Atriz que interpreta Belle Gibson na série da Netflix

Crédito, Netflix

Legenda da foto, Belle Gibson usava suas redes sociais para propagar a ideia de que suas dietas a curaram de uma doença terminal e servir de inspiração para outras pessoas
  • Author, Laura Martin
  • Role, BBC Culture
  • Há 22 minutos

Uma nova minissérie da Netflix conta a história de uma influenciadora australiana que mentiu sobre ter uma doença terminal para promover terapias alternativas. Uma década depois, a história continua servindo como alerta.

Em 2013, uma história notável e contra todas as probabilidades de sobrevivência chegou às manchetes dos jornais quando uma jovem lançou o que se tornaria um aplicativo de bem-estar no topo dos mais vendidos, com conselhos sobre como ela havia vencido o câncer.

Apenas quatro anos antes, em 2009, a blogueira australiana Belle Gibson, então com 20 anos, havia, segundo seu próprio relato, sido diagnosticada com um "câncer cerebral maligno" e recebido uma estimativa de "seis semanas, quatro meses no máximo" de vida.

No entanto, ela alegou que havia escolhido interromper o tratamento de quimioterapia e radioterapia e, em vez disso, embarcado em "uma busca para me curar naturalmente... por meio da nutrição, paciência, determinação e amor".

Com 200 mil seguidores no Instagram — na época, em seus primórdios — que seguiam avidamente sua jornada, ela lançou o aplicativo de bem-estar e nutrição de sucesso, seguido por um livro de receitas, chamado The Whole Pantry (A Despensa Toda, em tradução livre).

A ideia era creditar sua dieta por curá-la da doença terminal e inspirar outros pacientes a segui-la em "salvar a própria vida".

Ela foi apelidada de "a mulher mais inspiradora que você conheceu este ano" pela revista Elle Austrália, enquanto em 2014, a Cosmopolitan deu a ela um prêmio de "Mulher Divertida e Destemida".

A verdadeira Belle Gibson do lado de fora de tribunal em 2019

Crédito, Alamy

Legenda da foto, A verdadeira Belle Gibson do lado de fora de tribunal em 2019

No entanto, era tudo mentira. Gibson nunca havia sido diagnosticada com câncer no cérebro, nem o "câncer no sangue, baço, cérebro, útero e fígado" que ela posteriormente alegou que também havia sido diagnosticada.

Isso foi feito em uma postagem no Instagram em 2014, quando rumores começaram a surgir na imprensa australiana de que ela poderia ser uma fraude.

Finalmente, em abril de 2015, ela admitiu a verdade em uma entrevista para a revista Women's Weekly. "Não, nada disso é verdade", disse, mas se recusando a assumir mais responsabilidade, ela acrescentou: "Ainda estou pulando entre o que acho que sei e o que é realidade. Eu vivi isso e ainda não cheguei lá."

Como a história é dramatizada

Atriz que interpreta Belle Gibson em cena da série Vinagre de Maçã

Crédito, Netflix

Legenda da foto, A minissérie Vinagre de Maçã apresenta a estrela em ascensão Kaitlyn Dever como Belle Gibson

Essa ofuscação da realidade — e a ginástica mental das "explicações" de Gibson para suas ações — são a espinha dorsal de Apple Cider Vinegar (Vinagre de Maçã, seu título em português).

Trata-se de uma dramatização brilhante e pop lançada esta semana pela Netflix, contando todo o escândalo.

A idealizadora da produção, Samantha Strauss, foca no relacionamento instável de Gibson com a verdade na maneira como ela conta a história. Da linha do tempo caótica, que salta entre personagens e eventos de 2009 até 2015, até a maneira como ela mistura fatos relatados com sequências ficcionais — uma montagem exagerada onde os personagens principais dublam a música Toxic, de Britney Spears.

Há ainda a aparição de um personagem médico que Gibson alega tê-la tratado, mas nunca provou que existiu — a minissérie torna propositalmente difícil entender o que realmente aconteceu. Dito isso, como uma série baseada em uma mentirosa patológica poderia ser interpretado de forma totalmente única?

Notavelmente, após as consequências de Bebê Rena em 2024 — a Netflix está sendo processada por uma mulher, que alega ter sido identificada na série. A cada episódio, um aviso dizia: "Esta é uma história real". Apple Cider Vinegar também adverte o drama com uma isenção de responsabilidade ligeiramente diferente a cada episódio.

