- Author, Leandro Prazeres*
- Role, Da BBC News Brasil em Brasília
Há 2 minutos
Algumas dessas medidas, no entanto, levantaram dúvidas se haveria uma concentração excessiva de poder nas mãos do governante.
Um dos pontos que mais preocupam é a tentativa de impor limites às manifestações populares, uma vez que as medidas propostas pelo governo deverão continuar levando os argentinos às ruas.
Outro ponto de atenção, segundo analistas ouvidos pela BBC News Brasil, é a proposta de declarar situação de emergência pública até 2025 (prorrogável até 2027).
Isso permitiria ao presidente tomar medidas em diversas áreas sem que os temas sejam debatidos previamente pelo Legislativo, dizem os especialistas.
As propostas apresentadas por Milei justificam essa e outras medidas sob o argumento de que a situação atual do país requer esse tipo de mecanismo.
"Nenhum governo federal recebeu uma herança institucional, econômica e social pior do que a que recebeu a atual administração, o que faz com que seja imprescindível adotar medidas que permitam superar a situação de emergência criada pelas excepcionais condições econômicas e sociais pelas quais a Nação padece", diz um trecho de decreto assinado por Milei.
A BBC News Brasil enviou questionamentos à assessoria de imprensa da Presidência argentina, mas até o momento não foi dada nenhuma resposta.
Após os anúncios de Milei, foram registrados "panelaços" e manifestações em diversas cidades. A Confederação Geral do Trabalho (CGT), uma das principais entidades sindicais do país, convocou uma greve geral para o dia 24 de janeiro.
Concentração de poder?
As reformas no novo governo argentino foram divulgadas em três etapas.
Na primeira, foram anunciadas "dez medidas emergenciais" para lidar com a crise econômica, incluindo a desvalorização do peso argentino em relação ao dólar.
A segunda foi um decreto com 366 pontos que prevê, entre outras coisas, uma "emergência pública" em temas econômicos, fiscais, sociais, entre outros, até 2025.
A terceira etapa foi um projeto de lei enviado por Milei ao Congresso nesta semana que ficou conhecido como "Lei Ómnibus" (que em português seria algo como "Lei de Todas as Coisas"), por conta da sua extensão.
Entre vários tópicos, a lei propõe: a possibilidade de ampliar a emergência decretada até 2027, abrangendo todo o mandato de Milei; a privatização de aproximadamente 40 empresas estatais; mudanças no sistema eleitoral e na composição da Câmara dos Deputados.
Em meio a esse turbilhão, o argumento do governo de que a situação atual do país exigiria medidas excepcionais parece não convencer alguns especialistas.
"Se isso se concretizar [a ampliação da situação de emergência até 2027], estaríamos dando, nas mãos de uma só pessoa, a soma do Poder Público", diz o advogado constitucionalista argentino Daniel Sabsay à BBC News Brasil.
"O Congresso seria apenas um desenho, não existiria. É como se nós o fechássemos", sentencia ele.
Ariel Goldstein, professor de Política da América Latina na Universidade de Buenos Aires, avalia que, se as reformas propostas por Milei forem implementadas, ele teria "superpoderes" para governar o país.
"Ele está tentando construir uma concentração de poder em suas mãos que está de acordo com sua forma de ver o mundo em que não há espaço para nuances", afirma.
Goldstein vê com preocupação a forma como Milei utiliza o conceito de emergência.
"É como se ele [Milei] estivesse dizendo que o país enfrenta uma crise tão grande que não há tempo para negociar com o Parlamento, que apenas ele pode tirar o país dessa situação e isso é perigoso", acrescenta.
Na Argentina, analistas avaliam que as chances de que todas as mudanças anunciadas por Milei sejam implementadas são pequenas porque o decreto e a lei precisam ser aprovados pelo Congresso para que sejam implementados no longo prazo.
O problema para Milei, apontam, é que seu partido, Liberdade Avança, tem hoje aproximadamente 40 cadeiras na Câmara e sete no Senado, o que representa apenas 15% de todo o Parlamento.
Restrições a manifestações
Outro ponto destacado pelos analistas como um fator de preocupação é o aumento de punições e a imposição de limites para manifestações na Argentina.
Na primeira semana de mandato, o governo de Javier Milei anunciou um novo protocolo para lidar com protestos.
Entre as medidas divulgadas está a previsão de que manifestantes que recebam benefícios sociais possam perder os valores, caso se envolvam em protestos que resultem no bloqueio de vias, por exemplo.
"As pessoas devem decidir. Ou vão aos protestos e perdem o plano social ou ficam em casa e buscam fazer algum trabalho”, disse a ministra de Segurança, Patrícia Bullrich.
A ministra defendeu que os "piquetes" e "bloqueios" do trânsito afetam "muitas empresas na Argentina" e "impedem que os argentinos vivam em paz".
Nesta semana, foi a vez da Lei Ómnibus sugerir mudanças nas penas para manifestantes.
O pacote traz novos limites aos protestos, aumentando as penas para até quatro anos de prisão para quem usar armas para interromper o serviço de transporte público — e até cinco anos para quem "dirigir, organizar ou coordenar uma reunião ou manifestação que impeça ou dificulte a circulação ou o transporte público ou privado".
Além disso, a lei proposta pelo governo prevê que toda aglomeração com três ou mais pessoas em espaços públicos precisa ser comunicada previamente ao Ministério da Segurança com pelo menos 48 horas de antecedência.
