- Author, Laura Gozzi
- Role, BBC News
Há 24 minutos
Aviso: esta reportagem contém relatos de abuso sexual.
Era novembro de 2011 e Gisèle Pelicot estava dormindo demais. Ela passava a maior parte dos fins de semana dormindo.
Ela estava irritada, porque durante a semana trabalhava duro como gerente de cadeia de suprimentos, e seu tempo livre era precioso. No entanto, ela não conseguia ficar acordada, muitas vezes cochilando sem nem perceber e acordando horas depois sem nenhuma lembrança de ter ido para a cama.
Apesar disso, Gisèle, 58, estava feliz. Ela se considerava sortuda por ter seu marido de 38 anos, Dominique, ao seu lado. Agora que seus três filhos Caroline, David e Florian estavam crescidos, o casal estava planejando se aposentar em breve e se mudar para Mazan, uma vila de 6.000 pessoas na idílica região sul da Provença, na França, onde ele podia andar de bicicleta e ela podia levar Lancôme, seu buldogue francês, para longas caminhadas.
Ela amava Dominique desde que se conheceram no início dos anos 1970. "Quando vi aquele rapaz de suéter azul, foi amor à primeira vista", diria Gisèle, muito mais tarde.
Ambos tinham histórias familiares complicadas, marcadas por perdas e traumas, e encontraram paz um com o outro. Em suas quatro décadas juntos passaram por momentos difíceis - problemas financeiros frequentes e seu caso com um colega em meados da década de 1980 - mas eles conseguiram superar.
Anos depois, quando um advogado pediu para resumir seu relacionamento, ela disse: "Nossos amigos costumavam dizer que éramos o casal perfeito. E eu pensei que viveríamos todos os nossos dias juntos."
Àquela altura, Gisèle e Dominique estavam sentados em lados opostos de um tribunal em Avignon, não muito longe de Mazan: ela cercada por seus filhos e seus advogados, e ele, vestido com roupas cinza fornecidas pela prisão, na área dos réus.
Ele enfrentava a pena máxima de prisão por estupro agravado e estava rapidamente se tornando conhecido na França como - nas palavras de sua própria filha - "um dos piores predadores sexuais dos últimos 20 anos".
Mas em 2011, quando Gisèle começou a perceber que estava dormindo demais, ela não poderia imaginar que as coisas iriam acontecer daquele jeito.
Ela não tinha ideia de que, com quase 50 anos e perto de se aposentar, seu marido Dominique Pelicot passava muito tempo na internet, frequentemente conversando com usuários em fóruns abertos e salas de bate-papo em que material sexual — geralmente extremo ou ilegal — estava disponível gratuitamente.
No tribunal, ele mais tarde apontaria essa fase como o gatilho para sua "perversão" após um trauma de infância de estupro e abuso: "Nós nos tornamos pervertidos quando encontramos algo que nos dá os meios: a internet."
Em algum momento entre 2010 e 2011, um homem que dizia ser enfermeiro enviou a Dominique fotos de sua esposa, drogada com pílulas para dormir a ponto de ficar inconsciente. Ele também compartilhou instruções precisas para que Pelicot pudesse fazer o mesmo com Gisèle.
No início, ele hesitou — mas não por muito tempo.
Por tentativa e erro, ele percebeu que com a dosagem certa de pílulas ele poderia mergulhar sua esposa em um sono tão profundo que nada a acordaria. Elas foram legalmente prescritas por seu médico, que achava que Pelicot sofria de ansiedade devido a problemas financeiros.
Ele então era capaz de vesti-la com lingeries que ela não usava normalmente, ou submetê-la a práticas sexuais que ela nunca teria aceitado se estivesse consciente. Ele também podia filmar as cenas, algo ela também não teria permitido.
Inicialmente, ele foi o único a estuprá-la. Mas quando o casal se estabeleceu em Mazan em 2014, ele já havia aperfeiçoado e expandido sua operação.
Ele guardava os tranquilizantes em uma caixa de sapatos na garagem. Em determinado momento, Dominique até trocou a marca do medicamente, porque o primeiro tinha um gosto "muito salgado" para ser adicionado secretamente à comida e bebida de sua esposa, ele confessou mais tarde.
Em uma sala de bate-papo, ele recrutou homens de todas as idades para abusarem de sua esposa.