O aviso é: "Esta é uma história real baseada em uma mentira" e "A produção é inspirada em uma história real. Alguns personagens e eventos foram criados ou ficcionalizados."

A série segue os passos bem sucedidos de outros dramas de golpistas contadas na TV.

Uma delas é Inventando Anna, que se concentrou na história da "falsa herdeira" Anna Delvey/Sorokin, condenada por tentativa de furto qualificado e furto em segundo grau em 2019.

Outro exemplo é Dropout (Hulu/Disney+), na qual Amanda Seyfried interpretou Elizabeth Holmes, a fraudadora do Vale do Silício que falsificou diagnósticos de exames de sangue com sua empresa de tecnologia médica, Theranos, e em 2022 foi condenada por quatro acusações de fraude. Ela cumpre sentença de 11 anos e três meses de detenção.

Assim como Sorokin e Holmes, Gibson — interpretada com uma duplicidade encantadora e assustadora por Kaitlyn Dever — também é retratada como a personificação do objetivo da cultura que prega o "finja até conseguir" e que acaba se tornando uma ideologia perigosa, em vez de um mantra positivo de autoajuda.

A série também deve ser um sinal de alarme para qualquer um que ainda aceite cegamente conselhos médicos de influenciadores sem qualificações médicas, mas com muitos seguidores nas redes.

A indústria global de bem-estar valia US$ 6,3 trilhões (R$ 36,5 milhões) em 2023, mas continua contendo elementos sombrios — com casos de pessoas manipulando e prejudicando aqueles que buscam terapias holísticas.

Apenas recentemente, em dezembro, Hongchi Xiao, um curandeiro alternativo, foi condenado por homicídio culposo depois que uma mulher diabética de 71 anos parou de tomar insulina durante um retiro que ele estava realizando. E, em 2024, a influenciadora de bem-estar brasileira Kat Torres foi considerada culpada de tráfico humano e escravidão.

Gibson foi uma das primeiras de uma nova geração de golpistas que usaram as redes sociais e aplicativos para enganar as pessoas — veja também Simon Leviev, em O Golpista do Tinder, que enganou mulheres para conseguir dinheiro em aplicativos de namoro.

Também há Hargobind Tahilramani e The Hollywood Con Queen (O Golpe da Rainha de Hollywood, em tradução livre), que explorou pessoas que trabalhavam na indústria cinematográfica, fingindo ser atores e diretores famosos.

Mas mesmo em comparação com esses escândalos de golpes, a fraude de Gibson ainda continua sendo um truque incrivelmente cruel de se fazer: fingir uma doença terminal em grupos de vaquinha online para explorar pessoas vulneráveis ​​de uma forma que lhe concedesse lucro comercial e fama.

"O que você precisa entender é que Belle não tem amigos, ela tem anfitriões", diz a personagem da empresária de Gibson, Chanelle (Aisha Dee), inspirada em sua ex-amiga da vida real, Chanelle McAuliffe. "Se, e somente se, ela achar que você é valioso, ela encontrará uma maneira de se apegar."

O impacto prejudicial que as mentiras de Gibson tiveram é destacado pelas histórias justapostas de duas outras mulheres na série. Milla Blake (interpretada por Alycia Debnam-Carey) é uma jornalista de 22 anos que descobre que tem sarcoma epitelioide e escreve sobre sua doença em um blog.

Ela é inspirada em Jessica Ainscough, que na vida real alcançou a fama na internet em um momento semelhante ao de Gibson com seu site, Wellness Warrior, no qual ela documentou sua luta contra o diagnóstico do mesmo câncer.

Ainscough também promoveu o uso de terapias alternativas controversas, como as oferecidas pelo Instituto Gerson no México — que oferece um tratamento que alega ativar "a capacidade extraordinária do corpo de se curar por meio de uma dieta orgânica à base de plantas, sucos crus, enemas de café e suplementos naturais". No entanto, ela morreu de câncer mais tarde, aos 30 anos.

Na série, Gibson fica obcecada por Blake. Primeiro, se tornando parte de sua comunidade online, depois pegando emprestado não apenas suas experiências com câncer, mas seu tom de voz e frases, ao criar sua própria persona nas redes sociais.

