No início do cessar-fogo, a pretexto de punir o Hamas pela demora na entrega de restos mortais de reféns, as forças israelenses limitaram a entrada de ajuda humanitária em Gaza. Foi um gesto perverso, uma nova violação das leis de guerra. O Hamas não foi punido, pois tem alimentos e combustíveis à vontade. A punição recaiu sobre a população civil de Gaza. O conceito que a sustenta é a identificação do Hamas com o povo palestino.
Salem Nasser, da FGV-SP, acusou Lula de desferir "um golpe injusto contra os palestinos" ao afirmar que o Brasil tem um problema com Netanyahu, não com Israel (tinyurl.com/mwfarjbe). Segundo ele, o presidente "comete um erro factual ao sugerir que a política de Netanyahu não tem o apoio da população de Israel e que essa mesma política não seria a do Estado como um todo". Seu conceito operativo espelha o utilizado pelo governo de Israel: a identificação do governo de Netanyahu com a nação israelense.
O obstáculo de fundo à paz na Terra Santa não são as fronteiras, os assentamentos ou o estatuto de Jerusalém. É o conceito de que o outro encarna o mal absoluto —uma nação "genocida" ou uma nação "terrorista"— e, portanto, precisa ser exterminado.
São duas narrativas paralelas contadas incansavelmente desde antes da fundação do Estado judeu. De um lado, os arautos do Grande Israel repetem as histórias (verdadeiras) dos planos de paz recusados pelos palestinos e dos atos de terror cometidos contra israelenses ou judeus da diáspora. Do outro, os arautos do rejeicionismo de Israel repetem as histórias (verdadeiras) da expulsão dos palestinos em 1948, da implantação de assentamentos na Cisjordânia e dos massacres perpetrados pelas forças israelenses.
As duas verdades simétricas não formam empreendimentos historiográficos. São plataformas destinadas a avançar um objetivo político: o "Grande Israel, do rio até o mar", numa versão, ou a "Palestina Livre, do rio até o mar", na outra. Os extremismos polares envenenam a opinião pública, na Terra Santa e fora dela, enterrando as vozes racionais sob pilhas de detritos ideológicos.
O Estado de Israel, segundo Salem Nasser, é igual a Netanyahu e seus cavaleiros da limpeza étnica. Nele, inexistem Rabin, assassinado pela assinatura dos Acordos de Oslo, Barak ou Olmert, autores de mapas da paz, líderes que denunciaram os crimes de Israel na campanha militar deflagrada pelo 7 de outubro de 2023.
Já a Palestina, segundo os supremacistas judaicos, é igual aos fundamentalistas antissemitas do Hamas, que sonham destruir o Estado judeu. Nela, inexistem Arafat, signatário de Oslo, ou Marwan Barghouti, o líder que o governo israelense não liberta justamente por almejar a paz em dois Estados.
Lula erra muitas vezes, na tática e no tom, quando aborda o conflito na Terra Santa. Acerta sempre, porém, no terreno dos princípios. Ao dizer que o Brasil nada tem contra Israel, reafirma a histórica posição brasileira de defesa da solução incontornável de paz: a convivência entre o Estado judeu e um Estado palestino. Nesse passo, contraria os interesses dos que enxergam o cessar-fogo como curto parêntesis na guerra sem fim pelo Estado único, "do rio até o mar".
O suposto ódio eterno, atávico, entre os dois povos é um mito. A cólera deve ser semeada todos os dias, pela palavra. O "pecado" de Lula é não semeá-la.
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