Ele os filmou também.
Ele disse ao tribunal que o estado inconsciente de sua esposa era claro para os 71 homens que foram à casa deles ao longo de uma década. "Você é igual a mim, você gosta do modo estupro", ele disse a um deles no bate-papo.
Com o passar dos anos, os efeitos do abuso ao qual Gisèle era submetida à noite começaram a se infiltrar cada vez mais em sua vida desperta. Ela perdeu peso, tufos de cabelo caíram e seus apagões se tornaram mais frequentes. Ela estava cheia de ansiedade, certa de que estava se aproximando da morte.
Sua família ficou preocupada. Ela parecia saudável e ativa quando os visitou.
"Ligamos para ela, mas na maioria das vezes era Dominique quem atendia. Ele nos dizia que Gisèle estava dormindo, mesmo no meio do dia", disse seu genro Pierre.
"Mas parecia provável porque ela estava fazendo muita coisa [quando estava conosco], especialmente correndo atrás dos netos."
Visita à delegacia mudou tudo
Às vezes, Gisèle começava ter suspeitas. Uma vez, ela estranhou cor verde de uma cerveja que seu marido havia lhe entregado e a despejou rapidamente na pia.
Outra vez, ela notou uma mancha de alvejante que não se lembrava de ter derrubado em uma calça nova. "Você não está me drogando por acaso, está?", ela se lembra de ter perguntado a ele. Ele desabou em lágrimas: "Como você pode me acusar de uma coisa dessas?"
No entanto, na maioria das vezes, ela se sentia sortuda por tê-lo com ela enquanto lidava com seus problemas de saúde. Ela desenvolveu problemas ginecológicos e passou por vários testes neurológicos para determinar se estava sofrendo de Alzheimer ou de um tumor cerebral, mas os resultados não explicaram o cansaço crescente e os apagões.
Vários anos depois, durante o julgamento, o irmão de Dominique, Joel, um médico, foi questionado sobre como era possível que os profissionais médicos nunca tivessem juntado as pistas e entendido que Gisèle era vítima do fenômeno pouco conhecido de submissão química - estupro facilitado por drogas. "No campo da medicina, só encontramos o que procuramos e procuramos o que conhecemos", ele respondeu.
Gisèle só se sentiu melhor quando estava longe de Mazan — uma estranheza que ela mal notou.
Foi ao retornar de uma dessas viagens, em setembro de 2020, que Dominique lhe disse, em lágrimas: "Fiz uma coisa estúpida. Fui pego filmando por baixo de roupas femininas em um supermercado", ela lembrou durante o julgamento.
Ela ficou muito surpresa, disse ela, porque "em 50 anos ele nunca se comportou de forma inapropriada ou usou palavras obscenas com mulheres".
Ela disse que o perdoou, mas pediu que ele prometesse que procuraria ajuda. Ele concordou, "e deixamos por isso mesmo", disse ela.
Mas Dominique deve ter sabido que o fim estava próximo.
Logo depois que ele foi preso no supermercado, a polícia confiscou seus dois telefones e seu laptop, onde inevitavelmente encontrariam mais de 20.000 vídeos e fotos de sua esposa sendo estuprada por ele e outros.
"Assisti a esses vídeos por horas. Foi preocupante. Claro que teve um impacto em mim", disse Jérémie Bosse Platière, o diretor da investigação, ao tribunal.
"Em 33 anos na polícia, eu nunca tinha visto esse tipo de coisa", disse seu colega Stéphane Gal. "Foi sórdido, foi chocante."
Sua equipe foi encarregada de rastrear os homens nos vídeos. Eles cruzaram os rostos e nomes dos homens cuidadosamente registrados por Dominique junto com a tecnologia de reconhecimento facial.
Eles finalmente conseguiram identificar 54 deles - outros 21 permaneceram sem identidade.
Alguns dos homens que não foram identificados disseram em conversas com Dominique que também estavam drogando suas parceiras. "Essa, para mim, é a parte mais dolorosa do caso", diz Bosse Platière. "Saber que existem algumas mulheres por aí que ainda podem ser vítimas de seus maridos."