Assim como Blake, Gibson afirma ser uma amiga confiável, amorosa e honesta para seus seguidores, dando conselhos de vida e defendendo fortemente tratamentos alternativos para doenças. (Para os curiosos - o título Vinagre de Maçã vem de uma anedota que Gibson contou na qual ela bebeu o líquido e alegou ter se livrado de uma tênia em sua boca.) Ambas as meninas são mostradas competindo desanimadamente para se tornarem a influenciadora favorita da luta contra o câncer nas redes sociais.

Uma terceira personagem, Lucy (Tilda Cobham-Hervey), é fictícia, mas uma pessoa importante para se inserir na história. Ela representa um número incalculável de seguidores de Gibson que foram realmente diagnosticados com câncer e podem ter sido influenciados a parar com tratamentos convencionais aprovados por médicos em favor do combate à doença, com suas sugestões de, entre outras coisas, comer vegetais orgânicos e tentar medicina ayurvédica, oxigenoterapia e terapia craniossacral.

É fácil ver como o mundo saudável e perfeito de coroas de flores e retiros de bem-estar postados nas redes sociais seria um espaço seguro, atraente e reconfortante para os necessitados. Mas a série afasta essas imagens cuidadosamente construídas para mostrar a doença da realidade escondida.

Conforme detalhado na série, a exposição de Gibson surgiu pelas mãos de dois jornalistas investigativos do jornal The Age, de Melbourne, na Austrália, Beau Donelly e Nick Toscano. Eles foram os co-autores do livro The Woman Who Fooled the World (A Mulher que Enganou o Mundo, em tradução livre), de 2017, no qual a série é baseada.

No início de 2015, eles descobriram que apenas uma estimativa de 3.500 libras (R$ 25 mil) de 150 mil libras (R$ 1 milhão), que Gibson alegou ter doado para uma série de instituições de caridade, havia sido realmente paga.

Uma vez que essas irregularidades financeiras foram reveladas, suspeitas surgiram sobre as histórias conflitantes em torno de sua saúde. Após sua entrevista confessional na Women's Weekly, ela participou de outra desconcertante entrevista reveladora na TV, no programa 60 Minutes Australia, em junho de 2015. Lá, ela mais uma vez admitiu sua fraude até certo ponto, mas também alegou ser vítima, dizendo que havia sido "enganada" pelo médico charlatão mencionado anteriormente, nunca visto, aparentemente chamado "Mark Johns", outras vezes "Dr. Phil".

Alycia Debnam-Carey sentada em uma área alada em trecho da série da Netflix

Crédito, Netflix

Legenda da foto, Alycia Debnam-Carey interpreta a colega blogueira de bem-estar Milla Blake – cujas experiências com doenças terminais são emprestadas por Gibson

Na exploração do programa sobre o que Gibson e outros gurus fraudulentos de saúde e espiritualidade oferecem, o personagem do gerenciamento de crises de Gibson em Los Angeles, Hek (Phoenix Raei), chega ao cerne da questão. "Isso não é um pouco de mágica?", ele pergunta.

"Beba um pouco disso e você estará limpo? Puro de novo. Quão esperançoso é isso? Eu tomaria qualquer coisa só para me sentir um pouco melhor, um bálsamo para aliviar a tensão, uma maneira de acalmar essa... tragédia de ser humano."

O que aconteceu depois?

Em outro desafio à convenção narrativa, o Vinagre de Maçã subverte o posfácio "o que aconteceu depois?" que você normalmente obtém no final de uma dramatização de história real.

À medida que o texto começa a rolar pela tela ("Em 2017, o Tribunal Federal da Austrália considerou Belle Gibson culpada de enganar e…"), Gibson interrompe e diz aos espectadores: "Quer saber? Você pode pesquisar no Google". Vá em frente, ela repreende o público, vá e pegue suas informações na internet – mas, claro, não foi exatamente aí que todo esse problema começou?

Por mais apropriado que seja esse truque, também parece um pouco uma desculpa, permitindo que toda a extensão dos crimes de Gibson não seja examinada. Em março de 2017, conforme relatado pela BBC, Gibson foi considerada culpada de cinco crimes previstos na lei do consumidor e, em setembro daquele ano, ela foi condenada pelo tribunal federal de Melbourne a pagar 205 mil libras (R$ 1,46 milhão) ao Estado de Victoria, por suas falsas promessas de caridade.

