Tété-Michel Kpomassie

Crédito, Tété-Michel Kpomassie

Legenda da foto, Aos 16 anos, Tété-Michel Kpomassi embarcou em uma longa jornada para escapar das cobras
  • Author, Jo Fidgen e Katy Takatsuki
  • Role, BBC Outlook*
  • Há 13 minutos

O dia em que Tété-Michel Kpomassie soube que não havia cobras ou lagartos na Groenlândia foi o dia em que ele decidiu deixar seu Togo natal para morar no Ártico.

Em 1958, com apenas 16 anos, Tété-Michel aprendeu em primeira mão que, mesmo que não fosse picado, qualquer encontro com uma serpente poderia ser fatal: certa tarde, enquanto comia um coco no topo de uma palmeira, ele ficou cara a cara com uma cobra e, ao tentar evitá-la, sofreu uma queda impressionante de quase 10 metros de altura.

O jovem passou os próximos três dias sem conseguir dormir porque seus sonhos se transformaram em pesadelos cheios de cobras.

Seu pai, eletricista e curandeiro ocupado com as responsabilidades de ter oito esposas e 26 filhos, decidiu que a única maneira de ajudá-lo seria levá-lo até a sacerdotisa especialista no culto às pítons.

"Naquela noite, tomei um banho de purificação", disse Teté-Michel Kpomassie, agora com 80 anos, ao programa Outlook da BBC. "E a sacerdotisa disse ao meu pai que eu deveria me tornar padre do culto às cobras."

Seu pai, honrado, aceitou, mas para Tété-Michel, a ideia de dedicar sua vida à adoração de cobras parecia mais uma sentença de morte do que uma honra.

Nas semanas seguintes, Tété-Michel pediu licença ao pai, dizendo que precisava recuperar suas forças após a queda e se refugiou na antiga biblioteca missionária francesa perto do mar. Foi lá que ele fez a descoberta que mudaria completamente sua vida.

"Havia um livro — que ainda tenho aqui — chamado Os esquimós da Groenlândia e do Alasca", lembra Tété-Michel.

Esse livro o inspirou a empreender uma viagem titânica de oito anos pela África e pela Europa, antes de finalmente chegar à ilha congelada dos seus sonhos — e, no processo, tornar-se a primeira pessoa do continente africano a pisar na Groenlândia de que se tenha registro.

Anos depois, Tété-Michel publicaria um livro contando suas aventuras intitulado Um africano na Groenlândia.

Mas, em sua juventude, quando ainda estava sentado na antiga livraria dos missionários e sonhava com as paisagens geladas descritas no livro que tinha em mãos, Tété-Michel ainda tinha uma pergunta importante a responder se quisesse chegar à terra dos inuítes: "Onde era esse paraíso?"

Um lugar frio e sem serpentes

A capa do livro Os Esquimós da Groenlândia e do Alasca

Crédito, Centro de Estudos de Newfoundland

Legenda da foto, Este livro motivou Tété-Michel a empreender sua própria travessia nórdica

Um dia depois de descobrir que havia um lugar congelado chamado Groenlândia, Tété-Michel voltou à livraria para comprar um mapa para ajudá-lo a planejar seus próximos passos.

"Percebi que a Groenlândia estava muito perto da América e muito longe da África", disse ele ao Outlook. "Então comecei a fazer meu plano de fuga."

"Usei o dinheiro que economizei para chegar à rodoviária e perguntei se um motorista poderia me levar para Gana. Não pensei em nenhuma outra dificuldade."

O que Tété-Michel ainda não sabia era que levaria oito anos para atravessar a África e a Europa antes de chegar à Dinamarca, o reino ao qual a Groenlândia pertence.

Quando finalmente chegou a Copenhague, ele diz que conversou com um assistente consular que tentou fazê-lo entender o quão difícil seria atingir seu objetivo.

"Em Copenhague, eles me perguntaram: 'O que você vai fazer na Groenlândia?' Eu respondi: 'Vou porque li que lá não há cobras.' Eles me perguntaram a temperatura do meu país e eu disse: 'Não sei, cerca de 30ºC.' Eles disseram: 'As temperaturas da Groenlândia chegam a -40ºC. Essa é uma diferença muito grande para você sobreviver.'"

"Mas eu estava convencido e comprei minha passagem. O barco estava indo para Julianehaab, também chamada de Qaqortoq em groenlandês, no sul da Groenlândia."

Tornasuk ou Qivittoq

Icebergs perto da Groenlândia

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Pela primeira vez, Tété-Michel pôde ver icebergs reais

Na jornada de barco de sete dias até Qaqortoq, Tété-Michel começou a ver com seus próprios olhos algumas das maravilhas que seu livro lhe havia prometido.

"Foi quando eu vi que no verão não há noite realmente. E também foi a primeira vez que vi icebergs: no começo, eles eram como pequenos pedaços de gelo que pareciam cisnes, mas se tornavam imensos, até se revelarem imponentes montanhas de gelo."

"Às vezes, o interior do barco ficava tão frio que doía respirar."