Em 2 de novembro de 2020, Dominique e Gisèle tomaram café da manhã juntos antes de irem para uma delegacia de polícia, onde Pelicot deveria prestar depoimento sobre o caso envolvendo as filmagens por baixo das roupas de mulheres.
Um policial pediu a ela que o seguisse para outra sala. Ela confirmou que Dominque era seu marido - "um cara legal, um bom homem" - mas negou ter participado de práticas como troca de casal ou sexo a três com ele.
"Vou te mostrar algo que você não vai gostar", o chefe de polícia avisou, antes de mostrar a ela uma foto de um ato sexual.
A princípio, ela não reconheceu nenhuma das duas pessoas. Quando entendeu o que estava vendo, "eu disse a ele para parar... Tudo desabou, tudo que eu construí por 50 anos".
Ela foi mandada para casa em estado de choque, acompanhada por uma amiga. Ela teve que contar aos filhos o que havia acontecido.
Relembrando aquele momento, Gisèle disse que "os gritos de sua filha estão gravados para sempre em minha mente".
Caroline, David e Florian foram até Mazan e limparam a casa. Mais tarde, fotos de Caroline aparentemente drogada também foram encontradas no laptop de Dominique, embora ele tenha negado ter abusado dela.
'Não dá para imaginar o inimaginável'
David, o filho mais velho, disse que eles não têm mais fotos de família porque "se livraram de tudo relacionado ao meu pai ali mesmo". Em poucos dias, a vida de Gisèle foi reduzida a uma mala e seu cachorro.
Enquanto isso, Dominique admitiu seus crimes e foi formalmente preso. Ele agradeceu à polícia por "aliviá-lo de um fardo".
Ele e Gisèle não se encontrariam novamente até que se sentassem frente a frente no tribunal de Avignon em setembro de 2024.
Naquela época, a história do marido que drogou sua esposa por uma década e convidou estranhos para estuprá-la começou a se espalhar pelo mundo, auxiliada pela decisão incomum e notável de Gisèle de renunciar ao seu anonimato e abrir o julgamento ao público e à mídia.
"Quero que qualquer mulher que acorde uma manhã sem lembranças da noite anterior se lembre do que eu disse", afirmou ela. "Para que nenhuma outra mulher seja vítima da submissão química. Fui sacrificada no altar do vício, e precisamos conversar sobre isso."
Sua equipe jurídica também pressionou com sucesso para que os vídeos gravados fossem exibidos no tribunal, argumentando que eles derrubariam "a tese de estupro acidental" — os homens acusados de participar dos abusos alegam que não pretendiam estuprar Gisèle e que não perceberam que ela estava inconsciente.
"Ela queria que a vergonha mudasse de lado e mudou", disse uma mulher que foi assistir ao julgamento em Avignon em novembro. "Gisèle virou tudo de cabeça para baixo. Não esperávamos uma mulher assim."
A legista Anne Martinat Sainte-Beuve disse que, após a prisão do marido, Gisèle estava claramente traumatizada, mas calma e distante — um mecanismo de enfrentamento frequentemente empregado por sobreviventes de ataques terroristas.
A própria Gisèle disse que é "um campo de ruínas" e que teme que o resto de sua vida não seja suficiente para se reconstruir.
A Sainte-Beuve disse que achou Gisèle "excepcionalmente resiliente": "Ela transformou o que poderia tê-la destruído em força."
Dias antes do início do julgamento, o divórcio dos Pelicots foi finalizado.
Gisèle voltou a usar seu nome de solteira. Ela passou a usar o nome Pelicot no julgamento para que seus netos pudessem ter "orgulho" de serem parentes dela e não vergonha de serem associados a Dominique.
Desde então, ela se mudou para uma vila longe de Mazan. Ela consulta um psiquiatra, mas não toma nenhum medicamento, porque não quer mais ingerir nenhuma substância. Ela continua a fazer longas caminhadas, mas não está mais cansada.
Nos primeiros dias do julgamento, o marido de Caroline, Pierre, prestou depoimento.
Um advogado de defesa perguntou a ele sobre os anos em Mazan, quando Gisèle sofria de perda de memória e seu marido a acompanhava obedientemente a consultas médicas infrutíferas. Como a família não percebeu o que estava acontecendo?
Pierre balançou a cabeça.
"Você está esquecendo de uma coisa", disse ele. "Não dá para imaginar o inimaginável."
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