A Argentina é um país conhecido pela quantidade de manifestações nas ruas de suas cidades. Algumas delas, conhecidas como piquetes, envolvem o fechamento de vias.
Segundo Patrícia Bullrich, são registradas pelo menos 12 mil piquetes na Argentina todos os anos.
As medidas propostas pelo governo Milei em relação ao direito às manifestações geraram reações na sociedade civil argentina e temores de restrições à liberdade de reunião e expressão em um país que retornou à democracia apenas em 1983.
Ainda está viva a memória do período em que a Casa Rosada ficou sob o comando de uma ditadura militar acusada de ter sido responsável por aproximadamente 30 mil mortes ou desaparecimentos em sete anos.
"O protocolo publicado pelo Ministério de Segurança da Nação é interpretado como parte de uma estratégia para criminalizar o protesto social", disse uma nota da CGT em relação ao protocolo "antiprotesto" da ministra Bullrich.
Segundo a entidade, as medidas do governo "vulnerabilizam o exercício efetivo do direito constitucional à liberdade de expressão e de liberdade sindical".
Para Ariel Goldstein, o protocolo de Bullrich e a necessidade de comunicação prévia de reuniões em espaços públicos chamam atenção.
"De todas essas mudanças, esses são os aspectos que mais me preocupam, porque são uma reação prévia às manifestações que deverão ocorrer em resposta a todas essas medidas anunciadas pelo governo", diz Goldstein.
Os pacotes de medidas anunciados pelo governo já levaram parlamentares a se manifestarem contra o "decretaço" e a Lei Ómnibus.
Em resposta, Javier Milei admitiu a possibilidade de convocar um plebiscito caso as medidas sejam vetadas pelo Congresso argentino.
"Obviamente [que convocaria um plebiscito]. Que me diga o Congresso porque é contra algo que vai ser útil às pessoas?", disse Milei em entrevista à TV argentina LN+ na quarta-feira (27/12).
O constitucionalista argentino Daniel Sabsay explica que uma medida assim seria inédita.
Nenhum outro presidente argentino fez uma consulta popular desse tipo desde que a possibilidade foi criada com a reforma da Constituição de 1994.
Uma eventual aprovação das medidas de Milei em um plesbiscito também não significaria que elas seriam colocadas em prática, esclarece Sabsay.
Isso porque a Constituição argentina diz que o presidente só pode fazer consultas populares não vinculantes, ou seja, em que o Congresso nao é obrigado a seguir o resultado.
"O que Milei quer é pressionar o Congresso", diz Sabsay.
"É como se dissesse aos parlamentares: 'Vejam vocês o que pensa o povo. Se o povo vota a favor, vocês estarão votando contra o povo se votarem contra'."
O constitucionalista avalia que a sugestão de convocar um plebiscito caso as medidas sejam reprovadas pelo Parlamento é "muito ruim".
"Porque remete a governar por plebiscito, um recurso ao qual recorreram (Benito) Mussolini, (Joseph) Stalin, (Adolf) Hitler", afirma.
"Todos os piores ditadores sempre recorreram a plebiscistos."
Riscos para a democracia?
Ariel Goldstein avalia que, se todas as medidas sugeridas por Milei forem aprovadas, a democracia argentina pode enfrentar uma crise.
"Ainda não dá para dizer que não teremos mais democracia na Argentina. Provavelmente, ele não vai conseguir aprovar tudo", afirma.
O professor da Universidade de Buenos Aires estima que, da Lei Ómnibus, o governo consiga aprova "uns 60%". Os outros 40% precisarão ser negociados.
"Mas se ele [Milei] conseguir aprovar tudo isso, teremos uma crise muito grande na democracia argentina, porque aí o sistema de freios e contrapesos não terá funcionado", alerta.
Fabio Giambiagi é economista, pesquisador associado da Fundação Getúlio Vargas (FGV), filho de argentinos e viveu no país.
Ele avalia que o clima de tensão entre Milei e o Parlamento deverá continuar pelos próximos meses, em parte por conta da alta popularidade do governante.
Giambiagi diz ainda que Milei tem a seu favor o fato de que a oposição peronista estaria fragilizada e não teria, neste momento, força suficiente para se contrapor ao presidente.
"O governo hoje está em uma situação politicamente muito confortável porque os peronistas são vilões de caricatura", diz Giambiagi.
"Fizeram um governo desastroso, a popularidade dos sindicatos e das lideranças políticas do peronismo estão pelo chão. O governo acaba de assumir, então é fácil jogar a culpa de tudo o que está acontecendo no governo anterior."
O economista avalia, no entanto, que a Suprema Corte argentina deverá se manifestar contra parte das medidas propostas por Milei.
Além disso, o Parlamento do país deverá aguardar os próximos meses para calibrar que reação terá quanto à possibilidade de plebiscito levantada por Milei, caso seu pacote de medidas seja reprovado pelos congressistas.
"Faz parte de um estilo de governar que aqui no Brasil tem um certo sabor 'bolsonariano', mas que, com o tempo, acaba gerando desgaste", diz o economista, em referência ao ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro (PL), com quem Milei demonstra ter proximidade.
"O Congresso não vai enfrentá-lo agora, provavelmente, mas é difícil conservar essa popularidade", observa Giambiagi.
"Possivelmente, o que vai acontecer é que, se a inflação começar a desgastar e enfraquecer o governo, o Congresso dará o troco."
*Com reportagem de Letícia Mori e Rafael Barifouse
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