desse familiar não é de estranhar", afirmou. "Ele viveu numa época em que a intelectualidade e a liderança política do país cultivavam uma preocupação constante, beirando a histeria, com a suposta inferioridade da nossa população ‘mestiça’, tingida pela ‘mancha’ do sangue africano."

Segundo seu levantamento, a República também teve os senadores negros Manuel Vitorino (BA), Severino Vieira (BA), Francisco Glicério (SP), os irmãos João Mangabeira (BA) e Otávio Mangabeira (BA), Fernando Melo Viana (MG), Fernandes Távora (CE) e seu filho Virgílio Távora (CE), Mozart Lago (DF), Antônio Balbino (BA) e Nelson Carneiro (RJ).

Fecham a lista, no início dos anos 1980, Valdon Varjão (MT) e Laélia de Alcântara (AC).

Abdias se equivocou quando informou que todos os 22 silenciaram quanto à negritude. Documentos do Arquivo do Senado revelam que Varjão e Laélia se posicionaram.

Em seu primeiro discurso, Varjão disse: "somente invocando a influência da fatalidade posso explicar a minha presença nesta Casa. Na condição de homem de cor, todas as possibilidades estavam contra mim".

Ele escolheu a dedo a data para subir à tribuna: 13 de maio.

"A história assinala hoje a libertação da raça negra. A liberdade fora conseguida, mas começava outra luta, a da integração. Numa retardada vingança, os brancos puniam com a discriminação, tentando anular os efeitos da abolição".

Laélia, por sua vez, afirmou que "ao contingente de cor" restavam os subempregos, por incentivo de "uma sociedade interessada em manter à sua disposição um celeiro de domésticas e lavadores de automóveis".

Brasília Hoje

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A historiadora Ana Flávia Pinto entende que a existência de uma elite com sangue africano não aparece nos livros porque a história oficial nunca aceitou o protagonismo negro.

"A sociedade não foi educada para se orgulhar das personalidades negras, em especial quando ocupam lugares não associados à presença negra. A tentativa de embranquecimento de Machado de Assis é um dos melhores exemplos".

Em 1991, Abdias cobrou: "a verdade nos foi negada e agora tem que ser ensinada nas escolas, para restituir ao contingente majoritário da nossa gente o autorrespeito, a autoestima e a dignidade, fontes do protagonismo e da realização humana".

"Se sou ou não o primeiro, pouco importa", concluiu o senador. "Importa, sim, cumprir este mandato lutando pelas causas do povo afro-brasileiro, que são as causas da nossa nação".

Os primeiros senadores negros, segundo Abdias

  1. Manuel de Assis Mascarenhas (RN): 1850-1866
  2. Visconde de Jequitinhonha (BA): 1851-1870
  3. Barão de Cotegipe (BA): 1856-1889
  4. Zacarias de Gois e Vasconcelos (BA): 1864-1877
  5. Francisco Otaviano (RJ): 1867-1889
  6. Visconde de Inhomirim (RN): 1868-1875
  7. Manuel Vitorino (BA): 1892-1894
  8. Rodrigues Alves (SP): 1893-1899 e 1916-1917
  9. Severino Vieira (BA): 1895-1898 e 1906-1911
  10. Francisco Glicério (SP): 1902-1916
  11. Nilo Peçanha (RJ): 1903-1904, 1912-1914 e 1921-1924
  12. João Mangabeira (BA): 1930
  13. Fernando Melo Viana (MG): 1946-1955
  14. Fernandes Távora (CE): 1947-1963
  15. Mozart Lago (DF): 1951-1955
  16. Otávio Mangabeira (BA): 1959-1960
  17. Antônio Balbino (BA): 1963-1971
  18. Virgílio Távora (CE): 1971-1978 e 1983-1988
  19. Nelson Carneiro (RJ): 1971-1995
  20. Tancredo Neves (MG): 1979-1983
  21. Valdon Varjão (MT): 1980-1982
  22. Laélia de Alcântara (AC): 1981 e 1982-1983
  23. Abdias Nascimento (RJ): 1991-1992 e 1997-1999
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