Talvez nenhuma imagem tenha sido mais chocante do que a de sua chegada a Qaqortoq.

Por volta das 8h da manhã de junho de 1967, o barco em que Tété-Michel estava viajando chegou à Groenlândia.

E esperando por ele estavam todas as pessoas que moravam na aldeia. Mal sabiam eles que, naquela manhã, seria a primeira vez que veriam um homem negro.

"Olhei pela janela do navio e vi toda a população reunida na costa. E foi aí que me perguntei como eles reagiriam ao ver um homem negro, porque todos os outros a bordo eram brancos."

Tété-Michel diz que, para descer do navio, ele teve que se preparar quase como se fosse um ator. E então, ele deu seu primeiro passo na Groenlândia.

"No momento em que me viram, todos pararam de falar."

Tété-Michel chegando a Qaqortoq

Crédito, Tété-Michel Kpomassie

Legenda da foto, A chegada de Tété-Michel a Qaqortoq foi um grande acontecimento para a população, especialmente para as crianças

Depois de alguns segundos de intenso silêncio, Tété-Michel começou a se aproximar da multidão chocada e percebeu que algumas crianças estavam chorando e que estavam se referindo a ele por nomes no idioma local.

"Me aproximei lentamente deles e a multidão se separou para me deixar passar. Eu ouvi as crianças me chamarem de Tornasuk ou Qivittoq. Esses eram os nomes dos espíritos em suas lendas: gigantes negros que viviam nas montanhas."

Mas, como o medo e a curiosidade muitas vezes andam juntos, foram as crianças de Qaqortoq que primeiro se encantaram com esse "gigante africano".

Elas o apelidaram assim por causa de seus 1,80 m de altura, que o faziam parecer uma imponente estátua de ébano ao lado dos habitantes locais, que mal chegavam a 1,60 m de altura.

"Depois que me afastei da multidão no porto, todas as crianças me seguiram e a polícia de Qaqortoq teve que dirigir atrás de nós. Eles estavam preocupados que as crianças me sobrecarregassem. Eles me escoltaram até a casa onde eu deveria morar", lembra Tété-Michel.

"Mas as crianças não foram embora — elas cercaram a casa e ficaram lá por horas. Toda vez que me viam na janela, gritavam: 'Una, una, una! ' — significando: 'Olha, olha, olha!'"

A vida em Qaqortoq

Tété-Michel com moradores locais

Crédito, Tété-Michel Kpomassie

Legenda da foto, Os vizinhos de Qaqortoq rapidamente se acostumaram a ver Tété-Michel na cidade

A aceitação das crianças do vilarejo começou a se espalhar por toda a aldeia, lembra o homem.

"Os adultos eram tímidos e reservados. Eles se aproximavam de mim, mas suas reações eram mais compreensivas quando as crianças me aceitavam. Sempre que eu saía, as crianças me seguiam. Eles perguntavam meu nome e queriam apertar minha mão. Eles se tornaram meus amigos, meus melhores amigos, na verdade."

Ele lembra que começou a receber convites de moradores locais para todos os tipos de planos: eles o convidavam para tomar uma cerveja ou provar pratos mais tradicionais da região.

"Quando cheguei a uma casa onde me receberam e minha anfitriã — cujo nome era Paulina — me ofereceu algo e disse: 'Tikilluarit, você é bem-vindo', e ela ofereceu mattak, que é pele branca de baleia. É cru e se mastiga como chiclete. É servido com gordura de foca. Eu a princípio temi por meu estômago."

Tété-Michel também começou a comparar o estilo de vida das pessoas nesse local remoto no sul da Groenlândia com o de sua vida anterior no Togo.

"Na África, a hierarquia é muito rígida, mas na Groenlândia não há nada parecido. Era uma sociedade que eu nunca tinha imaginado antes. Pude ver o contraste com minha própria cultura", lembra Tété-Michel.

"Mas o que eu realmente amei na Groenlândia foi seu animismo, que me lembrou da África. Eles acreditam que cada coisa tem uma alma: focas, baleias, renas selvagens — todos os animais têm um espírito, assim como os humanos. Isso reflete nossas próprias crenças no Togo."

Mais ao norte

Tété-Michel na Groenlândia

Crédito, Tété-Michel Kpomassie

Legenda da foto, Tété-Michel queria experimentar a Groenlândia mais selvagem

Depois de alguns meses em Qaqortoq, Tété-Michel começou a perceber que a experiência lá era muito semelhante à da Dinamarca e que, para se aproximar de seus sonhos de andar de trenó e caçar focas no gelo, ele teria que continuar sua jornada para o norte.

"Passei o inverno em uma vila muito pequena: 29 casas, 170 pessoas e 600 cães", lembra. E foi lá que ele aprendeu a andar de trenó.

"Um trenó puxado por cães é um veículo muito baixo, a apenas 20 centímetros do chão", diz Tété-Michel. "Quando você se senta nele, sente que o gelo está tão próximo que acha que vai cair. Mas quando os cães começam a puxar, é uma sensação estranha, porque você está tão baixo que não sente que está se movendo."