No entanto, o jornal The Guardian relatou, em 2021, que a casa dela havia sido invadida devido às multas ainda não pagas, que eles disseram já somar mais de 250 mil libras (R$ 1,78 milhão).

Nem o Vinagre de Maçã, nem suas duas entrevistas anteriores revelam tudo ou chegam à raiz do motivo pelo qual Gibson realizou sua farsa elaborada. Foi por causa de uma infância problemática, como ela alegou, quando fugiu de casa aos 12 anos? Foi por fama e atenção, ou toda a farsa foi puramente um esquema para ganhar dinheiro?

Alguns podem atribuir as alegações conscientemente falsas de Gibson à síndrome de Munchausen (uma condição também chamada de transtorno fictício e definida como pessoas que afirmam estar doentes para "receber alguma forma de validação psicológica, como atenção, simpatia ou cuidado físico").

Em um artigo de 2015 para o Guardian, o neurologista Jules Montague escreveu: "Transtornos fictícios e simulação podem se sobrepor. Incentivos externos podem não impulsionar o comportamento inicial, mas podem acompanhar depois. Gibson pode ter gostado inicialmente de interpretar o papel de doente. Mas ela não recusou o dinheiro que surgiu depois."

Cena da série Inventando Anna mostra a personagem principal tirando uma selfie sentada na poltrona de um avião

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Legenda da foto, Inventando Anna é outra minissérie de uma onda de programas de TV recentes sobre vigaristas da vida real

Em 2000, Marc Feldman criou o termo mais específico Munchausen pela Internet (MBI, por sua sigla em inglês). O MBI agora é definido pelo NHS, o sistema público de saúde no Reino Unido, como "uma pessoa que se junta a um grupo de apoio na internet para pessoas com uma condição de saúde séria e então alega ter a doença", o que talvez possa ser mais aplicável a Gibson.

Agora, se ela é uma mentirosa ou mais uma "mestre manipuladora da verdade", como Tara Brown, entrevistadora do 60 Minutes, a chamou, é difícil dizer. Sempre há dúvidas sobre se as pessoas que apresentam sinais de síndrome de Munchausen são pacientes ou criminosos.

Feldman disse ao The Guardian em 2015: "Às vezes são ambos, mas no caso de Gibson, a audácia de seus estratagemas e a (suposta) apropriação indébita de dinheiro podem tornar a palavra 'criminosa' mais apropriada."

"Sempre houve vendedores de óleo de cobra", disse o jornalista Toscano ao The Guardian, em 2017. "Sempre houve pessoas como (Gibson). Mas essa história se difere em sua explosão de sucesso, e seu alcance incrível foi possível por uma série de forças intensamente modernas."

A história de Gibson é perturbadora. Uma tempestade perfeita envolvendo a cultura da internet em uma época em que ainda era relativamente ingênua sobre golpistas, uma comunidade de saúde e bem-estar buscando encontrar o lado bom em todos e uma vigarista que talvez sofresse com seus próprios delírios. Afinal, como ela poderia ter acreditado que a verdade não viria à tona?

A Netflix faz questão de enfatizar que Gibson não foi paga por sua história e ainda não se sabe o que ela fará com tudo isso. Na verdade, Gibson foi raramente vista em público desde que o escândalo estourou. Em 2020, ela apareceu em um vídeo em Melbourne alegando fazer parte da comunidade Omoro, um grupo étnico etíope, e disse que na época era chamada de "Sabontu".Ela afirmou que queria arrecadar fundos para a comunidade.

Em fevereiro de 2024, um repórter do programa A Current Affair do Channel 9, da TV australiana, a confrontou em um posto de gasolina e perguntou por que ela ainda não havia pago sua multa. "Tenha um pouco de humanidade", ela respondeu. "Eu não paguei porque não tenho condições".

Embora Gibson continue sendo uma das mais notórias golpistas de "bem-estar" por aí, ela não será a última. Programas como Apple Cider Vinegar ainda são um lembrete vital e necessário de que a internet está cheia de pessoas com identidades cuidadosamente construídas — tanto reais quanto falsas — e que o único conselho realmente saudável é abordar tudo isso com uma dose de ceticismo.

A série Vinagre de Maçã está disponível na Netflix a partir de 6 de fevereiro de 2025.