"Você observa os huskies à frente, lançando rajadas de neve e gelo que atingem seu rosto. A cada cinco minutos, mais ou menos, você precisa parar e correr ao lado do trenó e depois voltar, para se aquecer. Você abre o anoraque [jaqueta de pele com capuz] para sentir o calor do seu próprio corpo no rosto. É uma sensação maravilhosa."

"Se se deitar no trenó e olhar para o céu, você pode ouvir seu próprio coração. Como tudo é tão silencioso, ele faz bum, bum, bum. Você sente que seu coração está batendo como o coração de todo o universo. O que mais você precisa na Terra?"

E foi nessa parte do mundo que ele realmente aprendeu a dominar o frio.

Tété-Michel com roupa própria para a neve

Crédito, Tété-Michel Kpomassie

Legenda da foto, Tété-Michel aprendeu a viver como os inuit, e contou sua experiência na África

"Aprendi a caçar. Às vezes, você precisa ficar em um lugar por horas. Quando você caça focas no gelo, precisa esperar que a foca saia para respirar. É preciso muita paciência — você só precisa se sentar em um bloco de gelo."

"Mesmo a -30°C eu estava sofrendo, mas estava feliz. Eu me senti como se tivesse conquistado minha liberdade. Essa felicidade tornou o frio mais suportável. Eu acompanhava meus anfitriões todos os dias em suas atividades e todo esse movimento me mantinha aquecido."

Contraintuitivamente, Tété-Michel começou a apreciar as coisas mais difíceis da Groenlândia, incluindo o inverno.

"No verão, eu admirava o sol brilhando nos icebergs, mas no inverno eu admirava a luz da lua nesses mesmos icebergs e passei a preferir a noite. Quando o mar congela, os inuítes se tornam os reis de seu país", relata.

"Com seus trenós puxados por cães, eles podem ir a qualquer lugar que quiserem. No verão, se você não tem um barco, não pode realmente viajar. Mas no inverno, todo o Ártico se torna sua casa, seu reino."

O retorno

Tété-Michel Kpomassie com moradores locais na Groenlândia

Crédito, Tété-Michel Kpomassie

Legenda da foto, Para Tété-Michel, compartilhar sua experiência com as pessoas na África se tornou uma motivação

Tété-Michel confessa que, durante sua jornada, nunca pensou em voltar para a África. Mas, quanto mais ele aprendia sobre a Groenlândia, suas culturas e o mundo em geral, uma ideia ficava em sua cabeça.

"O que meu povo diria sobre esse mundo, sobre essas auroras borais que ninguém nunca viu, sobre o gelo marinho em que ninguém da minha família jamais pisou, sobre os meses sem luz do dia e os meses sem noite?", ele lembra.

"De repente, senti que tinha que voltar. É por isso que deixei a Groenlândia e voltei para casa."

O jovem de 16 anos que havia deixado o Togo, procurando escapar do destino da adoração de cobras, agora retornaria ao seu país como um homem de 28 anos com um mundo de histórias para compartilhar com seus entes queridos. Uma delas, a história da neve.

"Para explicar a neve ao meu avô, eu disse a ele: 'Atahi, avô respeitado, imagine que todos os pássaros brancos no céu de repente perderam suas penas'."

"No dia seguinte, o vovô fez toda a família rir dizendo que havia sonhado com flocos de neve tão grossos que bloqueavam o sol, e um dos meus tios lhe perguntou: 'O que aconteceu com aqueles pássaros que perderam todas as penas? Sem asas, como eles conseguirão voar?""

"Pela primeira vez, a neve se tornou parte de uma conversa em nossa comunidade."

E por meio de suas experiências, Tété-Michel conquistou o respeito dos mais velhos.

"Quando voltei, meu avô, meu pai, meus tios e tias me ouviram. Percebi que eles haviam me dado a vida, mas a Groenlândia me tornou um homem. Eu me tornei uma espécie de homem sábio, alguém a quem todos prestavam atenção."

Um ano depois de retornar, Tété-Michel decidiu compartilhar sua experiência com o resto do continente e partiu em uma turnê pela África, onde contaria o que havia visto em suas viagens ao paraíso congelado da Groenlândia.

Ele então se mudou para a França e publicou Um africano na Groenlândia, um livro que se tornou popular e o lançou à fama.

"Eu nunca fui para a universidade, mas hoje as universidades me convidam para dar palestras. Eu recebo e-mails de antropólogos e cartas de etnólogos. Meu livro se tornou um modelo para eles."

"Construí uma ponte entre a África e a Groenlândia. Falo sobre a Groenlândia todos os dias, é como se eu nunca tivesse saído de lá."

* Esta reportagem é uma adaptação de uma reportagem originalmente publicada em inglês, no programa de rádio BBC Outlook. Você encontra esse episódio aqui.

Esta reportagem foi escrita e revisada por nossos jornalistas utilizando o auxílio de IA na tradução, como parte de um projeto piloto.